Luís Vaz de Camões
Carta a uma senhora
Amor que viu minha dor
ser maior que a paciência,
prometeu-me, por favor,
uma carta de aderência
para vosso desfavor.
Eu, que ainda não sabia
quanto tinha de divino,
julgava, por desatino,
que carta de tal valia
notasse um cego menino.
Ele, vendo-me ficar
comigo quase suspenso,
por mais me desenganar,
começou-me de notar
na memória por extenso.
E diz, por ver se o nego:
«Via boa, se assi for...»
E eu tornei-lhe, por louvor:
«Os conceitos são de cego,
e as palavras são de amor.»
Logo escrever me mandou;
e, não sendo a pena boa,
para as asas se virou
e uma grande arrancou
daquelas com que mais voa.
E diz-me: «Toma esta pena,
que por minha a todos ganha;
que parece cousa estranha
que baste cousa pequena
a contar cousa tamanha.
E por ser mais igual
a matéria ao pensamento,
tudo é de um natural:
molha a pena de teu mal
na tinta do meu tormento.
O pensamento ligeiro
como portador tão fiel,
sendo em tudo verdadeiro,
te dê agora o papel,
te sirva de mensageiro.»
E eu, aparelhado assi
como Amor me aparelhou,
dês que nada me falece,
desta maneira escrevi
o que o moço cego notou:
«Senhora, que não quereis
depois que tudo quisestes
e a morte me trazeis,
negando-me o que podeis;
sabendo quanto pudestes:
esperai, estai atento,
que, p'ra contar minha dor,
me dá a tinta o tormento,
a pena me dá o Amor,
o papel o pensamento.
Democrito tirai
a vista tanto estimada
que, sem ela, procurai
furtar o corpo à cilada
que do desejo esperai.
Se, primeiro que vos vira,
minha dor adivinhara,
meus, certo, olhos tirara;
que, inda que pena sentira,
menos pena lhe ficara.
Mas ai, Senhora, que nisto
não acerto, nem pode ser;
porque, para meu querer,
antes cego por ter-vos visto
que cego por vos não ver.
Quanto mais que os cegos tais,
se ante vós estivessem
como os que vos vêem, cegais,
os cegos vista tivessem
para nunca verem mais.
Porque, depois que vos vi,
quando vós ver me quisestes,
nunca mais me vi a mim,
nem vi quando me perdestes,
sentindo que me perdi.
Tanto enlevei o cuidado
na luz com que me cegastes
que, de cego e enlevado,
não vi quando me roubastes,
mas vi que fora roubado.
O pensamento, por quanto
vos quis ter por sua estrela,
como quem mais se acautela,
se descuidou da alma tanto
por vos dar cuidado dela.
Mas a alma, que na glória
se viu de vossa prisão,
deu recado ao coração
que, rendido ou com vitória,
se rendesse em vossa mão.
Os olhos que cada dia
os vossos lhe eram defesos,
como que mais não queria,
iam sempre ver os presas
por ver a quem prendia.
Gozavam da vista pura,
viam uma alma no céu.
Oh, que céu! Mas pouco dura
a glória, pois a tolheu
ou vós ou minha ventura.
Ventura não, que é causa dura
negar ela o que podeis;
vós sim, pois que bem sabeis
quão pouco pode a ventura
onde vós tanto podeis.
E se, Senhora, quereis
ser remédio do que espero,
sou contente que me deis
não mais que quanto podeis
p'ra ficar com quanto quero.
Se de bem tão sublimado
por indigno me tiverdes,
tende convosco assentado
que pois tenho meu cuidado
que terei quanto me derdes.
E pois que o pensamento
foi capaz de imaginar-vos
pela glória do tormento,
quis o merecer comprar-vos
com vosso merecimento.
Assim que de merecer
não me falta cantidade
nem me falta o poder ser;
mas, para tudo poder,
falta-me vossa vontade.
E pois que podeis por vós
o que não posso por mim,
porque não quereis o fim,
sem desfazeres em vós,
vir a fazer tanto em mim?
E pois o tempo vos dá
licença por que me deis,
não negueis o que podeis,
que depois o negará
e vós mo concedereis.
E pois tanto bem me destes,
Senhora, não mo tireis;
porque mais pena tereis
em saber que já pudestes
que ver que já não podeis.
Enfim por que nunca seja
chegado a tão dura sorte,
ou consenti que vos veja,
ou não me negueis a morte
que a vida, sem vós, deseja.
|