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Luís Vaz de Camões


 

A culpa de meu mal só têm meus olhos


A culpa de meu mal só têm meus olhos
pois que deram a Amor entrada na alma,
para que perdesse eu a liberdade.
Mas quem pode fugir a üa brandura
que, depois de vos pôr em tantos males,
dá por bens o perder por ela a vida?

Assaz de pouco faz quem perde a vida
por condição tão dura e brandos olhos,
pois se tal qualidade são meus males
que o mais pequeno deles toca na alma.
Não se engane com mostras de brandura
quem quiser conservar a liberdade.

Roubadora é de toda liberdade
- e oxalá perdoasse à triste vida! -
esta que o falso amor chama brandura.
Ai, meus antes imigos que meus olhos!
Que mal vos tinha feito esta vossa alma,
para vós lhe fazerdes tantos males?

Creçam de dia em dia embora os males;
perca-se embora a antiga liberdade;
transforme-se em amor esta triste alma;
padeça embora esta inocente vida;
que bem me pagam tudo estes meus olhos
quando de outros, se os vêem, vêem a brandura.

Mas como neles pode haver brandura,
se causadores são de tantos males?
Engano foi de Amor, por que meus olhos
dessem por bem perdida a liberdade.
Já não tenho que dar senão a vida,
se a vida já não deu quem já deu a alma.

Que pode já esperar quem a sua alma
cativa eterna fez de uma brandura
que, quando vos dá morte, diz que é vida?
Forçado me é gritar nestes meus males,
olhos meus, pois por vós a liberdade
perdi; de vós me queixarei, meus olhos.

Chorai, meus olhos, sempre danos da alma,
pois dais a liberdade a tal brandura
que, para dar mais males, dá mais vida.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Luís Vaz de Camões


 

Ó triste, ó tenebroso, ó cruel dia


Ó triste, ó tenebroso, ó cruel dia,
amanhecido só para meu dano,
pudeste-me apartar daquela vista,
por quem vivia com meu mal contente.
Ah! se o supremo foras desta vida,
que em ti se começara a minha glória!

Mas como eu não naci para ter glória,
senão pena que creça cada dia,
o Céu me está negando o fim da vida
por que não tenha fim com ela o dano;
para que nunca possa ser contente,
da vista me tirou aquela vista.

Suave, deleitosa, alegre vista,
donde pendia toda a minha glória,
por quem na mór tristeza fui contente:
quando será que veja aquele dia
em que deixe de ver tão grave dano,
e em que me deixe tão penosa vida?

Como desejarei humana vida,
ausente de üa mais que humana vista,
que tão glorioso me fazia o dano?
Vejo o meu dano sem a sua glória;
à minha noite falta já seu dia;
triste tudo se vê, nada contente.

Pois sem ti já não posso ser contente,
mal posso desejar sem ti a vida,
sem ti já ver não posso claro dia;
não posso sem te ver desejar vista;
na tua vista só se via a glória,
não ver a glória tua é ver meu dano.

Não via maior glória que meu dano,
quando do dano meu eras contente;
agora me é tormento a maior glória,
que pode prometer-me Amor na vida;
pois tornar-te não pode à minha vista,
que só na tua achara a luz do dia.

E pois de dia em dia cresce o dano,
não posso sem tal vista ser contente;
só com perder a vida acharei glória.


 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Luís Vaz de Camões


 

Sempre me queixarei desta crueza


Sempre me queixarei desta crueza
que Amor usou comigo quando o tempo,
apesar de meu duro e triste fado,
a meus males queria dar remédio
em apartar de mim aquela vista,
por quem me contentava a triste vida.

Levara-me, oxalá, com ela a vida,
para que não sentira esta crueza
de me ver apartado de tal vista!
E praza a Deus não veja o próprio tempo
em mim, sem esperança de remédio,
a desesperação de um triste fado!

Porém já acabe o triste e duro fado!
Acabe o tempo já tão triste vida,
que em sua morte só tem seu remédio.
O deixar-me viver é mor crueza,
pois desespero já de em algum tempo
tornar a ver aquela doce vista.

Duro Amor, se pagara só tal vista
todo o mal que por ti me fez meu fado,
porque quiseste que o levasse o tempo?
E também se quiseste, porque a vida
me deixas para ver tanta crueza,
quando em não vê-la só vejo o remédio?

Tu só de minha dor eras remédio,
suave, deleitosa e bela vista!
Sem ti, que posso eu ver senão crueza?
Sem ti, qual bem me pode dar o fado
senão consentir que acabe a vida?
Mas ele dela me dilata o tempo.

Asas para voar vejo no tempo,
que com voar a muitos foi remédio;
e só não voa para a minha vida.
Para que a quero eu sem tua vista?
Para que quer também o triste fado
que não acabe o tempo tal crueza?

Não poderão fazer crueza ou tempo,
força de fado, ou falta de remédio
que essa vista me esqueça em toda a vida.


 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Luís Vaz de Camões


 

Quanto tempo ter posso amor de vida


Quanto tempo ter posso amor de vida
sem ver aquela luz alegre e bela
daqueles graciosos lindos olhos?
Se há-de ser muito, venha a morte,
e para sempre aparte deste corpo
a triste namorada, infelice alma.

Quando fizeste os olhos seus desta alma
a luz, a guia, a glória, a fama, a vida,
ordenaste que não vivesse o corpo
não vendo a vista amada linda e bela.
Pois como já me tarda tanto a morte,
se tanto há que não vejo os olhos belos?

Claros raios do sol, formosos olhos,
que as chaves ambas tendes da minha alma,
se não vos hei-de ver, leve-me a morte,
que morte é, sem vos ver, a própria vida.
E pois que não vos vendo a morte é bela,
não tenha uma hora mais de vida o corpo.

Vai-se sustendo na esperança o corpo
de tornar inda a ver-vos, doces olhos;
que, se não fora esta esperança bela,
a alma já o deixara e ele a alma.
Pois se vós dele e dela sois a vida,
que podem sem vós ter mais do que morte?

Vários modos sofrendo está de morte
entanto este mortal e triste corpo;
e, se temo perder de todo a vida,
é por temer perder-vos, lindos olhos.
Isto faz com que já de todo a alma
não se parta a buscar vida mais bela.

Serena luz, formosa, clara e bela,
que me dás juntamente vida e morte,
e pintaste com teus raios nesta alma
as raras perfeições do belo corpo!
'Té que te torne a ver, meus tristes olhos,
não haverá em mim gosto da vida.

Morte sem vós é vida, e morte a vida;
bela a tristeza nestes tristes olhos;
a alma carga pesada ao mortal.


 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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29/03/2006