Luís Vaz de Camões
Carta II
Da Índia
Desejei tanto üa vossa, que cuido que pela muito desejar
a não vi; porque este é o mais certo costume da Fortuna:
consentir que mais se deseje o que mais presto há-de
negar. Mas por que outras naus me não façam tamanha
ofensa, como é fazerem-me suspeitar que vos não lembro,
determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco
mais ou menos vereis o que quero que me escrevais
dessa terra. Em pago do qual, de antemão vos pago com
novas desta, que não serão más no fundo de üa arca para
aviso de alguns aventureiros que cuidam que todo o mato
é orégãos, e não sabem que cá e lá más fadas há.
Depois que dessa terra parti, como quem o fazia para o
outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dera
de comer até então, com pregão público: Por falsificadoras
de moeda. E desenganei esses pensamentos, que por
casa trazia, por que em mim não ficasse pedra sobre
pedra. E assim posto em estado que me não via senão
por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que na
nau disse foram as de Cipião Africano: «Ingrata patria, non
possidebis ossa mea». Porque quando cuido que, sem
pecado que me obrigasse a três dias de Purgatório,
passei três mil de más línguas, piores tenções, danadas
vontades, nascidas de pura inveja, de verem «su amada
yedra de sí arrancada y en otro muro asida...» Da qual
também amizades, mais brandas que cera, se acendiam
em ódios que disparavam lume que me deitava mais
pingos na fama que nos couros de um leitão. Então
ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de
Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos
pés; as quais de mas não verem nunca, me fez ver as de
muitos, e não enjeitar conversações da mesma
impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando
com a língua o que não podiam com o braço. Enfim,
Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir
a quantos laços nessa terra me armavam os
acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo
mais venerado que os touros de Merceana, e mais quieto
que na cela de um frade pregador.
Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins e
madrasta de homens honrados. Porque os que se cá
lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre
água com[o] bexigas; mas os que sua opinião deita «a las
armas, Moriscote», como a maré corpos mortos à praia,
sabei que, antes que amadureçam, se secam. Já estes
que tomavam esta opinião de valentes às costas, crede
que nunca
Riberas del Duero arriba
Cabalgaron zamoranos,
Que roncas de tal soberbia
Entre sí fuesen hablando;
e quando vêm ao efeito da obra, salvam-se com dizer
que se não podem fazer tamanhas duas cousas, como é
prometer e dar.
Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que,
como se achava em algum magusto de rufiões,
verdadeiramente que ali era «su comer las carnes crudas,
su beber la viva sangre». Calisto de Sequeira se veio cá
mais humanamente, porque assim o prometeu em üa
tormenta grande em que se viu. Mas um Manuel Serrão,
que, sicut et nos, manqueja de um olho, se tem cá
provado arrazoadamente, porque fui tomado por juiz de
certas palavras de que ele fez desdizer a um soldado, o
qual, pela postura de sua pessoa, era cá tido em boa
conta.
Se das damas da terra quereis novas, as quais são
obrigatórias a üa carta como marinheiros à festa de S. Frei
Pero Gonçalves, sabei que as portuguesas todas caem de
maduras, que não há cabo que lhe tenha os pontos, se lhe
quiserem lançar pedaço. Pois as que a terra dá? Além de
serem de rala, fazei-me mercê que lhe faleis alguns
amores de Petrarca ou de Boscão; respondem-vos üa
linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do
entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor
quentura do mundo. Ora julgai, Senhor, o que sentirá um
estômago costumado a resistir às falsidades de um
rostinho de tauxia de üa dama lisbonense, que chia como
pucarinho novo com a água, vendo-se agora entre esta
carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como não
chorará «las memorias de in illo tempore!» Por amor de
mim, que às mulheres dessa terra digais de minha parte
que, se querem absolutamente ter alçada com baraço e
pregão, que não receiem seis meses de má vida por esse
mar, que eu as espero com procissão e pálio, revestido
em pontifical, aonde estoutras senhoras lhe irão entregar
as chaves da cidade, e reconhecerão toda a obediência, a
que por sua muita idade são já obrigadas.
Por agora não mais, senão que este soneto que aqui
vai, que fiz à morte de D. António de Noronha, vos mando
em sinal de quanto dela me pesou. üa écloga fiz sobre a
mesma matéria, a qual também trata algüa cousa da
morte do Príncipe, que me parece melhor que quantas fiz.
Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel
Dias, que, pela muita amizade de D. António, folgaria de a
ver; mas a ocupação de escrever muitas cartas para o
Reino me não deu lugar. Também lá escrevo a Luís de
Lemos em resposta de outra que vi sua: se lha não derem,
saiba que é a culpa da viagem, na qual tudo se perde.
–
Vale.
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