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Luís Vaz de Camões


 




Carta IV


De Lisboa, a um seu amigo, em que lhe dá novas da cidade
 



 

Quanto mais tarde vos escrevo, tanto mais me ficais devendo; e se üa vossa vale três das minhas, é necessário que faça quatro. E quanto às novas que me na vossa pedis, aguardei, pondo à parte a muita necessidade que de vós me faz ter, que já não quero que as façais por mais amizade. Sabereis que eu ando não de paz, mas de guerra, «laus Deo»; e porque o ladrar sem morder, nesta terra, é como bucha de papel, que dá grande estouro e não leva pelouro; grandes mãos de ferro, capuzes de lâminas, maças de Hércules e golpes de Amadis, tudo contra o pobre de Camões.

Simão Rodrigues paga soldos aos maiores matadores desta
terra, os quais já de «in illo tempore» lhe tinham cozinhado a morte. Este soldo se paga no Tesouro, s. em talhadas de marmelada e púcaros de água fria, com uns debruns da vista da senhora sua irmã. Que, ainda que esta mercadoria seja defesa pelo senhor da fortaleza, nestas viagens da China, mais se ganha no furtado que no ordenado.

Vosso comborço Dinis Boto foi espancado nesse Rossio üa
boca da noite, e não se sabe donde veio este desastre mais
que quanto os homens alcançam por sua lança; mas não é
para espantar se isto de longe se guarda por quem por amores de Lia dá isto; e mais se há-de passar. E por que este senhor não cuidasse que era «solus peregrinus in Jerusalem», lhe fez companhia daí a uns dias Gaspar Borges Corte-Real, à porta de Pêro Vaz. Dizem que com um pau o sacudiram como oliveira. Cuidou ele que as pedras não falavam, e disse que dera de comer a seus companheiros com as orelhas que tirara; mas São Lucas afirma que só São Pedro tirou üa a Malco na prisão de Cristo.

É certo que cuidastes que esta cantiga que era a duo; pois desenganai-vos, que um mouro da estrebaria do Carneiro lhe levou as contrabaixas outra noute, mas cuido que não levou
mais que duas ou três cargas, porque as outras eram já gastadas, com as figuras acima escritas.

Parece-me que já agora quereis que troque as bolas, tocando outras histórias. Tratando algüas cousas das ninfas de água doce, sou contente, porque sei que há pedaço que me aí aguardais.

Dizem que Francisca Gomes que já não amassa no forno aonde sóia, porque veio outro mercadante, competidor, e fez a cama fora do leito, chorando. Gabai-me este estratagema, que
é de ambas as bandas como tafecira.

A senhora Isabel Barbosa, com a outra senhora, deixou a
casa para Isabel Nunes, crendo que faria a sua vinda mais cedo; mas já não virá até que paira, salvo se vier também o amante cantante, que por nome não perca.

Bajana fez grande festa aos soldados de cima, caindo da sela como Lúcifer da cadeira, e, depois da caída, foi salteado pelos franceses, aonde, por partido, lhe deixaram as armas: mas a verdade é que ele se remeteu a certas cantigas de volta, das que tinha feito, mas não lhe valeu, que aquele privilégio tinha quebrado já em Orfeu, que se escreve que foi moído com as feridas.

Parece-me que já terei merecido os mil bens, e porém, não
quero que me digais que vos não meço sobre o funil; tomai mais esta minha algozaria: a terceira ninfa, Antónia Brás, foi levada à galera Nueva, aonde foram atados seus cabelos de ouro ao pé do mastro.

Aonde, com triste som,
Lhe cantaram a mangana;
E, com esta dor profana,
Gritos daba de pasión
Aquella reina troyana.

Um talabarde zunia
Na dama, porque foi peca;
Ela, com a dor, dizia:
Atentai, mano Fonseca,
La terrible pena mía.
 

Ao outro dia, esperámos que a cidade fosse posta em armas, mas estorvou-lhe o rifão que está na regra de viver em
paz, que diz dos arruídos; mas a puta leu outra regra que está
mais abaixo, que diz: «Atenta bem o que fazes, não te fies de
rapazes». E dês que caiu no entendimento dela, disse ao seu
homem :

– Não me sirvais, cavalheiro: «i-vos con Diós», que eu mudarei o vinte a parte onde não digam os de Alfama que não
tenho guardador. De modo que já hão deixado os três cupidos o Aleu.

E se vos enfadardes de ler tanto, não acordeis o cão que
dorme, mas sofrei mais estas duas regras, nas quais vos darei conta de mim, já que ma vós não dais:

Dizem que é passado nesta terra um mandado para prenderem a uns dezoito de nós; e porque nestas pressas grandes sem vós não somos nada, sabei que deste rol vós sois o primeiro, como sempre fostes em tudo. A razão dizem que é por um homem fidalgo, que dizem que foi espancado üa noite de São João pelo senhor João de Melo, e ele saberá se é assim.

O senhor António de Resende beija as mãos a V. M. O
mesmo faz Pêro Ribeiro Serpe.

Depois de ter escrito, soube que não foi Afonso de Bajana o que deixara a espada, senão que fugira, e a espada foi de Simão Ribeiro. Tanto monta.

Trazei de lá estudado um conluio que faça a Brás Antónia;
porque, pedindo-lhe sobre aposta seu corpo, me fez perder, cousa de que ando muito magoado, e desejoso de vos ver nesta terra. – Vale.
 


 

 

 

 

 

29/03/2006