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Luís Vaz de Camões



Canto VII (Parte II)



45
Destarte o Malabar, destarte o Luso,
Caminhavam lá pera onde o Rei o espera.
Os outros Portugueses vão ao uso
Que infantaria segue, esquadra fera.
O povo que concorre vai confuso
De ver a gente estranha, e bem quisera
Perguntar; mas, no tempo já passado,
Na Torre de Babel lhe foi vedado.

46
O Gama e o Catual iam falando
Nas cousas que lhe o tempo oferecia;
Monçaide, entre eles, vai interpretando
As palavras que de ambos entendia.
Assi pela cidade caminhando,
Onde hüa rica fábrica se erguia
De um sumptuoso templo já chegavam,
Pelas portas do qual juntos entravam.

47
Ali estão das Deidades as figuras,
Esculpidas em pau e em pedra fria,
Vários de gestos, vários de pinturas,
A segundo o Demónio lhe fingia.
Vêem-se as abomináveis esculturas,
Qual a Quimera em membros se varia.
Os cristãos olhos, a ver Deus usados
Em forma humana, estão maravilhados.

48
Um na cabeça cornos esculpidos,
Qual Júpiter Amon em Líbia estava;
Outro num corpo rostos tinha unidos,
Bem como o antigo Jano se pintava;
Outro, com muitos braços divididos,
A Briareu parece que imitava;
Outro fronte canina tem de fora,
Qual Anúbis Menfítico se adora.

49
Aqui, feita do bárbaro Gentio
A supersticiosa adoração,
Direitos vão, sem outro algum desvio,
Pera onde estava o Rei do povo vão.
Engrossando-se vai da gente o fio
Cos que vêm ver o estranho Capitão.
Estão pelos telhados e janelas
Velhos e moços, donas e donzelas.

50
Já chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos jardins odoríferos fermosos,
Que em si escondem os régios apousentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos.
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos.
Assi vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.

51
Pelos portais da cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.

52
Estava um grande exército, que pisa
A terra Oriental que o Hidaspe lava;
Rege-o um capitão de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava
(Por ele edificada estava Nisa
Nas ribeiras do rio que manava),
Tão próprio, que, se ali estiver Semele,
Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

53
Mais avante, bebendo, seca o rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
De hüa tão bela como incontinente.
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

54
Daqui mais apartadas, tremulavam
As bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira Monarquia), e sojugavam
Até as águas Gangéticas undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas rodeado valerosas,
Que já não de Filipo, mas, sem falta,
De progénie de Júpiter se exalta.

55
Os Portugueses vendo estas memórias,
Dizia o Catual ao Capitão:
«Tempo cedo virá que outras vitórias
Estas, que agora olhais, abaterão.
Aqui se escreverão novas histórias
Por gentes estrangeiras que virão;
Que os nossos sábios magos o alcançaram,
Quando o tempo futuro especularam.

56
E diz-lhe mais a mágica ciência
Que, pera se evitar força tamanha,
Não valerá dos homens resistência,
Que contra o Céu não val da gente manha;
Mas também diz que a bélica excelência,
Nas armas e na paz, da gente estranha
Será tal, que será no mundo ouvido
O vencedor por glória do vencido.»

57
Assi falando, entravam já na sala
Onde aquele potente Emperador
Nüa camilha jaz, que não se iguala
De outra algüa no preço e no lavor.
No recostado gesto se assinala
Um venerando e próspero senhor;
Um pano de ouro cinge, e na cabeça
De preciosas gemas se adereça.

58
Bem junto dele, um velho reverente,
Cos giolhos no chão, de quando em quando
Lhe dava a verde folha da erva ardente,
Que a seu costume estava ruminando.
Um Brâmene, pessoa preminente,
Pera o Gama vem com passo brando,
Pera que ao grande Príncipe o apresente,
Que diante lhe acena que se assente.

59
Sentado o Gama junto ao rico leito,
Os seus mais afastados, pronto em vista
Estava o Samori no trajo e jeito
Da gente, nunca de antes dele vista.
Lançando a grave voz do sábio peito,
Que grande autoridade logo aquista
Na opinião do Rei e do povo todo,
O Capitão lhe fala deste modo:

60
«Um grande Rei, de lá das partes onde
O Céu volúbil, com perpétua roda,
Da terra a luz solar co a Terra esconde,
Tingindo, a que deixou, de escura noda,
Ouvindo do rumor que lá responde
O eco, como em ti da Índia toda
O principado está e a majestade,
Vínculo quer contigo de amizade.

61
«E por longos rodeios a ti manda
Por te fazer saber que tudo aquilo
Que sobre o mar, que sobre as terras anda,
De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,
E desde a fria plaga de Gelanda
Até bem donde o Sol não muda o estilo
Nos dias, sobre a gente de Etiópia,
Tudo tem no seu Reino em grande cópia.

62
«E, se queres, com pactos e lianças
De paz e de amizade, sacra e nua,
Comércio consentir das abundanças
Das fazendas da terra sua e tua,
Por que creçam as rendas e abastanças
(Por quem a gente mais trabalha e sua)
De vossos Reinos, será certamente
De ti proveito, e dele glória ingente.

63
«E, sendo assi que o nó desta amizade
Entre vós firmemente permaneça,
Estará pronto a toda a adversidade
Que por guerra a teu Reino se ofereça,
Com gente, armas e naus, de qualidade
Que por irmão te tenha e te conheça;
E da vontade em ti sobre isto posta
Me dês a mi certíssima resposta.»

64
Tal embaxada dava o Capitão,
A quem o Rei gentio respondia
Que, em ver embaxadores de nação
Tão remota, grão glória recebia;
Mas neste caso a última tenção
Com os de seu conselho tomaria,
Informando-se certo de quem era
O Rei e a gente e terra que dissera;

65
E que, entanto, podia do trabalho
Passado ir repousar; e em tempo breve
Daria a seu despacho um justo talho,
Com que a seu Rei reposta alegre leve.
Já nisto punha a noite o usado atalho
As humanas canseiras, por que ceve
De doce sono os membros trabalhados,
Os olhos ocupando, ao ócio dados.

66
Agasalhados foram juntamente
O Gama e Portugueses no apousento
Do nobre Regedor da Índica gente,
Com festas e geral contentamento.
O Catual, no cargo diligente
De seu Rei, tinha já por regimento
Saber da gente estranha, donde vinha,
Que costumes, que Lei, que terra tinha.

67
Tanto que os ígneos carros do fermoso
Mancebo Délio viu, que a luz renova,
Manda chamar Monçaide, desejoso
De poder-se informar da gente nova.
Já lhe pergunta, pronto e curioso,
Se tem notícia inteira e certa prova
Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha
Que é gente de sua pátria mui vizinha;

68
Que particularmente ali lhe desse
Informação mui larga, pois fazia
Nisso serviço ao Rei, por que soubesse
O que neste negócio se faria.
Monçaide torna: «Posto que eu quisesse
Dizer-te disto mais, não saberia;
Somente sei que é gente lá de Espanha,
Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha.

69
«Tem a Lei dum Profeta que gerado
Foi sem fazer na carne detrimento
Da Mãe, tal que por Bafo está aprovado
Do Deus que tem do Mundo o regimento.
O que entre meus antigos é vulgado
Deles, é que o valor sanguinolento
Das armas no seu braço resplandece;
O que em nossos passados se parece.

70
«Porque eles, com virtude sobre-humana,
Os deitaram dos campos abundosos
Do rico Tejo e fresco Guadiana,
Com feitos memoráveis e famosos;
E não contentes inda, e na Africana
Parte, cortando os mares procelosos,
Nos não querem deixar viver seguros,
Tomando-nos cidades e altos muros.

71
«Não menos tem mostrado esforço e manha
Em quaisquer outras guerras que aconteçam,
Ou das gentes belígeras de Espanha,
Ou lá dalguns que do Pirene deçam.
Assi que nunca, enfim, com lança estranha
Se tem que por vencidos se conheçam;
Nem se sabe inda, não, te afirmo e asselo,
Pera estes Aníbais nenhum Marcelo.

72
«E, se esta informação não for inteira
Tanto quanto convém, deles pretende
Informar-te, que é gente verdadeira,
A quem mais falsidade enoja e ofende.
Vai ver-lhe a frota, as armas e a maneira
Do fundido metal que tudo rende,
E folgarás de veres a polícia
Portuguesa, na paz e na milícia.»

73
Já com desejos o Idolatra ardia
De ver isto que o Mouro lhe contava.
Manda esquipar batéis, que ir ver queria
Os lenhos em que o Gama navegava.
Ambos partem da praia, a quem seguia
A Naira geração que o mar coalhava.
À capitaina sobem, forte e bela,
Onde Paulo os recebe a bordo dela.

74
Purpúreos são os toldos, e as bandeiras
Do rico fio são que o bicho gera;
Nelas estão pintadas as guerreiras
Obras que o forte braço já fizera;
Batalhas têm campais aventureiras,
Desafios cruéis, pintura fera,
Que, tanto que ao Gentio se apresenta,
A tento nela os olhos apacenta.

75
Pelo que vê pergunta; mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente
E que aquele deleite que tanto ama
A seita Epicureia experimente.
Dos espumantes vasos se derrama
O licor que Noé mostrara à gente;
Mas comer o Gentio não pretende,
Que a seita que seguia lho defende.

76
A trombeta, que, em paz, no pensamento
Imagem faz de guerra, rompe os ares;
Co fogo o diabólico instrumento
Se faz ouvir no fundo lá dos mares.
Tudo o Gentio nota; mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.


77
Alça-se em pé, co ele o Gama junto,
Coelho, de outra parte, e o Mauritano;
Os olhos põe no bélico trasunto
De um velho branco, aspeito venerando,
Cujo nome não pode ser defunto,
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita;
Um ramo, por insígnia, na direita.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.

79
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora exprimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cánace, que à morte se condena,
Nüa mão sempre a espada e noutra a pena;

80
Agora, com pobreza avorrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo, mais que nunca, derribado;
Agora, às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se
Que pera o Rei judaico acrecentar-se.

81
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram!

82
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assi sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória,
Que merecerem ter eterna glória!

83
Pois logo, em tantos males, é forçado
Que só vosso favor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.

84
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio interesse,
Imigo da divina e humana Lei.
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;

85
Nenhum que use de seu poder bastante
Pera servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
Nem, Camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei, no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo!

86
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende, e cuida que é prudente,
Pera taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa.

87
Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Onde perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
Por tornar ao trabalho, mais folgado.

 

 

 

 

 

28/11/2005