Luís Vaz de Camões
Canto VIII (Parte I)
1
Na primeira figura se detinha
O Catual, que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O Mauritano sábio lhe interpreta:
2
«Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspeitos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos.
Antigos são, mas inda resplandecem
Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso Reino "Lusitânia" chama.
3
Foi filho e companheiro do Tebano
Que tão diversas partes conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as armas, que contino usou.
Do Douro, Guadiana o campo ufano,
Já dito Elísio, tanto o contentou,
Que ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.
4
O ramo que lhe vês, pera divisa,
O verde tirso foi, de Baco usado,
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu companheiro e filho amado.
Vês outro, que do Tejo a terra pisa,
Despois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica?
5
Ulisses é, o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda,
Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá na Europa Lisboa ingente funda.»
«Quem será estoutro cá, que o campo arrasa
De mortos, com presença furibunda?
Grandes batalhas tem desbaratadas,
Que as Águias nas bandeiras tem pintadas.»
6
Assi o Gentio diz. Responde o Gama:
«Este que vês, pastor já foi de gado;
Viriato sabemos que se chama,
Destro na lança mais que no cajado.
Injuriada tem de Roma a fama,
Vencedor invencíbil, afamado.
Não tem com ele, não, nem ter puderam,
O primor que com Pirro já tiveram.
7
«Com força, não; com manha vergonhosa
A vida lhe tiraram, que os espanta;
Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,
Às vezes leis magnânimas quebranta.
Outro está aqui que, contra a pátria irosa,
Degradado, connosco se alevanta.
Escolheu bem com quem se alevantasse,
Pera que eternamente se ilustrasse.
8
«Vês, connosco também vence as bandeiras
Dessas aves de Júpiter validas;
Que já naquele tempo as mais guerreiras
Gentes de nós souberam ser vencidas.
Olha tão sutis artes e maneiras
Pera adquirir os povos, tão fingidas:
A fatídica cerva que o avisa.
Ele é Sertório, e ela a sua divisa.
9
«Olha estoutra bandeira, e vê pintado
O grão progenitor dos Reis primeiros.
Nós Húngaro o fazemos, porém nado
Crêem ser em Lotaríngia os estrangeiros.
Despois de ter, cos Mouros, superado
Galegos e Leoneses, cavaleiros,
À Casa Santa passa o santo Henrique,
Por que o tronco dos Reis se santifique.»
10
«Quem é, me dize, estoutro que me espanta
(Pergunta o Malabar maravilhado),
Que tantos esquadrões, que gente tanta,
Com tão pouca, tem roto e destroçado?
Tantos muros aspérrimos quebranta,
Tantas batalhas dá, nunca cansado,
Tantas coroas tem, por tantas partes,
A seus pés derribadas, e estandartes?»
11
«Este é o primeiro Afonso (disse o Gama)
Que todo Portugal aos Mouros toma;
Por quem no Estígio lago jura a Fama
De mais não celebrar nenhum de Roma.
Este é aquele zeloso, a quem Deus ama,
Com cujo braço o Mouro imigo doma,
Pera quem de seu Reino abaxa os muros,
Nada deixando já pera os futuros.
12
«Se César, se Alexandre Rei, tiveram
Tão pequeno poder, tão pouca gente,
Contra tantos imigos, quantos eram
Os que desbaratava este excelente,
Não creias que seus nomes se estenderam
Com glórias imortais tão largamente;
Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,
Vê que os de seus vassalos são notáveis.
13
«Este que vês olhar, com gesto irado,
Pera o rompido aluno mal sofrido,
Dizendo-lhe que o exército espalhado
Recolha, e torne ao campo, defendido;
Torna o moço, do velho acompanhado,
Que vencedor o torna de vencido;
Egas Moniz se chama o forte velho,
Pera leais vassalos claro espelho.
14
«Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se,
A corda ao colo, nu de seda e pano,
Porque não quis o moço sujeitar-se,
Como ele prometera, ao Castelhano.
Fez com siso e promessas levantar-se
O cerco, que já estava soberano.
Os filhos e mulher obriga à pena;
Pera que o senhor salve, a si condena.
15
«Não fez o Cônsul tanto, que cercado
Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,
Quando a passar por baxo foi forçado
Do Samnítico jugo triunfante.
Este, pelo seu povo injuriado,
A si se entrega só, firme e constante;
Estoutro a si e os filhos naturais
E a consorte sem culpa, que dói mais.
16
«Vês este que, saindo da cilada,
Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?
Já o Rei tem preso e a vila descercada;
Ilustre feito, digno de Mavorte!
Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
No mar também aos Mouros dando a morte,
Tomando-lhe as galés, levando a glória
Da primeira marítima vitória.
17
«É Dom Fuas Roupinho, que na terra
E no mar resplandece juntamente,
Co fogo que acendeu junto da serra
De Abila, nas galés da Maura gente.
Olha como, em tão justa e santa guerra,
De acabar pelejando está contente.
Das mãos dos Mouros entra a felice alma,
Triunfando, nos Céus, com justa palma.
18
«Não vês um ajuntamento, de estrangeiro
Trajo, sair da grande armada nova,
Que ajuda a combater o Rei primeiro
Lisboa, de si dando santa prova?
Olha Henrique, famoso cavaleiro,
A palma que lhe nasce junto à cova.
Por eles mostra Deus milagre visto;
Germanos são os Mártires de Cristo.
19
«Um Sacerdote vê, brandindo a espada
Contra Arronches, que toma, por vingança
De Leiria, que de antes foi tomada
Por quem por Mafamede enresta a lança:
É Teotónio Prior. Mas vê cercada
Santarém, e verás a segurança
Da figura nos muros que, primeira
Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.
20
«Vê-lo cá, donde Sancho desbarata
Os Mouros de Vandália em fera guerra;
Os imigos rompendo, o alferes mata
E Hispálico pendão derriba em terra.
Mem Moniz é, que em si o valor retrata
Que o sepulcro do pai cos ossos cerra,
Digno destas bandeiras, pois sem falta
A contrária derriba, e a sua exalta.
21
«Olha aquele que dece pela lança,
Com as duas cabeças dos vigias,
Onde a cilada esconde, com que alcança
A cidade, por manhas e ousadias.
Ela por armas toma a semelhança
Do cavaleiro que as cabeças frias
Na mão levava (feito nunca feito!).
Giraldo Sem Pavor é o forte peito.
22
«Não vês um Castelhano, que, agravado
De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo
Dos de Lara, cos Mouros é deitado,
De Portugal fazendo-se inimigo?
Abrantes vila toma, acompanhado
Dos duros Infiéis que traz consigo.
Mas vê que um Português com pouca gente
O desbarata e o prende ousadamente.
23
«Martim Lopes se chama o cavaleiro
Que destes levar pode a palma e o louro.
Mas olha um Eclesiástico guerreiro,
Que em lança de aço torna o bago de ouro.
Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro
Em não negar batalha ao bravo Mouro?
Olha o sinal no Céu, que lhe aparece,
Com que nos poucos seus o esforço crece.
24
«Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha
Rotos, cos outros dous, e não de espaço.
Rotos? Mas antes mortos; maravilha
Feita de Deus, que não de humano braço.
Vês? Já a vila de Alcáçare se humilha,
Sem lhe valer defesa ou muro de aço,
A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
Que a coroa de palma ali coroa.
25
«Olha um Mestre que dece de Castela,
Português de nação, como conquista
A terra dos Algarves, e já nela
Não acha quem por armas lhe resista.
Com manha, esforço e com benigna estrela,
Vilas, castelos, toma, a escala vista.
Vês Tavila tomada aos moradores,
Em vingança dos sete caçadores?
26
«Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha
Silves, que ele ganhou com força ingente.
É Dom Paio Correia, cuja manha
E grande esforço faz enveja à gente.
Mas não passes os três que em França e Espanha
Se fazem conhecer perpetuamente
Em desafios, justas e torneos,
Nelas deixando públicos troféus.
27
«Vê-los co nome vêm de aventureiros
A Castela, onde o preço sós levaram
Dos jogos de Belona verdadeiros,
Que com dano de alguns se exercitaram.
Vê mortos os soberbos cavaleiros
Que o principal dos três desafiaram,
Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,
Que pode não temer a lei Leteia.
28
«Atenta num que a fama tanto estende
Que de nenhum passado se contenta,
Que a pátria, que de um fraco fio pende,
Sobre seus duros ombros a sustenta.
Não no vês, tinto de ira, que reprende
A vil desconfiança, inerte e lenta,
Do povo, e faz que tome o doce freio
De Rei seu natural, e não de alheio?
29
«Olha: por seu conselho e ousadia,
De Deus guiada só e de santa estrela,
Só, pode o que impossíbil parecia:
Vencer o povo ingente de Castela.
Vês, por indústria, esforço e valentia,
Outro estrago e vitória, clara e bela,
Na gente, assi feroz como infinita,
Que entre o Tarteso e Guadiana habita?
30
«Mas não vês quase já desbaratado
O poder Lusitano, pela ausência
Do Capitão devoto, que, apartado,
Orando invoca a suma e trina Essência?
Vê-lo com pressa já dos seus achado,
Que lhe dizem que falta resistência
Contra poder tamanho, e que viesse
Por que consigo esforço aos fracos desse.
31
«Mas olha com que santa confiança,
Que inda não era tempo, respondia,
Como quem tinha em Deus a segurança
Da vitória que logo lhe daria.
Assi Pompílio, ouvindo que a possança
Dos imigos a terra lhe corria,
A quem lhe a dura nova estava dando,
"Pois eu (responde) estou sacrificando."
32
«Se quem com tanto esforço em Deus se atreve
Ouvir quiseres como se nomeia,
Português Cipião chamar-se deve;
Mas mais de Dom Nuno Álvares se arreia,
Ditosa pátria que tal filho teve!
Mas antes, pai; que, enquanto o Sol rodeia
Este globo de Ceres e Neptuno,
Sempre suspirará por tal aluno.
33
«Na mesma guerra vê que presas ganha
Estoutro Capitão de pouca gente;
Comendadores vence e o gado apanha
Que levavam roubado, ousadamente,
Outra vez vê que a lança em sangue banha
Destes, só por livrar, co amor ardente,
O preso amigo, preso por leal:
Pêro Rodrigues é do Landroal.
34
«Olha este desleal e como paga
O perjúrio que fez e vil engano;
Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga
E faz vir a passar o último dano;
De Xerez rouba o campo e quase alaga
Co sangue de seus donos Castelhano.
Mas olha Rui Pereira, que co rosto
Faz escudo às galés, diante posto.
35
«Olha que dezessete Lusitanos,
Neste outeiro subidos, se defendem,
Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
Que em derredor, pelos tomar, se estendem;
Porém logo sentiram, com seus danos,
Que não só se defendem, mas ofendem.
Digno feito de ser, no mundo, eterno,
Grande no tempo antigo e no moderno!
36
«Sabe-se antigamente que trezentos
Já contra mil Romanos pelejaram,
No tempo que os viris atrevimentos
De Viriato tanto se ilustraram,
E deles alcançando vencimentos
Memoráveis, de herança nos deixaram
Que os muitos, por ser poucos, não temamos;
O que despois mil vezes amostramos.
37
«Olha cá dous Infantes, Pedro e Henrique,
Progénie generosa de Joane;
Aquele faz que fama ilustre fique
Dele em Germânia, com que a morte engane;
Este, que ela nos mares o pubrique
Por seu descobridor, e desengane
De Ceita a Maura túmida vaidade,
Primeiro entrando as portas da cidade.
38
«Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta
Dous cercos contra toda a Barbaria?
Vês outro Conde está, que representa
Em terra Marte, em forças e ousadia.
De poder defender se não contenta
Alcácere, da ingente companhia,
Mas do seu Rei defende a cara vida,
Pondo por muro a sua, ali perdida.
39
«Outros muitos verias, que os pintores
Aqui também por certo pintariam;
Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:
Honra, prémio, favor, que as artes criam;
Culpa dos viciosos sucessores,
Que degeneram, certo, e se desviam
Do lustre e do valor dos seus passados,
Em gostos e vaidades atolados.
40
«Aqueles pais ilustres que já deram
Princípio à geração que deles pende,
Pela virtude muito antão fizeram,
E por deixar a casa que descende.
Cegos, que, dos trabalhos que tiveram,
Se alta fama e rumor deles se estende,
Escuros deixam sempre seus menores,
Com lhe deixar descansos corruptores.
41
«Outros também há grandes e abastados,
Sem nenhum tronco ilustre donde venham.
Culpa de Reis, que às vezes a privados
Dão mais que a mil que esforço e saber tenham.
Estes os seus não querem ver pintados,
Crendo que cores vãs lhe não convenham,
E, como a seu contrairo natural,
À pintura que fala querem mal.
42
«Não nego que há, contudo, descendentes
De generoso tronco e casa rica,
Que, com costumes altos e excelentes,
Sustentam a nobreza que lhe fica;
E, se a luz dos antigos seus parentes
Neles mais o valor não clarifica,
Não falta, ao menos, nem se faz escura;
Mas destes acha poucos a pintura.»
43
Assi está declarando os grandes feitos
O Gama, que ali mostra a vária tinta
Que a douta mão tão claros, tão perfeitos,
Do singular artífice ali pinta.
Os olhos tinha prontos e direitos
O Catual na história bem distinta;
Mil vezes perguntava, e mil ouvia
As gostosas batalhas que ali via.
44
Mas já a luz se mostrava duvidosa,
Porque a alâmpada grande se escondia
Debaxo do Horizonte, e, luminosa,
Levava aos Antípodas o dia,
Quando o Gentio e a gente generosa
Dos Naires da nau forte se partia,
A buscar o repouso que descansa
Os lassos animais, na noite mansa.
45
Entretanto, os arúspices famosos
Na falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêem sempre os casos duvidosos
Por sinais diabólicos e indícios,
Mandados do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam a arte e seus ofícios,
Sobre esta vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da ignota Espanha.
46
Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro
De como a nova gente lhe seria
Jugo perpétuo, eterno cativeiro,
Destruição de gente e de valia.
Vai-se espantado o atónito agoureiro
Dizer ao Rei (segundo o que entendia)
Os sinais temerosos que alcançara
Nas entranhas das vítimas que oulhara.
47
A isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da Lei de Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e noto
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios inda se não dece.
48
E diz-lhe assi: «Guardai-vos, gente minha,
Do mal que se aparelha pelo imigo
Que pelas águas húmidas caminha,
Antes que esteis mais perto do perigo.»
Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
Espantado do sonho; mas consigo
Cuida que não é mais que sonho usado.
Torna a dormir, quieto e sossegado.
49
Torna Baco, dizendo: «Não conheces
O grão legislador que a teus passados
Tem mostrado o preceito a que obedeces,
Sem o qual fôreis muitos baptizados?
Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?
Pois saberás que aqueles que chegados
De novo são, serão mui grande dano
Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.
50
Enquanto é fraca a força desta gente,
Ordena como em tudo se resista,
Porque, quando o Sol sai, facilmente
Se pode nele pôr a aguda vista;
Porém, despois que sobe claro e ardente,
Se agudeza dos olhos o conquista,
Tão cega fica, quanto ficareis,
Se raízes criar lhe não tolheis.»
|