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Luís Vaz de Camões



Canto X (Parte I)



1
Mas já o claro amador da Larisseia
Adúltera inclinava os animais
Lá pera o grande lago que rodeia
Temistitão, nos fins Ocidentais.
O grande ardor do Sol, Favónio enfreia
Co sopro que, nos tanques naturais,
Encrespa a água serena, e despertava
Os lírios e jasmins, que a calma agrava,

2
Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas de altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

3
Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentavam dous e dous, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, de ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.

4
Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura da água fria.

5
Mil práticas alegres se tocavam,
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cüa voz dhüa angélica Sirena.

6
Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,
Que pelos altos paços vão soando,
Em consonância igual, os instrumentos
Suaves vêm a um tempo conformando.
Um súbito silêncio enfreia os ventos,
E faz ir docemente murmurando
As águas, e, nas casas naturais,
Adormecer os brutos animais.

7
Com doce voz está subindo ao Céu
Altos varões que estão por vir ao mundo,
Cujas claras Ideias viu Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo,
Que Júpiter em dom lho concedeu
Em sonhos, e despois no Reino fundo,
Vaticinando, o disse, e na memória
Recolheu logo a Ninfa a clara história.

8
Matéria é de coturno, e não de soco,
A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual Iopas não soube, ou Demodoco,
Entre os Feaces um, outro em Cartago.
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.

9
Vão os anos decendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha
Das Musas, co que quero à nação minha.

10
Cantava a bela Deusa que viriam
Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
Armadas que as ribeiras venceriam
Por onde o Oceano Índico suspira;
E que os Gentios Reis que não dariam
A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
Provariam do braço duro e forte,
Até render-se a ele ou logo à morte.

11
Cantava dum que tem nos Malabares
Do sumo sacerdócio a dignidade,
Que, só por não quebrar cos singulares
Barões os nós que dera de amizade,
Sofrerá suas cidades e lugares,
Com ferro, incêndios, ira e crueldade,
Ver destruir do Samorim potente,
Que tais ódios terá co a nova gente.

12
E canta como lá se embarcaria
Em Belém o remédio deste dano,
Sem saber o que em si ao mar traria,
O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.
O peso sentirão, quando entraria,
O curvo lenho e o férvido Oceano,
Quando mais na água os troncos, que gemerem,
Contra sua natureza se meterem.

13
Mas, já chegado aos fins Orientais
E deixado em ajuda do gentio
Rei de Cochim, com poucos naturais,
Nos braços do salgado e curvo rio,
Desbaratará os Naires infernais,
No passo Cambalão, tornando frio
De espanto o ardor imenso do Oriente,
Que verá tanto obrar tão pouca gente.

14
Chamará o Samorim mais gente nova;
Virão Reis de Bipur e de Tanor,
Das serras de Narsinga, que alta prova
Estarão prometendo a seu senhor;
Fará que todo o Naire, enfim, se mova
Que entre Calecu jaz e Cananor,
De ambas as Leis imigas pera a guerra:
Mouros por mar, Gentios pola terra.

15
E todos outra vez desbaratando,
Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,
A grande multidão que irá matando
A todo o Malabar terá admirado.
Cometerá outra vez, não dilatando,
O Gentio os combates, apressado,
Injuriando os seus, fazendo votos
Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.

16
Já não defenderá somente os passos,
Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;
Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos
Aqueles que as cidades fazem rasas,
Fará que os seus, de vida pouco escassos,
Cometam o Pacheco, que tem asas,
Por dous passos num tempo; mas, voando
Dum noutro, tudo irá desbaratando.

17
Virá ali o Samorim, por que em pessoa
Veja a batalha, e os seus esforce e anime;
Mas um tiro, que com zunido voa,
De sangue o tingirá no andor sublime.
Já não verá remédio ou manha boa
Nem força, que o Pacheco muito estime;
Inventará traições e vãos venenos,
Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.

18
Que tornará a vez sétima (cantava)
Pelejar co invicto e forte Luso,
A quem nenhum trabalho pesa e agrava,
Mas, contudo, este só o fará confuso.
Trará pera a batalha, horrenda e brava,
Máquinas de madeiros fora de uso,
Pera lhe abalroar as caravelas,
Que até li vão lhe fora cometê-las.

19
Pela água levará serras de fogo
Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;
Mas a militar arte e engenho logo
Fará ser vã a braveza com que venha.
«Nenhum claro barão no Márcio jogo,
Que nas asas da Fama se sustenha,
Chega a este, que a palma a todos toma,
E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.

20
«Porque tantas batalhas, sustentadas
Com muito pouco mais de cem soldados,
Com tantas manhas e artes inventadas,
Tantos Cães, não imbeles, profligados,
Ou parecerão fábulas sonhadas,
Ou que os celestes Coros, invocados,
Decerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração.

21
«Aquele que nos campos Maratónios
O grão poder de Dúrio estrue e rende,
Ou quem com quatro mil Lacedemónios,
O passo de Termópilas defende,
Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,
Que com todo o poder Tusco contende
Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,
Foi como este na guerra forte e sábio.»

22
Mas neste passo a Ninfa, o som canoro
Abaxando, fez ronco e entristecido,
Cantando em baxa voz, envolta em choro,
O grande esforço mal agardecido.
«Ó Belisário (disse) que no coro
Das Musas serás sempre engrandecido,
Se em ti viste abatido o bravo Marte,
Aqui tens com quem podes consolar-te.

23
«Aqui tens companheiro, assi nos feitos
Como no galardão injusto e duro;
Em ti e nele veremos altos peitos
A baxo estado vir, humilde e escuro.
Morrer nos hospitais, em pobres leitos,
Os que ao Rei e à Lei servem de muro!
Isto fazem os Reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade.

24
«Isto fazem os Reis, quando embebidos
Nüa aparência branda que os contenta:
Dão os prémios, de Aiace merecidos,
A língua vã de Ulisses fraudulenta.
Mas vingo-me: que os bens mal repartidos
Por quem só doces sombras apresenta,
Se não os dão a sábios cavaleiros,
Dão-nos logo a avarentos lisonjeiros.

25
«Mas tu, de quem ficou tão mal pagado
Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,
Se não és pera dar-lhe honroso estado,
É ele pera dar-te um Reino rico.
Enquanto for o mundo rodeado
Dos Apolíneos raios, eu te fico
Que ele seja, entre a gente, ilustre e claro,
E tu nisto culpado por avaro.

26
«Mas eis outro (cantava) intitulado
Vem com nome Real, e traz consigo
O filho, que no mar será ilustrado,
Tanto como qualquer Romano antigo.
Ambos darão com braço forte, armado,
A Quíloa fértil, áspero castigo,
Fazendo nela Rei leal e humano,
Deitado fora o pérfido tirano.

27
«Também farão Mombaça, que se arreia
De casas sumptuosas e edifícios,
Co ferro e fogo seu queimada e feia,
Em pago dos passados malefícios.
Despois, na costa da Índia, andando cheia
De lenhos inimigos e artifícios
Contra os Lusos, com velas e com remos
O mancebo Lourenço fará estremos.

28
«Das grandes naus do Samorim potente,
Que encherão todo o mar, co a férrea péla,
Que sai com trovão do cobre ardente,
Fará pedaços leme, mastro, vela.
Despois, lançando arpéus ousadamente
Na capitania imiga, dentro nela
Saltando, a fará, só com lança e espada,
De quatrocentos Mouros despejada.

29
«Mas de Deus a escondida providência
(Que ela só sabe o bem de que se serve)
O porá onde esforço nem prudência
Poderá haver que a vida lhe reserve.
Em Chaul, onde em sangue e resistência
O mar todo com fogo e ferro ferve,
Lhe farão que com vida se não saia
As armadas de Egipto e de Cambaia.

30
«Ali, o poder de muitos inimigos
(Que o grande esforço só com força rende),
Os ventos que faltaram, e os perigos
Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.
Aqui ressurjam todos os Antigos,
A ver o nobre ardor que aqui se aprende:
Outro Ceva verão, que, espedaçado,
Não sabe ser rendido nem domado.

31
«Com toda hüa coxa fora, que em pedaços
Lhe leva um cego tiro que passara,
Se serve inda dos animosos braços
E do grão coração que lhe ficara;
Até que outro pelouro quebra os laços
Com que co alma o corpo se liara:
Ela, solta, voou da prisão fora
Onde súbito se acha vencedora.

32
«Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,
Na qual tu mereceste paz serena;
Que o corpo, que em pedaços se apresenta,
Quem o gerou, vingança já lhe ordena:
Que eu ouço retumbar a grão tormenta,
Que vem já dar a dura e eterna pena,
De esperas, basiliscos e trabucos,
A Cambaicos cruéis e Mamelucos.

33
«Eis vem o pai, com ânimo estupendo,
Trazendo fúria e mágoa por antolhos,
Com que o paterno amor lhe está movendo
Fogo no coração, água nos olhos.
A nobre ira lhe vinha prometendo
Que o sangue fará dar pelos giolhos
Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.

34
«Qual o touro cioso, que se ensaia
Pera a crua peleja, os cornos tenta
No tronco dum carvalho ou alta faia
E, o ar ferindo, as forças exprimenta:
Tal, antes que no seio de Cambaia
Entre Francisco irado, na opulenta
Cidade de Dabul, a espada afia,
Abaxando-lhe a túmida ousadia.

35
«E logo, entrando fero na enseada
De Dio, ilustre em cercos e batalhas,
Fará espalhar a fraca e grande armada
De Calecu, que remos tem por malhas.
A de Melique Iaz, acautelada,
Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,
Fará ir ver o frio e fundo assento,
Secreto leito do húmido elemento.

36
«Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,
A fúria esperará dos vingadores,
Verá braços e pernas ir nadando
Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.
Raios de fogo irão representando,
No cego ardor, os bravos domadores.
Quanto ali sentirão olhos e ouvidos
É fumo, ferro, flamas e alaridos.

37
«Mas ah! que desta próspera vitória,
Com que despois virá ao pátrio Tejo,
Quase lhe roubará a famosa glória
Um sucesso, que triste e negro vejo.
O Cabo Tormentório, que a memória
Cos ossos guardará, não terá pejo
De tirar deste mundo aquele esprito,
Que não tiraram toda a Índia e Egipto.

38
«Ali, Cafres selvagens poderão
O que destros imigos não puderam;
E rudos paus tostados sós farão
O que arcos e pelouros não fizeram.
Ocultos os juízos de Deus são;
As gentes vãs, que não nos entenderam,
Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,
Sendo só providência de Deus pura.

39
«Mas oh! que luz tamanha que abrir sinto
(Dizia a Ninfa,e a voz alevantava)
Lá no mar de Melinde, em sangue tinto
Das cidades de Lamo, de Oja e Brava,
Pelo Cunha também, que nunca extinto
Será seu nome em todo o mar que lava
As ilhas do Austro, e praias que se chamam
De São Lourenço, e em todo o sul se afamam!

40
«Esta luz é do fogo e das luzentes
Armas, com que Albuquerque irá amansando
De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,
Que refusam o jugo honroso e brando.
Ali verão as setas estridentes
Reciprocar-se, a ponta no ar virando,
Contra quem as tirou, que Deus peleja
Por quem estende a Fé da Madre Igreja.

41
«Ali do sal os montes não defendem
De corrupção os corpos no combate,
Que mortos pela praia e mar se estendem
De Gerum, de Mascate e Calaiate;
Até que a força só de braço aprendem
A abaxar a cerviz, onde se lhe ate
Obrigação de dar o reino inico
Das perlas de Barém tributo rico.

42
«Que gloriosas palmas tecer vejo,
Com que Vitória a fronte lhe coroa,
Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,
Toma a ilha ilustríssima de Goa!
Despois, obedecendo ao duro ensejo,
A deixa, e ocasião espera boa
Com que a torne a tomar, que esforço e arte
Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.

43
«Eis já sobre ela torna, e vai rompendo
Por muros, fogo, lanças e pelouros,
Abrindo com a espada o espesso e horrendo
Esquadrão de Gentios e de Mouros.
Irão soldados ínclitos, fazendo
Mais que leões famélicos e touros,
Na luz que sempre celebrada e dina
Será da Egípcia santa Caterina.

44
«Nem tu menos fugir poderás deste,
Posto que rica e posto que assentada
Lá no grémio da Aurora, onde naceste,
Opulenta Malaca nomeada.
As setas venenosas que fizeste,
Os crises com que já te vejo armada,
Malaios namorados, Jaus valentes,
Todos farás ao Luso obedientes.»

45
Mais estanças cantara esta Sirena
Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,
Mas alembrou-lhe hüa ira que o condena,
Posto que a fama sua o mundo cerque.
O grande Capitão que o Fado ordena
Que, com trabalhos, glória eterna merque,
Mais há-de ser um brando companheiro
Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

46
Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

47
Não será a culpa abominoso incesto,
Nem violento estupro em virgem pura,
Nem menos adultério desonesto,
Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.
Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou de usado a crueza fera e dura,
Cos seus hüa ira insana não refreia,
Põe, na fama alva, noda negra e feia.

48
Viu Alexandre Apeles namorado
Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,
Não sendo seu soldado exprimentado,
Nem vendo-se num cerco duro e urgente.
Sentiu Ciro que andava já abrasado
Araspas, de Panteia, em fogo ardente,
Que ele tomara em guarda, e prometia
Que nenhum mau desejo o venceria;

49
Mas, vendo o ilustre Persa que vencido
Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,
Levemente o perdoa, e foi servido
Dele num caso grande, em recompensa.
Per força, de Judita foi marido
O férreo Balduíno; mas dispensa
Carlos, pai dela, posto em cousas grandes,
Que viva e povoador seja de Frandes.

50
Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,
De Soares cantava, que as bandeiras
Faria tremular e pôr espanto
Pelas roxas Arábicas ribeiras.
«Medina abominábil teme tanto,
Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras
Praias de Abássia; Barborá se teme
Do mal de que o empório Zeila geme.


 

 

 

 

 

28/11/2005