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Luís Vaz de Camões



Canção V




Já a roxa manhã clara
do Oriente as portas vem abrindo,
dos montes descobrindo
a negra escuridão da luz avara.
O Sol, que nunca pára,
de sua alegre vista saudoso,
trás ela, pressuroso,
nos cavalos cansados do trabalho,
que respiram nas ervas fresco orvalho,
se estende, claro, alegre e luminoso.
Os pássaros, voando
de raminho em raminho, modulando
com üa suave e doce melodia,
o claro dia estão manifestando.

A manhã bela e amena
seu rosto descobrindo, a espessura
se cobre de verdura
branda, suave, angélica, serena.
Ó deleitosa pena,
ó efeito de Amor tão preeminente
que permite e consente
que, onde quer que me ache e onde esteja,
o seráfico gesto sempre veja,
por quem de viver triste sou contente!
Mas tu, Aurora pura,
de tanto bem dá graças à ventura,
pois as foi pôr em ti tão diferentes,
que representes tanta fermosura.

A luz suave e leda
a meus olhos me mostra por quem mouro,
e os cabelos de ouro
não igual' aos que vi, mas arremeda:
esta é a luz que arreda
a negra escuridão do sentimento
ao doce pensamento;
o orvalho das flores delicadas
são nos meus olhos lágrimas cansadas,
que eu choro co prazer de meu tormento;
os pássaros que cantam
os meus espritos são, que a voz levantam,
manifestando o gesto peregrino
com tão divino som que o mundo espantam.

Assi como acontece
a quem a cara vida esta perdendo,
que, enquanto vai morrendo,
algüa visão santa lhe aparece;
a mim, em quem falece
a vida, que sois vós, minha Senhora,
a esta alma que em vós mora
- enquanto da prisão se está apartando -
vos estais juntamente apresentando
em forma da fermosa e roxa Aurora.
Ó ditosa partida!
Ó glória soberana, alta e subida,
se mo não impedir o meu desejo;
porque o que vejo, enfim, me torna a vida!

Porém a Natureza,
que nesta vida pura se mantinha,
me falta tão asinha,
quão asinha o Sol falta à redondeza.
Se houverdes que é fraqueza
morrer em tão penoso e triste estado,
Amor será culpado,
ou vós, onde ele vive tão isento
que causastes tão longo apartamento,
por que perdesse a vida co cuidado.
Que se viver não posso
- um homem sou só, de carne e osso –,
esta vida que perco, Amor ma deu;
que não sou meu: se mouro, o dano é vosso.

Canção de cisne, feita n'hora extrema:
na dura pedra fria
da memória te deixo, em companhia
do letreiro de minha sepultura;
que a sombra escura já me impede o dia.


 

 

 

 

 

28/11/2005