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Luís Vaz de Camões




Intitulada dos Faunos, dirigida a D. António de Noronha:




As doces cantilenas que cantavam
os semicapros deuses, amadores
das Napeias, que os montes habitavam,

cantando escreverei; que, se os amores
aos silvestres deuses maltrataram,
já ficam desculpados os pastores.

Vós, Senhor Dom António, aonde acharam
o claro Apolo e Marte um ser perfeito,
em que suas altas mentes assinaram,

se meu engenho é rudo e imperfeito,
bem sabe onde se salva, pois pretende
levantar coa causa o baixo efeito.

Em vós minha fraqueza se defende;
em vós instila a fonte de Pegaso
o que meu canto pelo mundo estende.

Vedes que altas Musas do Parnaso
cantando vos estão na doce lira,
tomando-me das mãos tão alto caso.

Vedes o louro Apolo, que me tira
de louvar vossa estirpe, e escurece
o que em vosso louvor meu canto aspira:

ou por me haver enveja me falece,
ou por não ver soar na frauta ruda
o que a sonora cítara merece.

Pois sei-vos, Senhor, dizer que a língua muda,
enquanto Progne triste o sentimento
da corrompida irmã co pranto ajuda;

e enquanto Galateia ao manso vento
solta os cabelos louros da cabeça;
e Títiro nas sombras faz assento;

e enquanto flor aos campos não faleça
– se não recebeis isto por afronta –;
fará que o Douro e o Ganges vos conheça.

E já que a língua nisto fica pronta,
consenti que a minha Égloga se conte
enquanto Apolo as vossas cousas conta.

No cume do Parnaso, duro monte
de silvestre arvoredo rodeado,
nace üa cristalina e clara fonte,

donde um manso ribeiro derivado,
por cima de alvas pedras, mansamente
vai correndo, suave e sossegado.

O murmurar das ondas excelente
os pássaros excita que, cantando,
fazem o monte verde mais contente.

Tão claras vão as águas caminhando
que, no fundo, as pedrinhas delicadas
se pode, üa e üa, estar contando.

Não se verão ao redor pisadas
de fera ou de pastor que ali chegasse,
porque do espesso monte são vedadas.

Erva se não verá que ali criasse
o monte ameno, triste ou venenosa,
senão que lá no centro as igualasse:

o roxo lírio a par da branca rosa,
a cecém branca e a flor que dos amantes
a cor tem magoada e saudosa;

ali se vêem os mirtos circunstantes
que a cristalina Vénus encobriram
da companha dos Faunos petulantes.

Hortelã, manjarona, ali respiram,
onde nem frio inverno ou quente estio
as murcharam jamais, ou secas viram.

Destarte vai seguindo o curso o rio,
o monte inabitado, e o deserto,
sempre com verdes árvores sombrio.

Aqui üa linda Ninfa por acerto
perdida da fragueira companhia,
a quem este alto monte era encoberto,

cansada já da caça vindo um dia,
quis descansar à sombra da floresta,
e tirar nas mãos alvas da água fria.

E vendo a novidade manifesta
do sítio, e como as árvores co vento
as calmas defendiam da alta sesta;

das aves o lascivo movimento,
que, em seus módulos versos ocupadas,
as asas dão ao doce pensamento;

tendo notado tudo, já passadas
as horas da grã sesta se tornou
a buscar as irmãs, no centro, amadas.

Despois que largamente lhes cantou
do não visto lugar que perto estava
que tanto por extremo a namorou,

que ao outro dia fossem lhes rogava
a lavar-se naquela fonte amena,
que tão fermosas águas distilava.

Já tinha dado um giro a luz serena
do grão pastor de Admeto, e já nacia
aos ditosos amantes nova pena,

quando as fermosas Ninfas à porfia
para o lugar do monte caminhavam,
rompendo a manhã roxa, alegre e fria.

De üa os cabelos louros se espalhavam
pelo fermoso colo, sem concerto,
com dous mil nós suaves se enlaçavam;

outra, levando o colo descoberto,
por mais despejo, em tranças os atara,
havendo por pesado o desconcerto.

Dinamene e Efire, a quem topara
nuas Febo num rio, e encobriram
seus delicados corpos n'água clara;

Sirinx e Nise que das mãos fugiram
do Tegeu Pã, Amanta e Elisa,
destras nos arcos, mais que quantas tiram;

a linda Daliana, com Belisa,
ambas vindas do Tejo, que como elas
nenhüa tão fermosa as ervas pisa.

Todas estas angélicas donzelas
pelo viçoso monte alegres iam,
quais no céu largo as nítidas estrelas.

Mas dous silvestres deuses, que traziam
o pensamento em duas ocupado,
a quem de longe mais que a si queriam,

não lhe ficava monte, vale ou prado,
nem árvore, por onde quer que andavam,
que não soubesse deles seu cuidado.

Quantas vezes os rios que passavam
detiveram seu curso, ouvindo os danos
que até os duros montes magoavam!

Quantas vezes amor de tantos anos
abrandara qualquer vontade isenta,
se, em Ninfas, corações houvesse humanos!

Mas quem de seu cuidado se contenta,
ofereça de longe a paciência,
que Amor de alegres mágoas se sustenta.

Que o moço idálio quis nesta ciência
que se compadecessem dous contrários,
diga-o quem tiver dele experiência.

Indo os deuses, enfim, por montes vários,
exercitando os olhos saudosos,
ao cristalino rio tributários,

toparam dos pés alvos e mimosos
as pisadas na terra conhecidas,
as quais foram seguindo, pressurosos.

Mas encontrando as Ninfas que, despidas,
na clara fonte estavam, não cuidando
que de alguém fossem vistas ou sentidas,

deixaram-se estar quedos, contemplando
as feições nunca vistas, de maneira
que vissem sem ser vistos, espreitando.

Porém a espessa mata, mensageira
da futura cilada, co rugido
dos raminhos düa áspera aveleira,

mostrando a um dos deuses escondido
todas tamanha grita alevantaram
como se fosse o monte destruído.

E logo assi despidas se lançaram
pela espessura, tão ligeiramente
que mais então que os ventos avoaram.

Qual o banho das pombas, quando sente
a fermosa águia, cuja vista pura
não obedece ao sol resplandecente,

empresta-lhe o temor da morte dura
nas asas nova força e, não parando,
cortam o ar e rompem a espessura;

destarte vão as Ninfas que, deixando
de seu despojo os ramos carregados,
nuas por entre as silvas vão voando.

Mas os amantes já desesperados
que, para as alcançar, enfim se viam
nada dos pés caprinos ajudados,

com amorosos brados as seguiam.
Um só, que o outro ainda não tomava
fôlego algum, da pressa que traziam;
mas despois, descansado, se queixava:

PRIMEIRO SÁTIRO

«Ah, Ninfas fugitivas,
que só por não usar humanidade,
os perigos dos matos não temeis!
Para que sois esquivas?
Que inda de nós não peço piadade,
mas dessas alvas carnes que ofendeis.
Ah! Ninfas, não vereis
que Eurídice dessa sorte
fugiu do amante, e não da fera morte?
Também assi Epérie foi mordida
da bíbora escondida.
Olhai que toda a Ninfa na erva verde
que a condição não perde, perde a vida.

Que tigre, ou leão,
que peçonhenta fera venenosa,
ou que inimigo, enfim, vos vai seguindo?
Dum brando coração
que, preso dessa vista rigorosa,
de si para vós foge, andais fugindo?
Olhai que em gesto lindo
não se consente peito tão disforme,
se não quereis que tudo se conforme.
Posto que belas n'água vos vejais,
à fonte não creiais,
que vos traz enganada sua vingança
desta nossa esperança, que enganais.

Mas ah! que não consinto
que nem palavra minha vos ofenda,
posto que me desculpa a mágoa pura.
Ninfas, digo que minto;
que não pode haver nunca quem pretenda
de desfazer em vossa fermosura.
Se amor de tanta dura
por tanto mal tão pouco bem merece
não estranheis minh' alma, que endoudece;
que, se fala doudices de improviso,
sem tento nem aviso,
queira Deus que dureza tão crecida
que não me tire a vida, além do siso.

Cousas grandes e estranhas
tem pelo mundo feito e faz Natura,
que, a quem vos não viu, Ninfas, muito espantam.
Nas líbicas montanhas
os crocodilos feros, de pintura
tão singular, que só coa vista encantam,
a sua voz levantam
tão própria e natural à voz humana
que, a quem a ouve, facilmente engana.
E vós, ó gentes feras, cujo aspeito
o mundo tem sujeito,
tendes de natureza juntamente
a vista e voz de gente, e fero o peito.

Das amorosas leis
com que liga Natura os corações
andais fugindo, Ninfas, na espessura?
Como não vos correis
que haja em vós tão duras condições
que possam mais que a provida Natura?
Se vossa fermosura
é sobrenatural, não é forçado
que assi tenha também o peito irado;
mas antes ao Amor, em cuja mão
os corações estão,
por vossa gentileza tão fermosa
lhe deveis amorosa condição.

Amor é um brando afeito
que Deus no mundo pôs e a Natureza
para aumentar as cousas que criou.
De Amor está sujeito
tudo quanto possui a redondeza;
nada sem este afeito se gerou;
por ele conservou
a causa principal o mundo amado,
donde o pai famulento foi deitado.
As cousas ele as ata e as conforma;
com o mundo reforma
a matéria. Quem há que não o veja?
Quanto meu mal deseja, sempre forma.

Entre as ervas dos prados
não há machos e fêmeas conhecidas
e junto üa da outra permanece.

Não estão carregados
os ulmeiros das vides retorcidas,
onde o cacho enforcado amadurece?
Não vedes que padece
tanta tristeza a rola pela morte
de sua amada e única consorte?
Pois lá no Olimpo, a quantos cativou
Cupido e maltratou?
Melhor que eu o dirá a sutil donzela
que lá na sua tela o debuxou.

Ah, caso grande e grave!
Ah, peitos de diamante fabricados,
e das leis absolutas naturais!
Aquele amor suave,
aquele poder alto que, forçados,
os deuses obedecem, desprezais?
Pois quero que saibais
que contra o fero Amor nunca houve escudo:
o seu costume é vingança em tudo.
Eu vos verei deitar em um momento
suspiros mil ao vento,
lágrimas, tristes prantos, nova dor,
por quem tenha outro amor no pensamento».

Mais quisera dizer
o desditoso amante, que ajudado
se via então da mágoa e da tristeza;
mas foi-lho defender
o outro companheiro, como irado
com tão disforme e áspera dureza.
Aquilo que a rudeza
e a ciência agreste lhe ensinara
imaginando, como que acordara
dum sonho arrancando d'alma um grito.
O mais que ali foi dito,
vós, montes, o direis; e vós, penedos;
que em vossos arvoredos anda escrito.

SÁTIRO SEGUNDO

«Nem vós nacidas sois de gente humana,
nem foi humano o leite que mamastes,
mas d'algüa disforme fera hircana;
lá no Cáucaso monte vos criastes,
daqui tomastes a aspereza insana;
daqui o frio peito congelastes.
Sois Esfinges nos gestos naturais,
que o rasto só de humanas amostrais.

Se vós fostes criadas na espessura,
onde não houve cousa que se achasse,
animal, erva verde, ou pedra dura,
que em seu tempo passado não amasse,
nem a quem a afeição suave e pura
nessa presente forma não mudasse;
porque não deixareis também memória
de vós, em namorada e longa história?

Olhai como, na Arcádia, soterrando
o namorado Alfeu sua água clara
lá na ardente Sicília vai buscando,
por debaixo do mar, a Ninfa cara.
Assi mesmo vereis passar nadando
Ácis, que Galateia tanto amara,
por onde do Ciclope a grande mágoa
converteu do mancebo o sangue em água.

Virai os olhos, Ninfas, à ericina
espessura; vereis ali tornar-se
Egéria em fonte clara e cristalina,
pela morte de Numa destilar-se.
Olhai que a triste Bíblis vos ensina,
com perder-se de todo e transformar-se
em lágrimas; que, enfim, puderam tanto
que acrecentaram sempre o verde manto.

Se entre as claras águas houve amores,
os penedos também foram perdidos.
Olhai os dous conformes amadores,
no monte Ida em pedra convertidos:
Leteia, por cair em vãos errores,
de sua fermosura procedidos;
Oleno, porque a culpa em si tomava,
por não ver castigar quem tanto amava.

Tomai exemplo e vede em Cipro aquela
por quem Ífis no laço pôs a vida.
Também vereis em pedra a Ninfa bela
cuja voz foi por Juno consumida;
e, se queixar-se quer de sua estrela,
a voz extrema só lhe e concedida.
E tu também, ó Dáfnis, que trouxeste
primeiro ao monte o doce verso agreste.

Tamanho amor tinha a branda amiga,
que em inimiga, enfim, se foi tornando;
porque outra Ninfa estranha o sojiga,
suas mágicas ervas vai buscando.
Olhai a crua dor a quanto obriga:
que, por vingar sua ira, transformando
se foi em pedra. Ó dura confusão!
Despois lhe pesaria; mas em vão.

Olhai, Ninfas, as árvores alçadas,
a cuja sombra andais colhendo flores,
como em seu tempo foram namoradas,
que inda agora o tronco sente as dores.
Vereis também, se fardes alembradas,
como a cor das amoras e de amores;
em sangue dos amantes na verdura
testemunha e de Tisbe a sepultura.

E lá pela odorífera Sabeia
não vedes que, de lágrimas daquela
que com seu pai se ajunta e se recreia,
Arábica se enriquece e vive dela?
Vede mais a verde árvore peneia,
que foi já noutro tempo Ninfa bela
e Ciparisso, angélico mancebo,
ambos verdes com lágrimas de Febo.

Está o moço de Frígia delicado
no mais alto arvoredo convertido,
que tantas vezes fere o vento, irado;
galardão de seus erros merecido,
que, da alta Berecíntia sendo amado,
por üa ninfa baixa foi perdido;
e a deusa a quem perdeu do pensamento
quis que também perdesse o entendimento.

O súbito furor lhe afigurava
que o monte, as casas e árvores caíam;
já dos pudicos membros se privava,
que a deusa e a fúria grande o constrangiam.
Já no indino monte se lançava;
de sua morte as feras se doíam;
destarte perdeu Átis na espessura,
despois de tantas perdas, a figura.

Lembre-vos quando as gentes Celebravam
em Grécia as grandes festas de Lieu,
onde as fermosas Ninfas se juntavam
e os sacros moradores do Liceu.
Todos em doce sono se ocupavam
pelo monte despois que anoiteceu;
mas o deus do Helesponto não dormia,
que um novo amor o sono lhe impedia.

Mas ela, enfim, os braços estendendo,
em ramos se lhe foram transformando;
em raízes os pés se vão torcendo,
e o nome Loto só lhe vai ficando.
Vede, Napeias, este caso horrendo,
que vos está de longe ameaçando.
Que assi também aquela a quem seguia
o sacro Pã, a forma só perdia.

E que direi de Fílis que, perdida
da saudosa dor em que vivia,
com desesperação enfim trazida
do comprido esperar de dia em dia
por desatar do corpo a triste vida,
atava ao colo a cinta que trazia;
mas o tronco sem folha, pelo monte
Ródope, abraça o lento Demofonte.

Nas boninas também vereis Jacinto,
por quem Febo de si se queixa em vão;
vereis o monte Idálio em sangue tinto,
do neto de seu pai, da mãe irmão.
Chora Vénus a dor do moço extinto,
maldiz o Céu e a Terra com razão;
a Terra, porque logo não se abriu;
o Céu, porque tal morte permitiu.

E tu, constante Clície, a quem falece
a fé de teus amores enganosos,
no louro amante, que de ti se esquece,
se esquecem os teus olhos saudosos.
Nenhum alegre estado permanece,
que são do mundo os gostos mentirosos;
e tu, ó clara luz, por quem suspiras
ainda agora em erva a folha viras.

Trago-vos estas cousas à lembrança,
por que se estranhe mais vossa crueza
com ver que a criação e longa usança
vos não perverte e muda a natureza.
Dou estas lágrimas minhas em fiança
que em tudo quanto está na redondeza
cousa há de Amor isenta, se atentais,
enquanto a vós não virdes, não vejais.

Já vos disse que de Amor sempre tiveram
as cousas insensíveis pena e glória.
Vede as sensíveis como se perderam;
e dir-vos-ei das aves larga história.
Que as penas que em sua alma se sofreram
nas asas lhe ficaram por memória.
E aquele alívio e leve movimento
lhe ficou só por dor do pensamento.

O doce rouxinol e a andorinha,
de onde elas se foram transformando,
senão do puro amor que o Trácio tinha
que, em poupa, inda armado a anda chamando?
Chama sem culpa a mísera avezinha
que, nas areias de Fásis habitando,
do rio toma o nome; e assi se vai
chamando a mãe cruel, e mouro o pai.

Vede a que enjeitou Palas por falar
- que dos amores é maior defeito -
e aquela que sucede em seu lugar,
ambas aves, de Amor usado efeito;
üa, porque fugia ao deus do mar;
outra, porque temera o pátrio leito.
E Cila, que a seu pai pôs em perigo,
só por ser muito amiga do inimigo.

A ele lhe ficaram ainda as cores
da púrpura real que ter soía;
Ésaco, que seguindo seus amores
o trouxe a ver tão cedo o extremo dia:
ou vede os dous tão firmes amadores
que Amor aves tornou na praia fria.
Do rei dos ventos era genro o triste;
mas contra o Fado, enfim, nada resiste.

Estava a triste Alcíone esperando
com longos olhos o marido ausente;
mas os iradas ventos assoprando,
nas águas o afogaram tristemente.
Em sonhos se lhe está representando,
que o coração pressago nunca mente;
só do bem as suspeitas mentirão,
que as do mal futuro certas são.

Ao pranto os olhos seus a triste ensaia;
buscando o mar com eles, ia e vinha,
quando o corpo sem alma achou na praia.
Sem alma o corpo achou, que n' alma tinha!
Nereidas do Egeio, consolai-a,
pois este triste ofício vos convinha!
Consolai-a; saí das vossas águas,
se consolação há em grandes mágoas.

Mas oh, néscio de mim! Que estou falando
das avezinhas mansas e amorosas,
se também teve Amor poder e mando
entre as feras monteses venenosas?
O leão e a leoa, como ou quando
tais formas alcançaram temerosas?
Sabe-o da deusa Dindimene o templo,
e a que o deu a Adónis por exemplo.

Quem fosse a mansa vaca, di-lo-ia;
mas o grão Nilo o diga, que a adora.
Que forma tem a Ursa, saber-se-ia
do Pólo Boreal, onde ela mora.
O caso de Actéon também diria,
em cervo transformado; e melhor fora
que dos olhos perdera a vista escura
que escolher nos seus galgos sepultura.

(daqui se tiraram duas oitavas)

Tudo isto Actéon viu na fonte clara,
aonde a si de improviso em cervo viu;
que assi quem destarte ali o topara,
que se mudasse em cervo permitiu.
Mas, como o triste amante em si notara
a desusada forma, se partiu.
Os seus, que o não conhecem, o vão chamando;
e, estando ali presente, o vão buscando.

Cos olhos e co gesto lhes falava,
que a voz humana já mudada tinha.
Qualquer deles por ele então chamava,
e a multidão dos cães contra ele vinha.
Que viesse ver um cervo lhe gritava.
"Actéon, aonde estás? Acude asinha!
Que tardar tanto é este?" –- lhe dizia.
"É este, é este", o eco respondia.

Quantas cousas em vão estou falando,
ó esquivas Napeias, sem que veja
o peito de diamante um pouco brando
de quem meu dano tanto só deseja!
Pois, por mais que de mim andeis tirando,
e por mais longa, enfim, que a vida seja,
nunca em mim se verá tamanha dor
que Amor a não converta em mais amor.

Aqui, ó Ninfas minhas, vos pintei
todo de amores um jardim suave;
das aves, pedras, águas vos contei,
sem me ficar bonina, fera ou ave.
Se o amor dos peitos que deixei,
que dos contentamentos tem a chave,
por dita em tempo algum determinasse
que de tão longos danos vos pesasse,

quanto mais devagar vos contaria
de minha larga história, e não alheia?
E com quanta mais água regaria,
de contente, que o rio a branca areia?
Entre os contentamentos me seria
este um não cuidado, e grande ideia,
e vós, gostando deste estado ufano,
zombáreis então de vosso engano.

Mas com quem falo, ou que estou gritando,
pois não há nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
a quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida a dar me estão tirando
e não me tira o tempo o pensamento.
Direi, enfim, as duras esquivanças,
que só na morte tenho as esperanças».

Aqui, o triste Sátiro acabou,
com saluços que a alma lhe arrancavam.
E os montes insensíveis, que abalou,
nas últimas repostas o ajudavam,
quando Febo nas águas se encerrou
cos animais que o mundo alumiavam,
e co luzente gado apareceu
a celeste Pastora pelo Céu.

 

 

 

 

 

08/12/2005