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Luís Vaz de Camões




ALICUTO, pescador; AGRÁRIO, pastor



Ao Duque de Aveiro:


A rústica contenda desusada
entre as Musas dos bosques, das areias,
de seus rudos cultores modulada

– a cujo som, atónitas e alheias,
do monte as brancas vacas estiveram
e do rio as saxátiles lampreias –,

desejo de cantar; que se moveram
os troncos e as avenas dos pastores,
e os silvestres brutos suspenderam.

Não menos o cantar dos pescadores
as ondas amansou do alto pego,
e fez ouvir os mudos nadadores.

E se, por sustentar-se, o Moço cego
nos trabalhos agrestes a alma inflama,
o que é mais próprio no ócio e no sossego,

mais maravilhas dando a voz da fama,
no mesmo mar undoso e vento feio
brasas roxas acende a roxa flama.

Vós, ó ramo de um tronco alto e sombrio,
cuja frondente coma já cobriu
de Luso todo o gado e senhorio,

e cujo são madeiro já saiu
a lançar a forçosa e larga rede
no mais remoto mar que o mundo viu;

e vós, cujo valor tão alto excede
que cantá-lo em voz alta e divina
a fonte de Parnaso move a sede;

ouvi da minha humilde sanfonina
a harmonia que vós alevantais
tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.

E se, agora que afábil me escutais,
não ouvirdes cantar com alta tuba
o que vos deve o mundo que dourais;

se os Reis avós vossos, que de Juba
os reinos devastaram, não ouvis
que nas asas do verso excelso suba;

se não sabem as frautas pastoris
pintar de Toro os campos, semeados
de armas, corpos fortes e gentis,

por um moço animoso sustentados
contra o índomo pai de toda Espanha,
contra a Fortuna vã e injustos Fados;

um moço, cujo esforço, ânimo e manha
fez decer do Olimpo o duro Marte
e dar-lhe a quinta esfera, que acompanha;

se não sabem cantar a menos parte
do sapiente peito e grão conselho
que pôde, ó Reino ilustre, descansar-te;

peito que o douto Apolo fez, vermelho,
deixar o sacro Monte, e as Nove irmãs
diz que a ele se afeitem, como a espelho:

saberão só cantar as suas vãs
contendas de Alicuto vil e Agrário,
um de escamas coberto, outro de lãs.

Vereis, Duque sereno, o estilo vário,
a nós novo, mas noutro mar cantado
de um, que só foi das Musas secretário:

o pescador Sincero, que amansado
tem o pego de Pócrita co canto
pelas sonoras ondas compassado.

Deste seguindo o som, que pode tanto,
e misturando o antigo Mantuano,
façamos novo estilo, e novo espanto.

Partira-se do monte Agrário insano
para onde a força só do pensamento
lhe encaminhava o lasso peso humano.

Embebido num longo esquecimento
de si, e do seu gado e pobre fato,
após dum doce sonho e fingimento,

rompendo as silvas hórridas do mato,
vai por cima de outeiros e penedos,
fugindo, enfim, de todo humano trato.

Ante os seus olhos leva os olhos ledos
da branca Dinamene, que enverdece,
só co meneio, os vales e rochedos.

Ora se ri consigo, quando tece
na fantasia algum prazer fingido;
ora fala; ora mudo se entristece.

Qual a tenra novilha que corrido
tem montanhas fragosas e espessuras
por buscar o cornígero marido

e, cansada, nas húmidas verduras
cair se deixa ao longo de um ribeiro,
já quando as sombras vêm descendo escuras,

e nem coa noite ao vale seu primeiro
se lembra de tornar, como soía,
perdida pelo bruto companheiro;

tal Agrário chegado, enfim, se via
onde o grão pego horríssono suspira
numa praia arenosa, húmida e fria.

Tanto que ao mar estranho os olhos vira,
tornando em si, de longe ouviu tocar-se
de douta mão não vista e nova lira.

Fê-lo o som desusado desviar-se
para onde mais soava, desejando
de ouvir e conversar, e de provar-se.

Não tinha muito espaço andado, quando
nüa concavidade de um penedo,
que pouco e pouco fora o mar cavando,

topou cum pescador que, pronto e quedo,
nüa pedra assentado, brandamente
tangendo, fazia o mar sereno e ledo.

Mancebo era de idade florecente,
pescador grande do alto, conhecido
pelo nome de toda a húmida gente.

Alicuto se chama, que perdido
era pela fermosa Lemnoria;
Ninfa que tem o mar enobrecido.

Por ela as redes lança noite e dia,
por ela as ondas túmidas despreza;
por ela sofre o sol e a chuva fria.

Co seu nome mil vezes a braveza
dos ventos feros amansou co verso,
que remove das rochas a dureza.

E agora, em som de voz suave e terso,
está seu nome aos ecos ensinando
por estilo do agreste som diverso;

do qual Agrário, atónito, aflouxando
da fantasia um pouco seu cuidado,
suspenso esteve, os números notando.

Mas Alicuto, vendo-se estorvado
pelo pastor da música divina,
alevantando o rosto sossegado,

lhe diz assi: «Vaqueiro da campina,
que vens buscar as arenosas praias,
onde a bela Anfitrite só domina?

Que razão há, pastor, por que te saias
para o nosso escamo e vil terreno
dos mui floridos mirtos e altas faias?

Que se agora o mar vês brando e sereno,
e estenderem-se as ondas pela areia,
amansadas das águas com que peno,

verás logo o como desenfreia
Eolo o vento pelo mar undoso,
de sorte que Neptuno o arreceia.»

Responde Agrário: «Ó músico e amoroso
pescador, eu não venho a ver o lago
bravo quieto, ou o vento brando e iroso;

mas o meu pensamento, com que apago
as flamas ao desejo, me trazia
sem ouvir e sem ver, suspenso e vago,

até que a tua angélica harmonia
me acordou, vendo o som com que aqui cantas
a tua perigosa Lemnoria.

Mas, se de ver-me cá no mar te espantas,
eu me espanto também do estilo novo
com que as ondas horríssonas quebrantas;

o qual, posto que certo louvo e aprovo,
desejo de provar contra o silvestre
antigo pastoril, que eu mal renovo.

E tu, que no tocar pareces mestre,
podes julgar se há clara diferença
entre o novo marítimo e o campestre.»

«Não há – disse Alicuto – em mim detença;
mas antes alvoroço, inda que veja
que essa tua confiança só me vença.

Mas, por que saibas que nenhüa enveja
os pescadores têm aos pastores,
no som que pelo mundo se deseja,

toma a lira na mão, que os moradores
do vítreo fundo vejo já juntar-se
para ouvir nossos rústicos amores.

E bem vês pela praia apresentar-se
nas conchas vária cor à vista humana,
e o mar vir por antre elas e tornar-se.

Sossegada do vento a fúria insana,
encrespa brandamente o ameno rio
que seu licor aqui mistura e dana.

Este penedo côncavo e sombrio,
que de cangrejos vês estar coberto,
nos dá abrigo do sol, quieto e frio.

Tudo nos mostra, enfim, repouso certo,
e nos convida ao canto, com que os mudos
peixes saem, ouvindo, ao ar aberto.»

Assi se desafiam estes rudos
poetas, nos ofícios discrepantes,
nos engenhos, porém, sutis e agudos.

E já mil companheiros circunstantes
estavam para ouvir, e aparelhavam
ao vencedor os prémios semelhantes,

quando já as liras súbito tocavam;
Agrário começava, e da harmonia
os pescadores todos se admiravam.

E destarte Agrário respondia:

AGRÁRIO

Vós, semicapros deuses do alto monte,
Faunos longevos, Sátiros, Silvanos;
e vós, deusas do bosque e clara fonte,
ou dos troncos que vivem largos anos;
se tendes pronta um pouco a sacra fronte
a nossos versos rústicos e humanos,
ou me dai já a coroa do loureiro,
ou penda a minha lira dum pinheiro.

ALICUTO

Vós, húmidas deidades deste pego,
Tritões cerúleos, Próteo, com Palemo;
e vós, Nereidas do sal em que navego,
porque do vento as fúrias pouco temo:
se às vossas ricas aras nunca nego
o congro nadador na pá do remo,
não consintais que a música marinha
vencida seja aqui da lira minha.

AGRÁRIO

Pastor se fez um tempo o Moço louro,
que do Sol as carretas move e guia;
ouviu o rio Anfriso a lira de ouro
que o seu sacro inventor ali tangia.
Io foi vaca; Júpiter foi touro;
mansas ovelhas junto da água fria
guardou fermoso Adónis; e tornado
em bezerro Neptuno foi já achado.

ALICUTO

Pescador já foi Glauco, o qual agora
deus é do mar; e Próteo focas guarda.
Naceu no pego a deusa, que é senhora
do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deus que o mar adora
também já foi delfim; e quem resguarda
verá que os moços pescadores eram
que o escuro enigma ao Vate deram.

AGRÁRIO

Fermosa Dinamene, se dos ninhos
os implumes penhores já furtei
à doce filomela, e dos murtinhos
para ti, fera! as flores apanhei;
e se os crespos medronhos nos raminhos
a ti, com tanto gosto, apresentei,
porque não dás a Agrário desditoso
um só revolver de olhos piadoso?

ALICUTO

Para quem trago eu de água, em vaso cavo,
os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo,
na praia os brancos búzios apanhando?
Para quem, de mergulho, no mar bravo,
os ramos de coral venho arrancando
senão para a fermosa Lemnoria
que cum só riso a vida me daria?

AGRÁRIO

Quem viu já o desgrenhado e crespo Inverno
de altas nuvens vestido, hórrido e feio,
enegrecendo a vista o Céu superno,
quando arranca os troncos o rio cheio,
raios, chuvas, trovões, um triste inferno,
mostra ao mundo um pálido receio;
tal é o amor cioso a quem suspeita
que outrem de seus trabalhos se aproveita.

ALICUTO

Se alguém viu pelo alto o sibilante
furor, deitando flamas e bramidos,
quando as pasmosas serras traz diante,
hórrido aos olhos, hórrido aos ouvidos,
a braços derrubando o já nutante
mundo, cos elementos destruídos
assi me representa a fantasia
a desesperação de ver um dia.

AGRÁRIO

Minh'alva Dinamene, a Primavera,
que os campos deleitosos pinta e veste
e, rindo-se, üa cor aos olhos gera
com que na terra vêem o arco celeste;
o cheiro, rosas, flores, a verde hera,
com toda a fermosura amena, agreste,
não é para meus olhos tão fermosa
como a tua, que abate o lírio e rosa.

ALICUTO

As conchinhas da praia que apresentam
a cor das nuvens, quando nace o dia;
o canto das Sirenas, que adormentam;
a tinta que no múrice se cria;
navegar pelas águas que se assentam
co brando bafo quando a sesta é fria,
não podem, Ninfa minha, assi aprazer-me
como ver-te üa hora alegre ver-me.

AGRÁRIO

A deusa que na líbica alagoa
em forma virginal apareceu,
cujo nome tomou, que tanto soa,
os olhos belos tem da cor do céu;
garços os tem; mas üa, que a coroa
das fermosas do campo mereceu,
da cor do campo os mostra, graciosos.
Quem diz que não são estes os fermosos?

ALICUTO

Perdoem-me as deidades; mas tu, diva,
que no líquido mármol és gerada,
a luz dos olhos teus, celeste e viva,
tens por vício amoroso atravessada;
nós petos lhe chamamos; mas quem priva
do dia o lume, baixa e sossegada,
traz a dos seus nos meus, que o não nego;
e com tudo isso inda assi estou cego.

Assi cantavam ambos os cultores
do monte e praia, quando os atalharam:
a um, pastores; a outro, pescadores;

e quaisquer a seu vate coroaram
de capelas idóneas e fermosas,
que as Ninfas lhe teceram e ordenaram:

a Agrário, de murtinhos e de rosas;
a Alicuto, de um fio de torcidos
búzios e conchas ruivas e lustrosas.

Estavam na água os peixes embebidos,
coas cabeças fora e quase em terra;
os músicos delfins estão perdidos.

Julgavam os pastores que na serra
o cume e preço está do antigo canto;
que quem o nega contra as Musas erra.

Dizem os pescadores que outro tanto
tem da sonora frauta quanto teve
o campo pastoril de antigo Manto.

Mas já o pastor de Admeto o carro leve
molhava n'água amara, e compelia
a recolher a roxa tarde e breve;
e foi fim da contenda o fim do dia.

 

 

 

 

 

28/11/2005