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Luís Vaz de Camões




UMBRANO e FRONDÉLIO, pastores



À morte de D. António de Noronha, que morreu em África,
e à morte de D. João III de Portugal e de D. Joana, mãe de
el-rei D. Sebastião:



UMBRANO

Que grande variedade vão fazendo,
Frondélio amigo, as horas apressadas!
Como se vão as cousas convertendo
em outras cousas várias e inspiradas!
Um dia a outro dia vai trazendo
por suas mesmas horas já ordenadas;
mas quão conformes são na quantidade,
tão diferentes são na qualidade.

Eu vi já deste campo as várias flores
as estrelas do céu fazendo enveja;
vi andar adornados os pastores
de quanto polo mundo se deseja;
e vi co campo competir nas cores
os trajos, de obra tanta e tão sobeja
que, se a rica matéria não faltava,
a obra, de mais rica, sobejava.

E vi perder seu preço às brancas rosas
e quase escurecer-se o claro dia
diante düas mostras perigosas,
que Vénus, mais que nunca, engrandecia;
enfim, vi as pastoras tão fermosas
que o Amor de si mesmo se temia;
mas mais temia o pensamento, falto
de não ser para ter temor tão alto.

Agora tudo está tão diferente
que move os corações a grande espanto;
e parece que Júpiter potente
se enfada já de o mundo durar tanto.
O Tejo corre turvo e descontente,
as aves deixam seu suave canto;
e o gado, em ver que a erva lhe falece,
mais que de a não comer nos emagrece.

FRONDÉLIO

Umbrano irmão, decreto é da Natura,
inviolável, fixo e sempiterno,
que a todo o bem suceda desventura
e não haja prazer que seja eterno:
ao claro dia segue a noite escura,
ao Verão suave, o duro Inverno,
e se há i quem saiba ter firmeza,
é somente esta lei de Natureza.

Toda alegria grande e sumptuosa
a porta abrindo vem ao triste estado;
se üa hora vejo alegre e deleitosa,
temendo estou do mal aparelhado.
Não vês que mora a serpe venenosa
entre as flores do fresco e verde prado?
Não te engane nenhum contentamento,
que mais instável é que o pensamento.

E praza a Deus que o triste e duro Fado
de tamanhos desastres se contente,
que sempre um grande mal inopinado
é mais do que o espera a incauta gente;
que vejo este carvalho que, queimado
tão gravemente foi do raio ardente.
Não seja ora prodígio que declare
que o bárbaro cultor meus campos are.

UMBRANO

Enquanto do seguro azambujeiro
nos pastores de Luso houver cajados,
e o valor antigo que primeiro
os fez no mundo tão assinalados,
não temas tu, Frondélio companheiro,
que em nenhum tempo sejam sojugados,
nem que a cerviz indómita obedeça
a outro jugo algum que se ofereça.

E posto que a soberba se levante
do imigo, a torto e a direito,
não creias tu que a força repugnante
do fero nunca já vencido peito
que, desde quem possui o monte Atlante
até onde bebe o Hidaspe tem sujeito,
o possa nunca ser de força alheia,
enquanto o sol a terra e o céu rodeia.

FRONDÉLIO

Umbrano, a temerária segurança,
que em força ou em razão não se assegura,
é falsa e vã; que a grande confiança
não é sempre ajudada da ventura.
Que, lá junto das aras da esperança
Némesis moderada, justa e dura,
um freio lhe está pondo e lei terrível:
que os limites não passe do possível.

E se atentas bem os grandes danos
que se nos vão mostrando cada dia,
porás freio também a esses enganas
que te está afigurando a ousadia.
Tu não vês como os lobos tingitanos,
apartados de toda a covardia,
matam os cães, dos gados guardadores,
e não somente os cães, mas os pastores?

E o grande curral, seguro e forte,
do alto monte Atlas, não ouviste
que com sanguinolenta e fera morte
despovoado foi por caso triste?
Oh, caso desastrado Oh, dura sorte,
contra quem força humana não resiste!
Que ali também da vida foi privado
Tiónio meu, ainda em flor cortado!

UMBRANO

De lágrimas me banha todo o peito
desse caso terrível a memória,
quando vejo quão sábio e quão perfeito
e quão merecedor de longa história
era esse teu pastor que, sem direito,
deu às Parcas a vida transitória.
Mas não há i quem de erva o gado farte,
nem do juvenil sangue o fero Marte!

Porém, se te não for muito pesado
– já que a triste morte me lembraste –,
cantares desse caso desastrado
aqueles brandos versos que cantaste
quando ontem, recolhendo o manso gado,
de nós outros pastores te apartaste...
Que eu também, que as ovelhas recolhia,
não te podia ouvir como queria.

FRONDÉLIO

Como qués que renove no pensamento
tamanho mal, tamanha desventura?
Porque espalhar suspiros vãos ao vento,
pera os que tristes são, é falsa cura.
Mas pois também te move o sentimento
da morte de Tiónio, triste e escura,
eu porei teu desejo em doce efeito,
se a dor me não impedir a voz do peito.

UMBRANO

Canta agora, pastor, que o gado pace
antre as húmidas ervas, sossegado;
e lá nas altas serras, onde nace,
o sacro Tejo, à sombra recostado,
com seus olhos no chão, a mão na face,
está para te ouvir aparelhado;
e em silêncio triste estão as Ninfas,
dos olhos estilando claras linfas.

O prado, as flores brancas e vermelhas
está suavemente apresentando;
as doces e solícitas abelhas
com um brando sussurro vão voando;
as mansas e pacíficas ovelhas,
do comer esquecidas, inclinando
as cabeças estão ao som divino
que faz, passando, o Tejo cristalino.

O vento dantre as árvores respira,
fazendo companhia ao claro rio;
nas sombras, a ave gárrula suspira,
suas mágoas espalhando ao vento frio.
Toca, Frondélio, toca a doce lira;
que, daquele verde álamo sombrio,
a branda filomela, entristecida,
ao saudoso canto te convida.

Canta FRONDÉLIO:

Aquele dia as águas não gostaram
as mimosas ovelhas, e os cordeiros
o campo encheram d'amorosos gritos.
Não se dependuraram dos salgueiros
as cabras, de tristeza; mas negaram
o pasto a si, e o leite aos cabritos.
Prodígios infinitos
mostrava aquele dia,
quando a Parca queria
princípio dar ao fero caso triste.
E tu também, ó corvo, o descobriste,
quando da mão direita em voz escura,
voando, repetiste
a tirânica lei da morte dura.

Tiónio meu, o Tejo cristalino
e as árvores que tu já desamparaste,
choram o mal de tua ausência eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste!
Mas foi consentimento do Destino,
por quem o mar e a terra se governa.
E a noite sempiterna,
que tu tão cedo viste,
cruel, acerba e triste,
sequer de tua idade não te dera
que lograras a fresca Primavera?
Não usara connosco tal crueza,
que nem nos montes fera
nem pastor há no campo sem tristeza.

Os Faunos, certa guarda dos pastores,
já não seguem as Ninfas na espessura,
nem as Ninfas aos cervos dão trabalho.
Tudo, como vês, é cheio de tristura:
às abelhas o campo nega as flores,
e às flores a aurora nega o orvalho.
Eu que, cantando, espalho
tristezas todo o dia
a frauta que soía
mover as altas árvores, tangendo,
se me vai de tristeza enrouquecendo
que tudo vejo triste neste monte;
e tu também, correndo,
manas envolta e triste, ó clara fonte!

As Tágides no rio e na aspereza,
no monte as Oreadas, conhecendo
quem te obrigou ao duro e fero Marte,
como geral sentença vão dizendo
que não pode no mundo haver tristeza
em cuja causa Amor não tenha parte.
Porque assi, destarte,
nos olhos saudosos,
nos passos vagarosos,
no rosto, que o Amor e a fantasia
da pálida viola lhe tingia,
a todos de si dava sinal certo
do fogo que trazia,
que nunca soube Amor ser encoberto.

Já diante dos olhos lhe voavam
imagens e fantásticas pinturas
e exercícios do falso pensamento;
e pelas solitárias espessuras,
entre os penedos sós, que não falavam,
falava e descobria seu tormento.
Num longo esquecimento
de si todo embebido,
andava tão perdido
que, quando algum pastor lhe perguntava
a causa da tristeza que mostrava,
como quem para penas só vivia,
sorrindo, lhe tornava:
«Se não vivesse triste, morreria.»

Mas como este tormento o assinalou
e tanto no seu rosto se mostrasse,
entendido mui bem do pai sesudo,
por que do pensamento lho tirasse,
longe da causa dele o apartou;
porque, enfim, longa ausência acaba tudo.
Mas, o falso Marte rudo,
das vidas cobiçoso!
Que, aonde o generoso
peito ressuscitava em tanta glória
de seus antecessores a memória,
ali, fero e cruel, lhe destruíste,
por injusta vitória,
primeiro que o cuidado, a vida triste.

Parece-me, Tiónio, que te vejo
por tingires a lança cobiçoso
naquele infido sangue mauritano,
no hispano ginete, belicoso,
que ardendo também vinha no desejo
de derrubar por terra o Tingitano.
Oh, confiado engano!
Oh, encurtada vida!
Que a virtude, oprimida
da multidão forçosa do inimigo,
não pôde defender-se do perigo,
porque assi o Destino o permitiu;
e assi levou consigo
o mais gentil pastor que o Tejo viu.

Qual o mancebo Euríalo, enredado
entre o poder dos Rútulos, fartando
as iras da soberba e dura guerra,
do cristalino rosto a cor mudando,
cujo purpúreo sangue derramado
pelas alvas espaldas tinge a serra,
que, como flor que a terra
lhe nega o mantimento,
– porque o tempo avarento
também o largo humor lhe tem negado –,
o colo inclina, lânguido e cansado,
tal te pinto, Tiónio, dando o esprito
a Quem to tinha dado,
que este é somente eterno e infinito.

Da boca congelada a alma pura,
co nome juntamente da inimiga
e excelente Marfida, derramava.
E tu, gentil Senhora, não te obriga
a pranto sempiterno a morte dura
de quem por ti somente a vida amava?
Por ti, aos ecos dava
acentos numerosos;
por ti, aos belicosos
exercícios se deu do fero Marte.
E tu, ingrata, o amor já noutra parte
porás, como acontece ao fraco intento;
que, enfim, enfim, destarte
se muda o feminino pensamento.

Pastores deste vale ameno e frio,
que de Tiónio o caso desastrado
quereis nas altas serras que se cante:
um túmulo, de flores adornado,
lhe edificai ao longo deste rio,
que a vela enfreie ao duro navegante;
e o lasso caminhante,
vendo tamanha mágoa,
arrase os olhos d'água,
lendo na pedra dura o verso escrito,
que diga assi: «Memória sou que grito
para dar testemunho em toda parte
do mais gentil esprito
que tiraram do mundo Amor e Marte».

UMBRANO

Qual o quieto sono aos cansados,
debaixo d'algüa árvore sombria
ou qual aos sequiosos e encalmados
o vento respirante e a fonte fria,
tais me foram teus versos delicados,
teu numeroso canto e melodia;
e ainda agora o tom suave e brando
os ouvidos me fica adormentando.

Enquanto os peixes húmidos tiverem
as areosas covas deste rio
e, correndo, estas águas conhecerem
do largo mar o antigo senhorio;
e enquanto estas ervinhas pasto derem
às petulantes cabras, eu te fio
que em virtude dos versos que cantaste
sempre viva o pastor que tanto amaste.

Mas já que pouco a pouco o sol nas falta,
e dos montes as sombras se acrecentam,
de flores mil o claro céu se esmalta
que tão ledas aos olhos se apresentam;
levemos pelo pé desta serra alta
os gados, que já agora se contentam
do que comido têm, Frondélio amigo;
anda, que até o outeiro irei contigo.

FRONDÉLIO

Antes por este vale, amigo Umbrano,
se te aprouver, levemos as ovelhas;
que, se eu por acerto não me engano,
daqui me soa um eco nas orelhas;
o doce acento não parece humano
e, se tu neste caso me aconselhas,
eu quero ver daqui que cousa seja;
que o tom me espanta, e a voz me faz inveja.

UMBRANO

Contigo vou, que quanto mais me achego
mais gentil me parece a voz que ouviste,
peregrina, excelente; e não te nego
que me faz cá no peito a alma triste.
Vês como tem os ventos em sossego?
Nenhum rumor da serra lhe resiste;
nenhum pássaro voa; mas parece
que, do canto vencido, lhe obedece.

Porém, irmão, melhor me parecia
que não fôssemos lá, que estorvaremos;
mas, subidos nesta árvore sombria
todo o vale daqui descobriremos.
Os surrões e cajados, todavia,
neste comprido tronco penduremos;
para subir fica homem mais ligeiro.
Deixa-me tu, Frondélio, ir primeiro.

FRONDÉLIO

Espera, assi, dar-te-ei de pé, se queres;
subirás sem trabalho e sem ruído;
e depois que subido lá estiveres,
dar-me-ás a mão de cima, que é partido.
Mas primeiro me dize, se puderes
ver, donde nace o canto nunca ouvido,
quem lança o doce acento delicado.
Fala, que já te vejo estar pasmado.

UMBRANO

Cousas não costumadas na espessura,
que nunca vi, Frondélio, vejo agora;
fermosas Ninfas vejo na verdura,
cujo divino gesto o Céu namora.
Üa, de desusada fermosura,
que das outras parece ser senhora,
sobre um triste sepulcro, não cessando,
está perlas dos olhas distilando.

De todas estas altas semideias,
que em torno estão do corpo sepultado,
üa, regando as húmidas areias,
de flores tem o túmulo adornado;
outras queimando lágrimas sabeias,
enchem o ar de cheiro sublimado;
outras, em ricos panos, mais avante,
envolvem brandamente um novo infante.

Üa, que dantre as outras se apartou,
com gritos que a montanha entristeceram
diz que, depois que a morte a flor cortou
que as estrelas somente mereceram,
que este penhor caríssimo ficou
daquele a cujo império obedeceram
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
'té o remoto mar da Taprobana.

Diz mais que, se encontrar este minino
a noite intempestiva, amanhecendo,
que o Tejo, agora claro e cristalino,
tornará a fera Alecto em vulto horrendo;
mas, se for conservado do Destino,
que as estrelas beninas prometendo
lhe estão o largo pasto de Ampelusa,
co monte que em mau ponto viu Medusa.

Este prodígio grande a Ninfa bela
com abundantes lágrimas recita;
mas qual a eclipsada clara estrela
que entre as outras o céu primeiro habita,
tal coberta de negro vejo aquela
a quem só n'alma toca a grã desdita.
Dá cá, Frondélio, üa mão, e sobe a ver
tudo o mais que eu, de dor, não sei dizer.

FRONDÉLIO

Ó triste morte, esquiva e mal olhada,
que a tantas fermosuras injurias!
Daquela deusa, bela e delicada,
sequer algum respeito ter devias.
Esta é por certo Aónia, filha amada
daquele grão Pastor que, em nossos dias
Danúbio enfreia e manda o claro Ibero,
e espanta o morador do Euxínio fero.

Morreu-lhe o excelente e poderoso
– que a isso está sujeita a vida humana –
doce Aónio, de Aónia caro esposo.
Ah! lei dos Fados, áspera e tirana!
Mas o som peregrino e piadoso
com que a fermosa Ninfa a dor engana,
escuta um pouco; nota e vê, Umbrano,
quão bem que soa o verso castelhano.

AÓNIA

Alma y primero amor del alma mia,
spírito dichoso, en cuya vida
la mía estuvo en cuanto Dios quería!

Sombra gentil, de su prisión salida,
que del mundo á la patria te volviste,
donde fuiste engendrada y procedida!

Recibe allá este sacrificio triste
que te afrecen los ojos que te vieron,
si la memoria dellos no perdiste.

Que pues los altos cielos permitieron
que no te acompañase en tal jornada,
y para ornarse solo a ti quisieron;

nunca permitirán que acompañada
de mi no sea esta memoria tuya,
que está de tus despojos adornada.

Ni dejarán, por más que el tiempo huya,
de estar en mí con sempiterno llanto,
hasta que vida y alma se destruya.

Mas tu, gentil spíritu, entretanto
que otros campos y flores vas pisando,
y otras zamponas oyes, y otro canto,

ahora embevecido estés mirando
alla en el Empireo aquella Idea
que el mundo enfrenta y rige con su mando;

ahora te possuya Citerea
en su tercero asiento, o porque amaste,
o porque nueva amante allá te sea;

ahora el Sol te admire, si miraste
cómo vá por los signos, encendido,
las tierras alumbrando que dejaste.

Si en ver estos milagros no has perdido
la memoria de mí, o fué en tu mano
no pasar por las aguas del olvido,

vuelve un poco los ojos á este llano:
verás una que á ti, con triste lloro
sobre este mármol sordo llama en vano.

Pero si entraren en los signos de oro
lágrimas y gemidos amorosos,
que muevan el supremo y santo coro,

la lumbre de tus ojos tan hermosos,
yo la veré muy presto; y podré verte,
que, a pesar de los hados enojosos,
también para los tristes hubo muerte.

 

 

 

 

 

08/12/2005