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Luís Vaz de Camões




À PAIXÃO DE CRISTO NOSSO SENHOR




Se quando contemplamos as secretas
causas, por que o mundo se sustenta,
o revolver dos céus e dos planetas;

e se quando a memória se apresenta
este curso do sol, que é tão medido
que um ponto só não mingua nem se aumenta;

aquele efeito, tarde conhecido,
da lüa, em ser mudável tão constante
que minguar e crecer é seu partido;

aquela natureza tão possante
dos céus, que tão conformes e contrários
caminham, sem parar um breve instante;

aqueles movimentos ordinários,
a que responde o tempo, que não mente,
cos efeitos da terra necessários;

se quando, enfim, revolve sutilmente
tantas cousas a leve fantasia,
sagaz, escrutadora e diligente;

vê bem, se da razão só não desvia,
o altíssimo Ser, puro e divino,
que tudo pode, manda, move e cria;

sem fim e sem começo, um ser contino;
um Padre grande, a quem tudo é possível,
por mais árduo que seja ao homem indino;

um saber infinito, incompreensível;
üa verdade que nas cousas anda,
que mora no visível e invisível.

Esta potência, enfim, que tudo manda,
esta causa das causas, revestida
foi desta nossa carne miseranda.

Do amor e da justiça compelida,
polos erros da gente, em mãos da gente
– como se Deus não fosse – perde a vida.

o cristão descuidado e negligente,
pondera isto que digo, repousado;
não passes por aqui tão levemente.

Não, que aquele Deus alto incriado,
Senhor das cousas todas, que fundou
o céu, a terra, o fogo e o mar irado,

não do confuso caos, como cuidou
a falsa teologia e povo escuro,
que nesta só verdade tanto errou;

não dos átomos falsos de Epicuro;
não do largo oceano, como Tales,
mas só do pensamento casto e puro.

Olha, animal humano, quanto vales,
que por ti este grande Deus padece
novo modo de morte, novos males.

Olha que o sol no Olimpo se escurece,
não por oposição doutro planeta,
mas só porque virtude lhe falece.

Não vês que a grande máquina inquieta
do mundo se desfaz toda em tristeza,
e não por natural causa secreta?

Não vês como se perde a natureza;
o ar se turba; o mar, batendo, geme,
desfazendo das pedras a dureza?

Não vês que os montes caem, a terra treme
e que, até na remota e grande Atenas
o sábio Dionísio sente e teme?

Ó sumo Deus, tu mesmo te condenas,
polo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas!

Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantador da lei,
a fama a ti se põe de meu pecado.

eu, Senhor, sou ladrão; tu, sumo Rei;
eu, só, furtei; tu, com ladrões padeces;
a pena a ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-te; e tu, por me ganhares,
te dás aos homens baixos, que te vendem,
só para os homens presos resgatares.

A ti, que as almas soltas, a ti prendem;
a ti, sumo Juiz, ante juízes
te acusam, polo error dos que te ofendem.

Chamam-te malfeitor, não contradizes;
sendo tu dos profetas a certeza,
dizem que quem te fere profetizes.

Riem-se de ti; tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem tu vens ao mundo, te despreza.

O teu rosto, de cuja fermosura
se veste o céu e o sol resplandecente,
diante de quem muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banhado
cuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,
sobre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;

depois coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-no as chagas não curadas,
um tormento causando-lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplandor ornadas, lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas o levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.

e tu que passas, homem cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já co peso do madeiro.

Oh! Não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, Cavaleiro sublimado!

Que aquelas altas vozes que lá soam,
dos padres são que estão no Limbo escuro,
que já de louro e palma vos coroam.

Todos vos bradam que subais ao muro
da cidade infernal, e que arvoreis
em cima essa bandeira mui seguro.

Oh Santos Padres, não vos apresseis,
que muito mais a Deus que a vós custaram
essas duras prisões em que jazeis!

Aquelas mãos, que o mundo edificaram,
aqueles pés, que pisam as estrelas,
com duríssimos pregos se encravaram.

Mas qual será a pessoa, que as querelas
da angustiada Virgem contemplasse,
que não se mova a dor e a mágoa delas,

e que dos olhos seus não estilasse
tanta cópia de lágrimas ardentes
que carreiras no rosto assinalasse?

Oh! Quem lhe vira os olhos refulgentes
desfazendo-se em lágrimas, regando
aquelas belas faces excelentes!

Quem a vira cos gritos ir tocando
as estrelas, a quem responde o Céu,
cos acentos dos Anjos retumbando!

Quem vira quando o claro rosto ergueu
a ver o Filho, que na Cruz pendia,
donde a nossa saúde descendeu!

Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão míseras e tristes
para o Céu, para a gente espalharia!

Pois que seria, Virgem, quando vistes
com fel nojoso e com vinagre amaro
matar a sede ao Filho que paristes?

Não era este o licor suave e claro
que, para o confortar, então daríeis
a quem vos era, mais que a vida, caro.

Como, Virgem Senhora, não corríeis
a dar tetas puras ao Cordeiro
que padecer na Cruz com sede víeis?

Não só era esse, Senhora, o verdadeiro
poto, que vosso Filho desejava,
morrendo polo mundo num madeiro;

mas era a salvação, que ali ganhava
para o mísero Adão, que ali bebia
na fonte, que do peito lhe manava.

Pois, ó pura e Santíssima Maria,
que enfim sentistes esta mágoa, quanto
a gravidade dela o requeria;

dessa Fonte sagrada e peito santo
me alcançai üa gota, com que lave
a culpa, que me agrava e pesa tanto.

Do licor salutífero e suave
me abrangei, com que mate a sede dura
deste mundo tão cego, torpe e grave.

Assi, Senhora, toda a criatura
que vive e viverá, que não conhece
a Lei do vosso Filho, santa e pura;

o falsíssimo herege, que carece
da graça, e com danado e falso esprito
perturba a Santa Igreja, que florece;

o povo pertinaz, no antigo rito,
que só o desterro seu, que tanto dura,
lhe diz que é pena igual ao seu delito;

o torpe Ismaelita, que mistura
as leis, e com preceitos viciosos
na terra estende a seita falsa, impura;

os idólatras maus, supersticiosos,
vários de opiniões e de costume,
levados de conceitos fabulosos;

as mais remotas gentes, onde o lume
da nossa fé não chega, nem que tenham
religião algüa se presume;

assi todos, enfim, Senhora, venham
confessar um só Deus crucificado,
e por nenhum respeito se detenham.

Mas de todos o vício já passado,
o Seu nome co vosso, neste dia,
seja por todo mundo celebrado;
e respondam os Céus: JESUS, MARIA.

 

 

 

 

 

08/12/2005