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Luís Vaz de Camões




Fermosa fera humana




Fermosa fera humana,
em cujo coração soberbo e rudo
a força soberana
do vingativo Amor, que vence tudo,
as pontas amoladas
de quantas setas tinha, tem quebradas;

amada Circe minha
- posto que minha não, contudo amada – ,
a quem um bem que tinha
da doce liberdade desejada
pouco a pouco entreguei,
e, se mais tenho, inda entregarei:

pois natureza irosa
da razão te deu partes tão contrárias
que, sendo tão fermosa,
folgues de te queimar em flamas várias,
sem arder em nenhüa
mais que enquanto alumia o mundo a Lüa;

pois triunfando vás
com diversos despojos de perdidos,
que tu privando estas
de razão, de juízo e de sentidos,
e quase a todos dando
aquele bem que a todos vós negando;

pois tanto te contenta
ver o nocturno moço, em ferro envolto,
debaixo da tormenta
de Júpiter, em água e vento solto,
à porta, que impedido
lhe tem seu bem, de mágoa adormecido;

porque não tens receio
que tantas inocências e esquivanças
a deusa que põe freio
a soberbas e doudas esperanças
castigue com rigor,
e contra ti se acenda o fero Amor?

Olha a fermosa Flora:
de despojos de mil suspiros rica,
pelo capitão chora
que lá em Tessália, enfim, vencido fica,
e foi sublime tanto
que altares lhe deu Roma e nome santo.

Olha em Lesbos aquela
no seu salteiro insigne conhecida
dos muitos que por ela
se perderam: perdeu a cara vida,
na rocha que se infama
com ser remédio extremo de quem ama

pelo moço escolhido,
onde mais se mostravam as três Graças;
que Vénus escondido
para si teve um tempo antre as alfaças;
pagou coa morte fria
a ma vida que a muitos já daria.

E, vendo-se deixada
daquele por quem tantos já deixara,
se foi desesperada
precipitar da infame rocha cara;
que o mal de mal querida
sabe que vida lhe é perder a vida.

«Tomai-me, bravos mares;
tomai-me vós, pois outrem me deixou!»
E assi, dos altos ares
pendendo, com furor se arremessou.
Acude tu, suave,
acude, poderosa e divina ave!

Toma-a nas asas tuas,
Minino pio, ilesa sem perigo,
antes que nessas cruas
águas caindo, apague o fogo antigo.
É digno amor tamanho
de viver e ser tido por estranho?

«Não; que é razão que seja
para as lobas isentas, que amor vendem,
exemplo onde se veja
que também ficam presas as que prendem.»
Assi deu por sentença
Némesis, que Amor quis que tudo vença.

 

 

 

 


 

16/03/2006