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Luís Vaz de Camões



Canto III (Parte II)




51
«Ali se vêm encontros temerosos,
Pera se desfazer hüa alta serra,
E os animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou, ferindo a terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra.
Mas o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe, corta, desfaz, abola e talha.

52
«Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando,
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi, de branco e verde.

53
«Já fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa rica;
Desbaratado e roto o Mauro Hispano,
Três dias o grão Rei no campo fica.
Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos.

54
«E nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora vendido,
Escrevendo a memória, em vária tinta,
D'Aquele de Quem foi favorecido.
Em cada um dos cinco, cinco pinta,
Porque assi fica o número comprido,
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.

55
«Passado já algum tempo que passada
Era esta grão vitória, o Rei subido
A tomar vai Leiria, que tomada
Fora, mui pouco havia, do vencido.
Com esta a forte Arronches sojugada
Foi juntamente; e o sempre enobrecido
Scabelicastro, cujo campo ameno
Tu, claro Tejo, regas tão sereno.

56
«A estas nobres vilas sometidas
Ajunta também Mafra, em pouco espaço,
E, nas serras da Lüa conhecidas,
Sojuga a fria Sintra o duro braço;
Sintra, onde as Naiades, escondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doce laço
Onde Amor as enreda brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente.

57
«E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo engano foi Dardânia acesa;
Tu, a quem obedece o Mar profundo,
Obedeceste à força Portuguesa,
Ajudada também da forte armada
Que das Boreais partes foi mandada.

58
«Lá do Germânico Álbis e do Reno
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o povo Sarraceno
Muitos com tenção santa eram partidos.
Entrando a boca já do Tejo ameno,
Co arraial do grande Afonso unidos,
Cuja alta fama antão subia aos céus,
Foi posto cerco aos muros Ulisseus.

59
«Cinco vezes a Lüa se escondera
E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando a cidade, entrada, se rendera
Ao duro cerco que lhe estava posto.
Foi a batalha tão sanguina e fera
Quanto obrigava o firme prossuposto
De vencedores ásperos e ousados,
E de vencidos já desesperados.

60
«Destarte, enfim, tomada se rendeu
Aquela que, nos tempos já passados,
À grande força nunca obedeceu
Dos frios povos Cíticos ousados,
Cujo poder a tanto se estendeu,
Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam
Que à terra de Vandália nome deram.

61
«Que cidade tão forte porventura
Haverá que resista, se Lisboa
Não pôde resistir à força dura
Da gente cuja fama tanto voa?
Já lhe obedece toda a Estremadura,
Óbidos, Alanquer (por onde soa
O tom das frescas águas entre as pedras,
Que, murmurando, lava) e Torres Vedras.

62
«E vós também, ó terras Transtaganas,
Afamadas co dom da flava Ceres,
Obedeceis às forças mais que humanas,
Entregando-lhe os muros e os poderes;
E tu, lavrador Mouro, que te enganas,
Se sustentar a fértil terra queres;
Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,
E Alcáçare do Sal estão rendidas.

63
«Eis a nobre cidade, certo assento
Do rebelde Sertório antigamente,
Onde ora as águas nítidas de argento
Vêm sustentar de longe a terra e a gente,
Pelos arcos reais, que, cento e cento,
Nos ares se alevantam nobremente,
Obedeceu por meio e ousadia
De Giraldo, que medos não temia.

64
«Já na cidade Beja vai tomar
Vingança de Trancoso destruída
Afonso, que não sabe sossegar,
Por estender co a fama a curta vida.
Não se lhe pode muito sustentar
A cidade; mas, sendo já rendida,
Em toda a cousa viva a gente irada
Provando os fios vai da dura espada.

65
«Com estas sojugada foi Palmela
E a piscosa Cizimbra e, juntamente,
Sendo ajudado mais de sua estrela,
Desbarata um exército potente
(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela),
Que a socorrê-la vinha diligente
Pela fralda da serra, descuidado
Do temeroso encontro inopinado.

66
«O Rei de Badajoz era, alto Mouro,
Com quatro mil cavalos furiosos
Inúmeros peões, de armas e de ouro
Guarnecidos, guerreiros e lustrosos.
Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,
Cos ciúmes da vaca, arreceosos,
Sentindo gente, o bruto e cego amante,
Salteia o descuidado caminhante:

67
«Destarte Afonso, súbito mostrado,
Na gente dá, que passa bem segura,
Fere, mata, derriba, denodado;
Foge o Rei Mouro, e só da vida cura.
Dum pânico terror todo assombrado,
Só de segui-lo o exército procura,
Sendo estes que fizeram tanto abalo
No mais que só sessenta de cavalo.

68
«Logo segue a vitória, sem tardança,
O grão Rei incansábil, ajuntando
Gentes de todo o Reino, cuja usança
Era andar sempre terras conquistando.
Cercar vai Badajoz, e logo alcança
O fim de seu desejo, pelejando
Com tanto esforço e arte e valentia,
Que a fez fazer às outras companhia.

69
«Mas o alto Deus, que pera longe guarda
O castigo daquele que o merece,
Ou, pera que se emende, às vezes tarda,
Ou por segredos que homem não conhece,
Se até qui sempre o forte Rei resguarda
Dos perigos a que ele se oferece,
Agora lhe não deixa ter defesa
Da maldição da mãe que estava presa:

70
«Que, estando na cidade que cercara,
Cercado nela foi dos Leoneses,
Porque a conquista dela lhe tomara,
De Leão sendo e não dos Portugueses.
A pertinácia aqui lhe custa cara,
Assi como acontece muitas vezes,
Que em ferros quebra as pernas, indo aceso
A batalha, onde foi vencido e preso.

71
«Ó famoso Pompeio, não te pene
De teus feitos ilustres a ruína,
Nem ver que a justa Némesis ordene
Ter teu sogro de ti vitória dina,
Posto que o frio Fásis ou Siene,
Que pera nenhum cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a Linha ardente
Temessem o teu nome geralmente.

72
«Posto que a rica Arábia e que os feroces
Heníocos e Colcos, cuja fama
O Véu dourado estende, e os Capadoces
E Judeia, que um Deus adora e ama,
E que os moles Sofenos e os atroces
Cilícios, com a Arménia, que derrama
As águas dos dous Rios cuja fonte
Está noutro mais alto e santo Monte,

73
«E, posto, enfim, que desde o Mar de Atlante
Até o Cítico Tauro, monte erguido,
Já vencedor te vissem, não te espante,
Se o campo Emátio só te viu vencido,
Porque Afonso verás, soberbo e ovante,
Tudo render e ser despois rendido.
Assi o quis o Conselho alto, celeste,
Que vença o sogro a ti e o genro a este.

74
«Tornado o Rei sublime, finalmente,
Do divino Juízo castigado,
Despois que em Santarém soberbamente,
Em vão, dos Sarracenos foi cercado,
E despois que do mártire Vicente
O santíssimo corpo venerado
Do Sacro Promontório conhecido
À cidade Ulisseia foi trazido;

75
«Por que levasse avante seu desejo,
Ao forte filho manda, o lasso velho,
Que às terras se passasse de Alentejo,
Com gente e co belígero aparelho.
Sancho, de esforço e de ânimo sobejo,
Avante passa e faz correr vermelho
O rio que Sevilha vai regando,
Co sangue Mauro, bárbaro e nefando.

76
«E, com esta vitória cobiçoso,
Já não descansa o moço, até que veja
Outro estrago como este, temeroso,
No Bárbaro que tem cercado Beja.
Não tarda muito o Príncipe ditoso
Sem ver o fim daquilo que deseja.
Assi estragado, o Mouro na vingança
De tantas perdas põe sua esperança.

77
«Já se ajuntam do monte a quem Medusa
O corpo fez perder que teve o Céu;
Já vêm do promontório de Ampelusa
E do Tinge, que assento foi de Anteu.
O morador de Abila não se escusa,
Que também com suas armas se moveu,
Ao som da Mauritana e ronca tuba,
Todo o Reino que foi do nobre Juba.

78
«Entrava, com toda esta companhia,
O Miralmomini em Portugal;
Treze Reis Mouros leva de valia,
Entre os quais tem o ceptro Imperial.
E assi, fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer mal,
Dom Sancho vai cercar em Santarém;
Porém não lhe sucede muito bem.

79
«Dá-lhe combates ásperos, fazendo
Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;
Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina secreta, aríete forçoso,
Porque o filho de Afonso, não perdendo
Nada do esforço e acordo generoso,
Tudo provê com ânimo e prudência,
Que em toda a parte há esforço e resistência.

80
«Mas o velho, a quem tinham já obrigado
Os trabalhosos anos ao sossego,
Estando na cidade cujo prado
Enverdecem as águas do Mondego,
Sabendo como o filho está cercado,
Em Santarém, do Mauro povo cego,
Se parte diligente da cidade,
Que não perde a presteza co a idade.

81
«E, co a famosa gente, à guerra usada,
Vai socorrer o filho; e assi ajuntados,
A Portuguesa fúria costumada
Em breve os Mouros tem desbaratados.
A campina, que toda está coalhada
De marlotas, capuzes variados,
De cavalos, jaezes, presa rica,
De seus senhores mortos cheia fica.

82
«Logo todo o restante se partiu
De Lusitânia, postos em fugida;
O Miralmomini só não fugiu,
Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.
A Quem lhe esta vitória permitiu
Dão louvores e graças sem medida;
Que, em casos tão estranhos, claramente
Mais peleja o favor de Deus que a gente.

83
«De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, Príncipe subido,
Quando quem tudo, enfim, vencendo andava,
Da larga e muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe tocava,
Com fria mão, o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos, deste jeito,
A triste Libitina seu direito.

84
«Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saudosas
Os semeados campos alagaram,
Com lágrimas correndo piadosas,
Mas tanto pelo mundo se alargaram,
Com fama, suas obras valerosas,
Que sempre no seu Reino chamarão:
"Afonso! Afonso!" os ecos; mas em vão.

85
«Sancho, forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que em sua vida já se exprimentara,
Quando o Bétis de sangue se tingia
E o bárbaro poder desbaratara
Do Ismaelita Rei de Andaluzia,
E mais quando os que Beja em vão cercaram,
Os golpes de seu braço em si provaram;

86
«Despois que foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o Bárbaro lavrava.
Em das valentes gentes ajudado
Da Germânica armada que passava,
De armas fortes e gente apercebida,
A recobrar Judeia já perdida.

87
«Passavam a ajudar na santa empresa
O roxo Federico, que moveu
O poderoso exército, em defesa
Da cidade onde Cristo padeceu,
Quando Guido, co a gente em sede acesa,
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar onde aos Mouros sobejavam
As águas que os de Guido desejavam.

88
«Mas a fermosa armada, que viera
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do santo Marte.
Assi como a seu pai acontecera,
Quando tomou Lisboa, da mesma arte
Do Germano ajudado, Silves toma
E o bravo morador destrui e doma.

89
«E se tantos troféus do Maometa
Alevantando vai, também do forte
Leonês não consente estar quieta
A terra, usada aos casos de Mavorte,
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tuí, que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas.

90
«Mas, entre tantas palmas, salteado
Da temerosa morte, fica herdeiro
Um filho seu, de todos estimado,
Que foi segundo Afonso e Rei terceiro.
No tempo deste, aos Mouros foi tomado
Alcáçare do Sal, por derradeiro;
Porque dantes os Mouros o tomaram,
Mas agora estruídos o pagaram.

91
«Morto despois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado;
Que tanto em seus descuidos se desmede
Que de outrem quem mandava era mandado.
De governar o Reino, que outro pede,
Por causa dos privados foi privado,
Porque, como por eles se regia,
Em todos os seus vícios consentia.

92
«Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher e, despois, horrendo incesto
Com a mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes e molesto,
Que a cidade queimasse onde vivia;
Nem tão mau como foi Heliogabalo,
Nem como o mole Rei Sardanapalo;

93
«Nem era o povo seu tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha, como Fálaris, achado
Género de tormentos inumanos;
Mas o Reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A Rei não obedece nem consente
Que não for mais que todos excelente.

94
«Por esta causa, o Reino governou
O Conde Bolonhês, despois alçado
Por Rei, quando da vida se apartou
Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o Bravo se chamou,
Despois de ter o Reino segurado,
Em dilatá-lo cuida, que em terreno
Não cabe o altivo peito, tão pequeno.

95
«Da terra dos Algarves, que lhe fora
Em casamento dada, grande parte
Recupera co braço, e deita fora
O Mouro, mal querido já de Marte.
Este de todo fez livre e senhora
Lusitânia, com força e bélica arte,
E acabou de oprimir a nação forte
Na terra que aos de Luso coube em sorte.

96
«Eis despois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o Reino próspero florece
(Alcançada já a paz áurea, divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.

97
«Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar de Mondego a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.

98
«Nobres vilas de novo edificou,
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quase o Reino todo reformou
Com edifícios grandes e altos muros;
Mas, despois que a dura Átropos cortou
O fio de seus dias já maduros,
Ficou-lhe o filho, pouco obediente,
Quarto Afonso, mas forte e excelente.

99
«Este sempre as soberbas Castelhanas
Co peito desprezou firme e sereno
Porque não é das forças Lusitanas
Temer poder maior, por mais pequeno;
Mas porém, quando as gentes Mauritanas,
A possuir o Hespérico terreno,
Entraram pelas terras de Castela,
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

100
«Nunca com Semirâmis gente tanta
Veio os campos Hidáspicos enchendo,
Nem Átila, que Itália toda espanta,
Chamando-se de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno bárbaro, estupendo,
Co poder excessivo de Granada,
Foi nos campos Tartéssios ajuntada.


 

 

 

 

 

28/11/2005