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Luís Vaz de Camões




Já calma nos deixou




Já calma nos deixou
sem flores as ribeiras graciosas;
já de todo secou
os cravos, lírios e as purpúreas rosas;
fogem da calma grave os passarinhos
para o sombrio emparo de seus ninhos.

Meneia os altos freixos
a branda viração, de quando em quando,
e dentre vários seixos,
o líquido cristal sai murmurando;
as gotas, que das alvas pedras saltam,
o prado, como pérola, esmaltam.

Da caça já cansada,
busca a casta Titânia a espessura,
onde, a sombra deitada,
logre o doce repouso da verdura,
e sobre o seu cabelo crespo e louro
deixe cair o bosque o seu tesouro.

O Céu desimpedido
mostra o eterno lume das estrelas;
e de flores vestido,
üas vermelhas, outras amarelas,
se mostra alegre o bosque, alegre o monte,
o rio, o arvoredo, o prado, a fonte.

Porque como o minino
que a Júpiter pola águia foi levado,
no cerco cristalino
foi do amador de Clície visitado,
o bosque chorará, chorará a fonte,
o rio, o arvoredo, o prado, o monte.

O mar, que agora, brando,
é das lindas Nereidas cortado,
se irá alevantando
todo, em crespas escumas empolado;
o soberbo furor do negro vento
fará por toda a parte movimento.

Lei e da Natureza
mudar-se desta sorte o tempo leve;
suceder a beleza
da Primavera o fruto; à calma, a neve;
e tornar outra vez, por certo fio,
Outono, Inverno, Primavera, Estio.

Tudo, enfim, faz mudança,
quanto o claro Sol vê, quanto alumia;
nem se acha segurança
em tudo quanto alegra o belo dia;
mudam-se as condições, muda-se a idade,
a bonança, os estados e a vontade.

Só a minha inimiga
a dura condição nunca mudou,
para que o mundo diga
que, nela, lei tão certa se quebrou;
só ela em me não ver sempre está firme,
ou por fugir d'Amor, ou por fugir-me.

Mas já sofrível fora
só ela em me matar mostrar firmeza,
se não achara agora
também em mim mudada a natureza;
pois sempre o coração tenho turbado,
sempre d'escuras nuvens rodeado.

Sempre exprimento os fios
que em contino receio Amor me manda;
sempre os dous caudais rios
que em meus olhos abriu quem nos seus anda,
correm, sem chegar nunca o Verão brando,
que tamanha aspereza vá mudando.

O Sol, sereno e puro,
que no fermoso rosto resplandece,
envolto em manto escuro,
do triste esquecimento, não parece,
deixando em triste noite a triste vida,
que nunca é de luz nova socorrida.

Porém seja o que for:
mude-se, por meu dano, a Natureza;
perca a constância Amor;
a Fortuna inconstante ache firmeza;
e tudo se conjure contra mi,
mas eu firme estarei no que emprendi.

 

 

 

 


 

16/03/2006