Luís Vaz de Camões
Aquele moço fero
Aquele moço fero
na peletrónia cova doutrinado
do Centauro severo,
cujo peito esforçado
com tutanos de tigres foi criado;
na água fatal, minino,
o lava a mãe, pressaga do futuro,
para que ferro fino
não passe o peito duro
que de si mesmo a si se tem por muro.
A carne lhe endurece,
que ser não possa de armas ofendida.
Cega! que não conhece
que pode haver ferida
n'alma, que menos dói perder a vida.
Que, aonde o braço irado
dos Troianos passava arnês e escudo,
ali se viu passado
daquele ferro agudo
do Minino que em todos pode tudo.
Ali se viu cativo
da cativa gentil, que serve e adora;
ali se viu que, vivo,
em vivo fogo mora,
porque de seu senhor se vê senhora.
Já toma a branda lira
na mão que a dura Pélias meneara;
ali canta e suspira,
não como lhe ensinara
o velho, mas o Moço que o cegara.
Pois, logo, quem culpado
será se, de pequeno, oferecido
foi logo a seu cuidado,
no berço instituído
a não poder deixar de ser ferido?
Quem, logo, fraco infante,
doutro mais poderoso foi sujeito,
que para cego amante
foi de princípio feito,
com lágrimas banhando o brando peito?
Se agora foi ferido
da penetrante seta e força de erva,
e se Amor é servido
que sirva à linda serva,
para que minha estrela me reserva?
O gesto bem-talhado,
o airoso meneio e a postura,
o rosto delicado,
que na vista afigura
que se ensina por arte a fermosura,
como pode deixar
de cativar quem tenha entendimento?
Que, quem não penetrar
um doce gesto, atento,
não lhe é nenhum louvor viver isento.
Que aqueles cujos peitos
ornou de altas ciências o destino,
esses foram sujeitos
ao cego e vão Minino,
arrebatados do furor divino.
O Rei fermoso hebreio,
que mais que todos soube, mais amou;
tanto que a deus alheio
falso sacrificou.
Se muito soube e teve, muito errou.
E o grão Sábio que ensina,
passeando, os segredos da Sofia,
à baixa concubina
do vil eunuco Hermia
aras ergueu, que aos deuses só devia.
Aras ergue a quem ama
o Filósofo insigne namorado.
Dói-se a perpétua Fama
e grita que, culpado,
da lesa-divindade e acusado.
Já foge donde habita;
já paga a culpa enorme com desterro.
Mas, oh! grande desdita!
Bem mostra tamanho erro
que doutos corações não são de ferro.
Antes na altiva mente,
no sutil sangue e engenho mais perfeito,
há mais conveniente
e conforme sujeito
onde se imprima o brando e doce afeito.
|