Luís Vaz de Camões
A D. Constantino, Viso-Rei da Índia:
Como nos vossos ombros tão constantes,
Príncipe ilustre e raro, sustenteis
tantos negócios árduos e importantes
dignos do largo Império que regeis;
como sempre nas armas rutilantes
vestido, o mar e a terra segureis
do pirata insolente e do tirano
jugo do potentíssimo Otomano;
e como, com virtude necessária
mal entendida do juízo alheio,
à desordem do vulgo temerária
na santa paz ponhais o duro freio;
se com minha escritura longa e vária
vos ocupasse o tempo, certo creio
que com ridiculosa fantasia
contra o comum proveito pecaria.
E não menos seria reputado
por doce adulador sagaz e agudo,
que contra tão baixo e triste estado
busco favor em vós, que podeis tudo;
se, contra a opinião do vulgo errado,
vos celebrasse em verso humilde e rudo,
dirão que com lisonja ajuda peço
contra a miséria injusta que padeço.
Porém, porque a virtude pode tanto
no livre arbítrio – como disse bem
a Dario rei, o moço sábio e santo
que foi reedificar Hierusalém – ,
esta me obriga que, em humilde canto,
contra a tenção que a plebe ignara tem,
vos faça claro o que vos não alcança,
e não de prémio algum vil de esperança.
Rómulo, Baco e outros que alcançaram
nomes de semideuses soberanos,
enquanto pelo mundo exercitaram
altos feitos e quase mais que humanos,
com justíssima causa se queixaram
que não lhe responderam os mundanos
favores do rumor, justos e iguais,
a seus merecimentos imortais.
Aquele que nos braços poderosos
tirou a vida ao tingitano Anteu,
a quem os seus trabalhos tão famosos
fizeram cidadão do alto Céu,
achou que a má tenção dos envejosos
não se doma senão despois que o véu
se rompe corporal; porque na vida
ninguém alcança a glória merecida.
Pois, logo, se varões tão excelentes
foram do baixo vulgo molestados,
o vitupério vil das rudes gentes
é louvor dos reais e sublimados.
Quem no lume dos vossos ascendentes
poderá pôr os olhos que, abalados
lhe não fiquem da luz, vendo os maiores
vossos passados, Reis e Imperadores?
Quem verá aquele pai da pátria sua,
açoute do soberbo Castelhano,
que o duro jugo, só, coa espada nua
removeu do pescoço lusitano,
que não diga: «Ó grão Nuno, a eterna tua
memória causará, se não me engano,
que qualquer teu menor tanto se estime
que nunca possas ser senão sublime!»
Nisto não falo mais, porque conheço
que da matéria se me abaixa o engenho.
Mas, pois que a dizer tudo me ofereço,
que dias há que no desejo o tenho,
sendo vós de tão alto e ilustre preço,
a vida fostes pôr num fraco lenho,
por largo mar e undosa tempestade
só por servir a régia Majestade.
E despois de tomar a rédea dura
na mão, do povo indómito que estava
costumado à largueza e à soltura
do pesado governo que acabava;
quem não terá por santa e justa cura,
qual do vosso conceito se esperava,
a tão desenfreada infirmidade
aplicar-lhe contrária qualidade?
Não é muito, Senhor, se o moderado
governo se blasfema e se desama;
porque o povo a larguezas costumado
à lei serena e justa dura chama.
Pois o zelo, em virtude só fundado,
de salvar almas da tartárea flama
coa água salutífera de Cristo,
poderá porventura ser malquisto?
Quem quisesse negar tão grã verdade,
qual é o seu efeito santo e pio,
negue também ao sol a claridade,
e certifique mais que o fogo é frio.
Que o sucesso é contrário da vontade;
as obras, que são boas, e o desvio,
está nas mãos dos homens cometê-las,
e nas de Deus está o sucesso delas.
Sei eu e sabem todos: os futuros
verão por vós o Estado acrecentado;
serão memória vossa os fortes muros
do cambaico Damão bem sustentado;
da ruína mortal serão seguros,
tendo todo o alicerce seu fundado
sobre órfãs emparadas com maridos,
e pagos os serviços bem devidos.
Camanha infâmia ao Príncipe é perder-se
ponto do Estado seu, que inteiro herdou,
por tão célebre glória pode ter-se
se acrecentado e próspero o deixou.
Nunca consentiu Roma enobrecer-se
com triunfo ninguém, se não ganhou
província que o Império acrecentasse,
por maiores vitórias que alcançasse.
Pode tomar o vosso nome dino
Damão, por honra sua clara e pura,
como já do primeiro Constantino
tomou Bizâncio aquele que inda dura.
E tu, rei, que no reino neptunino,
lá no seio gangético, a Natura
te aposentou, de seres inimigo
deste Estado, não ficas sem castigo.
Bem viste contra ti nadantes naves
cortar a espumosa água, navegando;
ouviste o som das tubas, não suaves,
mas com temor horrífero soando;
sentiste os golpes ásperos e graves
do braço lusitano, nunca brando;
não sofreste o grão brado penetrante,
que os trovões imita do Tonante;
mas antes, dando as costas e a vitória
à bragancês ventura, não corrido,
deste bem a entender camanha glória
e de tal vencedor seres vencido.
Quem fez obras tão dinas de memória
sempre será famoso e conhecido
onde os juízos altos se estimarem,
que estes sós têm poder de fama darem.
Não vos temais, Senhor, do povo ignaro
e ingrato, a quem tanto fez por ele;
mas sabei que é sinal de serdes claro
serdes agora tão malquisto dele.
Temístocles, da pátria sua emparo,
o forte, liberal Címon, e aquele
que leis ao povo deu de Esparta antigo,
testemunhas serão disto que digo.
Pois ao justo Aristides um robusto,
votando no ostracismo costumado,
lhe disse claro assi: porque era justo,
desejava que fosse desterrado.
Paquitas, por fugir do povo injusto,
calunioso, dando no Senado
conta de Lesbos, que ele já mandara,
se tirou com sua espada a vida cara.
Demóstenes, deitado das tormentas
populares, a Palas foi dizendo:
«De que três monstros grandes te contentas:
do drago e mocho, e do vil povo horrendo!»
Que glórias imortais houve, que isentas
do veneno vulgar fossem? E vendo
pois mil exemplos deixo de Romanos;
e vês também sois um dos Lusitanos.
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