Luís Vaz de Camões
Petição feita ao regedor de üa nobre moça presa no
Limoeiro da cidade de Lisboa por se dizer que fizera
adultério a seu irmão, que era na Índia, feita por Luís
de Camões:
Esprito valeroso, cujo estado
o alto Deus prospere e acrescente,
regendo o fiel Reino descansado,
com vida felicíssima e contente:
a vós, em quem o humil necessitado
acha sempre favor e amor ardente
peço queirais ouvir que, na verdade,
zelo e amor de Deus me persuade.
Não vos seja pesado o atrever-me
a querer emprender sujeito alheio,
porque fizeram lágrimas mover-me
vir ante vós, ousado e sem receio.
E se por tal quiserdes conhecer-me,
servindo-vos de mim por algum meio,
o nome, o braço, a Musa e quanto posso,
há já muito, Senhor, que tudo é vosso.
Quem isto oferece vos dirá quanto
desejo, muito lea, ser-vos aceito
por que, com vosso zelo, o favor santo
faça meu rude verso algum proveito;
que, cobrindo-me vós com vosso manto,
a eu ser nobre tendo algum respeito,
sei que posso ganhar o que não tenho,
pois me não faltam forças nem engenho.
Porém isto, Senhor, deixando à parte,
que razão é devida a que me guia,
a vós venho com força, engenho e arte,
por influxo do Céu, que a vós me envia;
a vós, a quem tem dado Apolo e Marte
de seus tesouros parte e melhoria,
venho cantar com voz rouca e chorosa,
por üa encarcerada desditosa.
A vós venho, Senhor, na confiança
do vosso nome pondo meu sentido,
que quem em vós confia, tudo alcança,
sendo cousa de que Deus é servido;
e pois Ele vos deu justa balança
para pesar justiça e dar ouvido,
ouvi a petição da miserável,
com quem Fortuna foi tão pouco afável.
Ouvi da pobre Dona Catarina
o grande desemparo inopinado,
a quem nenhum remédio determina
ou permite seu duro e cruel Fado;
que se na tenra idade foi mofina,
a vida entregando ao vão cuidado,
haja nisso castigo com brandura,
porque o medo a fará viver segura.
Haja, Senhor, cuidar que é moça pobre;
que pobreza não tem nenhum respeito,
e mais não tendo idade que lhe sobre
pera saber fugir do que é mal feito;
haja também cuidar que é sangue nobre
e ao jugo da Igreja inda sujeito,
e que pode nacer de tal processo
um grande e crudelíssimo sucesso.
Certo que, com razão urgente e clara,
tem algüa razão a infelice;
que se ninguém recolhe nem ampara
a triste, órfã na flor da meninice,
a Fortuna cruel, em tudo avara,
pera lhe acarretar triste velhice,
lhe entrega a honra e pura castidade
nas mães de üa cruel necessidade.
Bem sei que de ter culpa não carece,
se por não ser do sangue seu lembrada;
mas dê-se-lhe o castigo que merece,
e não para tão longe desterrada.
Que, se para lá for, bem se conhece
quão vilmente será vituperada,
dando motivo ao rude marinheiro
que seja incontinente carniceiro.
Vede, Senhor, o risco a que se obriga
a desditosa e frágil mocidade,
se honra não vai buscar ou parte amiga
que lhe defenda sua honestidade.
Não queirais, não, Senhor, que o mundo diga
Ah! que grande rigor e crueldade!»,
como já vai dizendo e murmurando,
sua grande ignorância desculpando.
Eu certo não duvido que o piloto,
o mestre, o marinheiro, o capitão,
usem do costumado vício roto
com todas as que em seus poderes vão;
dai-me vós, Senhor, um que este remoto
de tal delícia nesta ocasião,
e eu direi ser falso o que vos digo,
tomando sobre mim todo o castigo.
já não há i João posto em deserto,
que seja ao Céu, por casto, tão aceito,
nem há quem não cometa desconcerto
nessa torpeza bruta e vil sujeito.
Já não é aí Hierónimo tão certo
que, com pedra na mão, ferindo o peito,
e da carne estimulado, assi lhe diga:
«Não te chegues a mim, carne inimiga!»
A culpa é dos parentes descuidados,
que, vendo-a sem amparo e sem abrigo,
em tempo que os mais ricos e esforçados,
temendo a Deus, fugiam a seu castigo,
uns pera seus jardins determinados,
outros por onde o Céu lhe fosse amigo,
a deixaram tão só nesta cidade,
batalhando coa vil necessidade.
Pois quem houvera aí que não caíra,
vendo-se em tal extremo, em tal miséria?
Qual Artemisa aqui não consentira?
Qual romana Sofrónia, ou qual Valéria?
E qual Lucrécia fora, que isto vira,
que não rendera o jugo à vil matéria?
Qual tebana Timóquia, ou linda Sara,
ou qual mulher de Ulisses se negara?
Qual fora a que se vira em tão infesta
batalha, turbulenta e espantosa,
exercitando a morte rija e mesta
seu duro ofício, brava e rigorosa;
que ninfa houvera aí, que deusa Vesta
em virginal estado poderosa,
que não rendera a tudo o casto nome,
por não morrer nas mãos da dura fome?
Ah! valeroso esprito, caso é isto
pera se dar perdão à fraca ovelha;
não seja o perdão seu, seja de Cristo,
pois ele a perdoar nos aconselha.
Assi nos altos Céus sejais benquisto,
e vos incline Deus atenta orelha.
Que vos lembre, Senhor, seu desemparo,
pois sois dos pobres pai e amigo claro.
Por isso olhai, Senhor, a quanto importa
cortar ocasiões com fio agudo;
porque, não se cortando, abre-se porta
do lascivo desejo ao nauta rudo.
e se, como vos digo, esta se corta,
olhando bem as leis do claro estudo,
será grandeza vossa mui subida,
dessa real prosápia produzida.
Olhai que tem, Senhor, üa menina
do ausente consorte e filha sua,
muito desemparada e pequenina,
fora do natural, despida e nua.
Sede vós, Senhor, água da piscina;
a vosso zelo tudo se atribua;
que, movendo-vos ele, não duvido
que tudo a ela seja concedido.
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