Luís Vaz de Camões
Senhora, se encobrir por alguma arte
Senhora, se encobrir por alguma arte
pudera esta ocasião de meu tormento,
não creias que chegara a declarar-te
este meu perigoso pensamento;
mas, por mais que te ofenda, não sou parte
no crime de tamanho atrevimento;
ele é de Amor, e dele fui forçado
a que te declarasse o meu cuidado.
Se merece castigo a confiança
com que descubro agora o que padeço,
aqui pronto me tens, toma vingança,
que por tão grave culpa te mereço.
Bem me podes negar toda esperança,
mas eu não desistir deste começo;
porque Tempo e Fortuna não são parte
para deixar uma hora só de amar-te.
Já que ver-te os meus olhos alcançaram,
descansem neste bem com alegria,
pois já com ver os teus tanto ganharam
quanto, estando sem vê-los, se perdia.
Que glória querem mais, se a ver chegaram
aquela pura luz que vence ao dia?
Qual mor bem há no mundo que querer-te,
se não há mais que ver despois de ver-te?
Minhas dores mortais, bela Senhora,
tiraram a virtude ao sofrimento
e, fazendo-se mais em qualquer hora,
levando vão trás ti meu pensamento.
Porém, soberbos vejo desde agora
por a causa gentil de seu tormento
minha alma, meu desejo, meu sentido,
porque à tua beleza se hão rendido.
A par de tua rara fermosura
se desconhece o mor merecimento;
a tua claridade torna escura
do sol a clara luz em um momento.
Se Zêuxis, ao formar bela figura,
a vista em ti pudera pôr atento,
mais alto original houvera achado
para admirar o mundo co traslado.
Aqueles que escreveram mil louvores
de fermosura, graça e gentileza
todos foram, Senhora, uns borradores
de tua perfeitíssima beleza.
Agora se vê claro em teus primores
que em ti se esmerou mais a Natureza,
e que eram os seus cantos profecias
do que havias de ser em nossos dias.
Vê, pois, se vinha a ser culpável falta
em mim o não render-te amante a vida
e se a deixar de amar glória tão alta
era digno da pena mais crecida:
Enfim, eu te amarei, que Amor me exalta
co castigo de culpa assi atrevida;
e, quando dela caia, maior glória
terá o Tejo que o Pó com sua história.
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