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Luís Vaz de Camões




Redondilhas (Parte II)




Trovas que mandou com um papel de alfinetes a üa dama.

Esses alfinetes vão
a vos picarem, não mais,
só por que julgueis então
o como me picarão
os com que vós me picais.
Mas os que dessas estrelas
vêm, têm pontas tão agudas
que, em que estoutros vão co elas,
podem-nos dar picadelas,
mas os vossos dão feridas.

Assi que, se bem notais
no como ambos debatem,
nunca podem ser iguais;
que, inda que esses lá mal tratem,
estes cá maltratam mais.
Porém, já que Amor consente
em piques tão desiguais,
onde vós sois mais valente,
eu, Senhora, sou contente
do que vos contentar mais.

Venham os alfinetes cá
desses olhos, por que acertem
donde acerto já não há;
porém os meus, que vão lá,
só quero que vos apertem.
E deixando o mais passado,
fazei qu' este papel seja
pregado, digo, empregado,
porque da seu gasalhado
eu mesmo lhe tenho enveja.

E se eles em vós se pregam,
por força os hei-de envejar,
não só porque bem se empregam,
mas porque, Senhora, chegam
onde eu não posso chegar.
Lá vão e lá ficarão
adonde continuamente
a par de si vos terão;
enfim, lá vos picarão,
eu cá picarei no dente.
 



A dona Francisca de Aragão, mandando-lhe esta regra que
lha glosasse

MOTE

Mas porém a que cuidados?

VOLTA

Tanto maiores tormentos
foram sempre os que sofri
daquilo que cabe em mi,
que não sei que pensamentos
são os para que naci.
Quando vejo este meu peito
a perigos arriscados
inclinado, bem suspeito
que a cuidadas sou sujeito:
mas porém a que cuidados?

OUTRA AO MESMO

Que vindes em mi buscar,
cuidados, que sou cativo
e não tenho que vos dar?
Se vindes a me matar,
já há muito que não vivo;
se vindes, porque me dais
tormentos desesperados,
eu, que sempre sofri mais,
não digo que não venhais:
mas porém a quê, cuidados?

OUTRA AO MESMO

Se as penas que Amor me deu
vêm por tão suaves meios,
não há que temer receios,
que val um cuidado meu
por mil descansos alheios.
Ter nuns olhos tão fermosos
os sentidos enlevados
bem sei que, em baixos estados,
são cuidados perigosos.
Mas porém, ah! que cuidados!
 



A uma Fuã Gonçalves

MOTE SEU

Com vossos olhos gonçalves,
Senhora, cativo tendes
este meu coração mendes.

VOLTA

Eu sou boa testemunha
que Amor tem por cousa má
que olhos, que são homens já,
se nomeiem sem alcunha;
pois o coração apunha
e diz: «Olhos pois vós tendes,
chamai-me coração mendes.»
 



MOTE ALHEIO

Tudo pode üa afeição.

GLOSA PRÓPRIA

Tem tal jurdição Amor
n' alma donde se aposenta
e de que se faz senhor,
que a liberta e isenta
de todo o humano temor;
e com mui justa razão,
como senhor soberano,
que Amor não consente dano.
E pois me sofre tenção,
gritarei por desengano:
tudo pode üa afeição.
 



À tenção de Miraguarda

MOTE

Ver, e mais guardar
de ver outro dia,
quem o acabaria?

VOLTAS

Da lindeza vossa,
Dama, quem a vê,
impossível é
que guardar-se possa.
Se faz tanta mossa
ver-vos um só dia,
quem se guardaria?

Milhor deve ser,
neste aventurar,
ver e não guardar
que guardar de ver.
Ver e defender
muito bom seria;
mas quem poderia?
 



MOTE PRÓPRIO

Se de meu mal me contento,
é porque para vós vejo
em todo o mundo desejo
e em ninguém merecimento.

VOLTA

Para quem vos soube olhar,
to impossível foi ser
o poder-vos merecer,
como o não vos desejar.
Pois logo a meu pensamento
nenhum remédio lhe vejo,
senão se der o desejo
asas ao merecimento.
 



MOTE SEU

Da alma e de quanto tiver
quem que me despojeis,
contando que me deixeis
os olhos para vos ver.

VOLTA

Cousa este corpo não tem
que já não tenhais rendida;
despois de tirar-lhe a vida,
tirai-lhe a morte também.
Se mais tenho que perder,
mais quero que me leveis;
contanto que me deixeis
os olhos para vos ver.
 



MOTE ALHEIO

Há um bem que chega e foge;
e chama-se este bem tal
ter bem para sentir mal.

VOLTA

Quem viveu sempre num ser,
inda que seja em pobreza,
não viu o bem da riqueza
nem o mal de empobrecer.
Não ganhou para perder;
mas ganhou com vida igual
não ter bem nem sentir mal.
 



MOTE ALHEIO

Todo es poco lo posible.

GLOSA PRÓPRIA

Ved que engaños señorea
nuestro juicio tan loco!
Que por mucho que se crea,
todo el bien que se desea,
alcanzado, queda poco.
Un bien de cualquiera grado,
si de haberse es imposible,
queda mucho deseado;
mas, para mucho alcanzado,
todo es poco lo posible.

OUTRA

Posible es a mi cuidado
poderme hacer satisfecho,
si fuera posible al hado
hacer no echo lo echo,
y futuro lo pasado.
Si olvido pudiera haber,
fuera remedio sufrible;
mas ya que no puede ser,
para contento me hacer,
todo es poco lo posible.
 



MOTE ALHEIO

Amor loco, amor loco,
yo por vos y vos por otro.

VOLTAS PRÓPRIAS

VOLTAS

Dióme Amor tormentos dos
para que pene doblado:
uno es verme desamado,
otro es mancilla de vos.
Ved que ordena Amor en nos:
porque me vos hacéis loeo,
que seáis loca por otro!

Tratáis Amor de manera
que porque así me tratáis
quiere que, pues no me amáis,
que améis otro que no os quiera.
Mas con todo, si no os viera
de todo loca por otro,
con mas razón fuera loco.

Y tan contrario viviendo,
alfin, alfin, conformamos,
pues ambos a dos buscamos
lo que más nos va huyendo.
Voy tras vos siempre siguiendo,
y vos huyendo por otro:
andáis loca, y me hacéis loco.
 



MOTE ALHEIO

De dentro tengo mi mal,
que de fuera no hay señal.

VOLTAS PRÓPRIAS

Mi nueva y dulce querella
es invisible á la gente:
el alma sola la siente,
que el cuerpo no es dino della.
Como la viva centella
se encubre en el pedernal,
de dentro tengo mi mal.
 



MOTE

Vos teneis mi corazón

GLOSA PRÓPRIA

Mi corazón me han robado;
y Amor, viendo mis enojos,
mi dijo: fuéte llevado
por los más hermosos ojos
que desque vivo he mirado.
Gracias sobrenaturales
te lo tienen en prisión.
Y si Amor tiene razón,
Señora, por las señales
vos tenéis mi corazón.
 



MOTE

Qué veré que me contente?

GLOSA DE LUÍS DE CAMÕES

Desque una vez miré,
Señora, vuestra beldad,
jamás por mi voluntad
los ojos de vos quité.
Pues sin vos placer no siente
mi vida, ni lo desea;
si no queréis que os vea,
qué veré que me contente?
 



MOTE

Com razão queixar-me posso
de vós, que mal vos queixais.
Pois, Senhora, vos sangrais,
que seja num corpo vosso.

VOLTAS

Eu, para levar a palma
com que ser vosso mereça,
quero que o corpo padeça
por vós, que dele sois alma.
Vós do corpo vos queixais,
eu queixar-me de vós posso;
porque, tendo um corpo vosso,
na minh' alma vos sangrais.

E sem fazer diferença
no que de mim possuís,
pelo pouco que sentis,
dais à minh' alma doença.
Pois que dous aventurais
oh! não seja o dano nosso:
sangre-se este corpo vosso,
por que, minh' alma, vivais.

E inda, se atentardes bem,
seguis medicina errada;
porque, para ser sangrada,
üa alma sangue não tem.
E pois em mim sarar posso
males, que à minha alma dais,
se inda outra vez vos sangrais,
seja neste corpo vosso.
 



MOTE ALHEIO

De vuestros ojos centellas,
que encieden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo
y en llegando son estrellas.

VOLTAS PRÓPRIAS

Falsos loores os dán,
que esas centellas tan raras
no son nel cielo más claras
que en los ojos donde están.
Porque cuando miro en ellas
de como alumbran al suelo,
no sé que serán nel cielo,
mas sé que acá son estrellas.

Ni se puede presumir
que al cielo suban, Señora,
que la lumbre que en vos mora
no tiene más que subir;
mas pienso que dán querellas
á Dios nel octavo cielo,
porque son acá, en el suelo,
dos tan hermosas estrellas.
 



Esparsa a üa dama que lhe chamou «cara sem olhos».

Sem olhos vi o mal claro
que dos olhos se seguiu,
pois cara-sem-olhos viu
olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
pois quereis que olhos não sejam;
vendo-vos, olhos sobejam,
não vos vendo, olhos não são.
 



A üa senhora que lhe chamou diabo.

ESPARSA

Não posso chegar ao cabo
de tamanho desarranjo,
que sendo vós, Senhora, anjo,
vos queira tanto o diabo.
Dais manifesto sinal
de minha muita firmeza,
que os diabos querem mal
aos anjos, por natureza.
 



MOTE

Se Helena apartar
Do campo seus olhos,
Nascerão abrolhos.

VOLTAS

A verdura amena,
Gados, que pasceis,
Sabei que a deveis
Aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
Faz flores de abrolhos
O ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
Faz claras as fontes:
Se isto faz nos montes,
Que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas,
Como ervas em molhos,
Na luz de seus olhos.

Os corações prende
Com graça inumana;
De cada pestana
Úa alma lhe pende.
Amor se lhe rende
E, posto em giolhos,
Pasma nos seus olhos.
 



A três damas que lhe diziam que o amavam

MOTE

Não sei se me engana Helena,
se Maria, se Joana;
não sei qual delas me engana.

VOLTAS

Üa diz que me quer bem,
outra jura que mo quer;
mas em jura de mulher
quem crerá, se elas não crêem?
Não posso não crer a Helena
a Maria, nem Joana;
mas não sei qual mais me engana.

Üa faz-me juramentos
que só meu amor estima;
a outra diz que se fina;
Joana que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
também mentirá Joana;
mas quem mente não engana.
 



MOTE SEU

Pus o coração nos olhos
e os olhos pus no chão
por vingar o coração.

VOLTA

O coração envejoso
como dos olhos andava,
sempre remoques me dava
que não era o meu mimoso.
Venho eu, de piadoso
do senhor meu coração,
boto os meus olhos no chão.
 



MOTE ALHEIO

Verdes são as hortas,
com rosas e flores;
moças que as regam
matam-me de amores.

VOLTAS SUAS

Entre estes penedos
que daqui parecem,
verdes ervas crecem,
altos arvoredos.
Vai destes rochedos
água com que as flores
d' outras são regadas
que matam d' amores.

Co a água que cai
daquela espessura,
outra se mestura
que dos olhos sai:
toda junta vai
regar brandas flores,
onde há outros olhos
que matam d' amores.

Celestes jardins:
as flores, estrelas;
horteloas delas
são uns Serafins.
Rosas e jasmins
de diversas cores;
anjos que as regam
matam-me d' amores.
 



CANTIGA ALHEIA

Tende-me mão nele,
qu'um real me deve.

VOLTAS PRÓPRIAS

C'um real de amor
dous de confiança
e três de esperança
me foge o tredor.
Falso desamor
s' encerra naquele
qu' um real me deve.

Pediu-mo emprestado,
não lhe quis penhor;
é mau pagador,
tendo-me aferrado.
C'um cordel atado
ao Tronco se leve,
qu' um real me deve.

Por esta travessa
se vai acolhendo;
ei-lo vai correndo,
fugindo a grão pressa.
Nesta mão e nessa
o falso s' atreve
que um real me deve.

Comprou-me amor
sem lhe fazer preço:
eu não lhe mereço
dar-me desfavor.
Dá-me tanta dor
que ando após ele
pelo que me deve.

Eu de cá bradando,
ele vai fugindo;
ele sempre rindo,
eu sempre chorando.
[E] de quando em quando
no amor s' atreve
como que não deve.

A falar verdade,
ele já pagou;
mas inda ficou
devendo ametade.
Minha liberdade
é a que me deve:
só nela se atreve.
 



MOTE

Quem disser que a barca pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.

VOLTA

Se vos quereis embarcar
e para isso estais no cais,
entrai logo; que tardais?
Olhai que está preiamar!
E se outrem, por vos fretar,
vos disser que esta que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.

Esta barca é de carreira,
tem seus aparelhos novos;
não há como ela outra em Povos,
boa de leme e veleira.
Mas, se por ser a primeira,
aos disser alguém que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.
 



Estâncias na medida antiga, que têm duas contrariedades:
louvando e deslouvando uma Dama

Sois üa dama
das feias do mundo;
de toda a má fama
sois cabo profundo.
A vossa figura
não é para ver;
em vosso poder
não há fermosura.

[Vós] fostes dotada
de toda a maldade;
perfeita beldade
de vós é tirada.
Sois muito acabada
de tacha e de glosa:
pois, quanto a fermosa,
em vós não há nada.

De grão merecer
sois bem apartada;
andais alongada
do bem parecer.
Bem claro mostrais
em vós fealdade;
não há i maldade
que não precedais.

De fresco carão
vos vejo ausente;
em vós é presente
a má condição.
De ter perfeição
mui alheia estais;
mui muito alcançais
de pouca razão.
 



 

MOTE

Deus te salve, Vasco amigo!
Não me falas? Como assi?
Bofé, Gil, não estava aqui...

VOLTAS

«Pois onde te vão falar,
se não estás onde apareces?»
«Se Madanela conheces,
nela me podes achar.»
«E como te há-de ir buscar
aonde fogem de ti?»
«Pois nem eu estou em mi... »

«Porque te não acharei
em ti, como em Madanela?»
«Porque me fui perder nela
o dia que me ganhei.»
«Quem tão bem fala, não sei
como anda fora de si.»
«Ela fala dentro em mi.»

«Como estás aqui presente,
se lá tens a alma e a vida?»
«Porque é de üa alma perdida
aparecer sempre à gente.»
«Se és morto, bem se consente
que todos fujam de ti.»
«Eu também fujo de mi.»
 



MOTE

«Porque no miras, Giraldo,
mi zampoña como suena?»
«Porque no me mia Helena.»

VOLTAS

«Vuelve acá, no estês pasmado,
Mira que gentil sonar!»
«Como te podrá mirar
quién no puede ser mirado?»
«[Y] que bueno enamorado!
No dirás si es mala o buena?»
«No, que me hizo mudo Elena.»

«Mira tan dulce armonía
déjate desos enojos.»
«Tengo clavadas los ojos
con que mirar te podia.»
«Así Dios te dé alegría:
no vés cuán dulce y serena?»
«No, porque no veo Elena.»
 



TROVAS

Dama d' estranho primor,
se vos for
pesada minha firmeza
olhai não me deis tristeza,
porque a converto em amor.
Se cuidais
de me matar, quando usais
de esquivança,
irei tomar por vingança
amar-vos cada vez mais.

Porém vosso pensamento,
como isento,
seguirá sua tenção,
crendo que em tanta afeição
não haja acrecentamento.
Não creiais
que destarte vos façais
invencível,
que Amor sobre o impossível
amostra que pode mais.

Mas já da tenção que sigo
me desdigo;
que, se há tanto poder nele,
também vós podeis mais qu' ele
neste mal que usais comigo.
Mas se for
o vosso poder maior
entre nós,
quem poderá mais que vós,
se vós podeis mais que Amor?

Despois que, Dama, vos vi,
entendi
que perdera Amor seu preço,
pois o favor que lhe eu peço
vos pede ele para si.
Nem duvido
que não pode, de sentido,
resistir;
pois, em vez de vos ferir
ficou, de vos ver, ferido.

Mas pois vossa vista é tal
em meu mal,
que posso de vós querer,
que mal poderei valer
onde o mesmo Amor não val?
Se atentar,
nenhum bem posso esperar;
e oxalá
que vos alembrasse já,
sequer para me matar.

Mas nem com isto creiais
que façais
meus serviços mais pequenos;
porqu' eu, quando espero menos,
sabei que então quero mais.
Nada espero;
mas de mim crede este fero:
que em ser vosso
vos quero tudo o que posso,
e não posso quanto quero.

Só por esta fantasia,
merecia
de meus males algum fruito;
que ainda não quero muito
para o muito que queria.
De maneira
que não é, na derradeira,
grande espanto
que quem, Dama, vos quer tanto
que outro tanto de vós queira.



 

 

 

 

 

16/03/2006