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Luís Vaz de Camões




Sonetos





Grão tempo há já que soube da Ventura


Grão tempo há já que soube da Ventura
a vida que me tinha destinada;
que a longa experiência da passada
me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,
bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destrui, não fique nada;
vingai-vos desta vida, que inda dura.

Soube Amor da Ventura que a não tinha;
e, por que mais sentisse a falta dela,
de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
não foi melhor, vivei nesta alma minha,
que não tem a Fortuna poder nela.
 


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Ilustre e dino ramo dos Meneses


Ilustre e dino ramo dos Meneses,
aos quais o prudente e largo Céu
(que errar não sabe), em dote concedeu
rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus revezes,
ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no mar alto Eritreu,
e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito
o Pirata insolente, que se espante
e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do árabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante,
o seja só co sangue de Turquia.
 


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Indo o triste pastor todo embebido


Indo o triste pastor todo embebido
na sombra de seu doce pensamento,
tais queixas espalhava ao leve vento
cum brando suspirar da alma saído:

«A quem me queixarei, cego, perdido,
pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento
que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto me encareces?
Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assi que co mal cresce a causa dele.»
 


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Já a saudosa Aurora destoucava


Já a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos de ouro delicados,
e as flores nos campos esmaltados
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados
de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente
«Não sei – dezia – ó Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada».
Responde Sílvio: «Amor não o consente,
que ofende as esperanças da tornada».
 


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Já claro vejo bem, já bem conheço


Já claro vejo bem, já bem conheço
quanto aumentando vou o meu tormento;
pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
e que o cordeiro manso ao lobo peço;

que Aracne [sou], pois já com Palas teço;
que a tigres em meus males me lamento;
que reduzir o mar a um vaso intento,
aspirando a esse Céu que não mereço.

Quero achar paz em um confuso Inferno;
na noite, do Sol puro a claridade;
e o suave Verão no duro Inverno.

Busco em luzente Olimpo escuridade
e o desejado bem no mal eterno,
buscando amor em vossa crueldade.
 


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Já não sinto, Senhora, os desenganos


Já não sinto, Senhora, os desenganos
com que minha afeição sempre tratastes,
nem ver o galardão que me negastes,
merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos
de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança
que o ofendido toma do culpado,
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu, de vossos males e esquivança
- de que agora me vejo bem vingado -,
não o quisera eu tanto à vossa custa.
 


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Já tempo foi que meus olhos folgavam


Já tempo foi que meus olhos folgavam
de ver os verdes campos graciosos;
tempo foi já também que os sonorosos
ribeiros meus ouvidos recreavam.

Foi tempo que nos bosques me alegravam
os cantares das aves saudosos,
os freixos e altos álamos umbrosos
cujos ramos por cima se ajuntavam.

Permanecer não pude em tal folgança;
não me pôde durar esta alegria,
não quis este meu bem ter segurança;

ainda neste tempo eu não sentia
do fero Amor a força e a mudança,
os laços e as prisões com que prendia.
 


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Julga-me a gente toda por perdido


Julga-me a gente toda por perdido
vendo-me, tão entregue a meu cuidado.
andar sempre dos homens apartado
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busque riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só, em humilde estado, me contento
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.
 


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Leda serenidade deleitosa


Leda serenidade deleitosa,
que representa em terra um paraíso:
entre rubis e perlas, doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor de rosa.

Presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser fermosa:

fala de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso nela alegre e comedido.

Estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa
despojar-me da glória de rendido.
 


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Lembranças saudosas, se cuidais

 

Lembranças saudosas, se cuidais
de me acabar a vida neste estado,
não vivo com meu mal tão enganado
que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais
a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado
de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência
pera quantos desgostos der a vida;
cuide em quanto quiser o pensamento;

que pois não há i outra resistência
pera tão certa queda de subida,
aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.
 


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Lembranças, que lembrais meu bem passado


Lembranças, que lembrais meu bem passado
para que sinta mais o mal presente;
deixai-me, se quereis, viver contente,
não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
viver, como se vê, tão descontente,
venha, se vier, o bem por acidente,
e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória,
pois tanto dano faz ao pensamento.

Assi que nada perde quem perdida
a esperança traz de sua glória,
se esta vida há-de ser sempre em tormento.
 


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Lindo e sutil trançado, que ficaste


Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo-te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças de ouro que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço,
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
(como quem não tem outra) hei-de tomar-te.

E se não for contente meu desejo,
dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte.
 


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Males, que contra mi vos conjurastes


Males, que contra mi vos conjurastes,
quanto há-de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento,
baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes
derrubar meu tão alto pensamento,
mais pode a causa dele, em que o sustento,
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção, com minha morte,
há-de acabar o mal destes amores,
dai já fim a um tormento tão comprido,

por que de ambos contente seja a sorte:
vós, porque me acabastes, vencedores;
e eu, porque acabei de vós vencido.
 


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Memória de meu bem, cortado em flores


Memória de meu bem, cortado em flores
por ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me descansar com meus cuidados
nesta inquietação de meus amores.

Basta-me o mal presente e os temores
dos sucessos, que espero, infortunados;
sem que venham, de novo, bens passados
afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi nüa hora quanto em termos
tão vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.

Cumpre acabe a vida nestes ermos,
que neles com meu mal acabarei
mil vidas, não üa só, dura memória!
 


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Memórias ofendidas que um só dia


Memórias ofendidas que um só dia
me não deixais em paz o pensamento,
não me daneis o gosto do tormento,
que quem vos ofendeu vos defendia.

Que me quereis? Olhai que se injuria
convosco o delicado sentimento
que me ficou do eterno apartamento
de quem já tem desfeita a morte fria.

Deixaram-me co a mágoa das ofensas;
levaram um remédio só que tinha.
Quem irá vencer a pena que alma sente,

onde achará do dano as recompensas,
se ainda de ser triste a dita minha
me não deixa um momento ser contente?
 


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Moradoras gentis e delicadas


Moradoras gentis e delicadas
do claro e áureo Tejo, que metidas
estais em suas grutas escondidas,
e com doce repouso sossegadas:

agora estais de amores inflamadas,
nos cristalinos paços entretidas;
agora no exercício embevecidas
das telas de ouro puro matizadas.

Movei dos lindos rostos a luz pura
de vossos olhos belos, consentindo
que lágrimas derramem de tristura.

E assi, com dor mais própria, ireis ouvindo
as queixas que derramo da Ventura,
que com penas de Amor me vai seguindo.
 


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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
 


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Na desesperação já repousava


Na desesperação já repousava
o peito longamente magoado
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;

quando üa sombra vã me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tão fermosa imagem, que o treslado
na alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente
o coração àquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou contente;
que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória já do que imagino.
 


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Na metade do Céu subido ardia


Na metade do Céu subido ardia
o claro, almo Pastor, quando deixavam
o verde pasto as cabras, e buscavam
a frescura suave da água fria.

Co a folha da árvore sombria,
do raio ardente as aves se emparavam;
o módulo cantar, de que cessavam,
só nas roucas cigarras se sentia;

quando Liso pastor, num campo verde
Natércia, crua Ninfa, só buscava
com mil suspiros tristes que derrama.

«Porque te vás, de quem por ti se perde,
para quem pouco te ama?» suspirava.
O Eco lhe responde: «Pouco te ama.»
 


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Na ribeira do Eufrates assentado


Na ribeira do Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado
me foi: «Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes que, a quem canta, se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte».

Respondo com suspiros: «Quando crece
a muita saudade, o piadoso
remédio é não cantar senão a morte».
 


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Náiades, vós, que os rios habitais


Náiades, vós, que os rios habitais
que os saudosos campos vão regando,
de meus olhos vereis estar manando
outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós, que as setas atirais,
os fugitivos cervos derrubando,
outros olhos vereis que, triunfando,
derrubam corações, que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
e vinde, Ninfas minhas, se quereis
saber como de uns olhos nacem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis
nos seus as setas, e nos meus as águas.
 


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Não passes, caminhante! Quem me chama?


«Não passes, caminhante!» «Quem me chama?»
«Üa memória nova e nunca ouvida
dum, que trocou finita e humana vida,
por divina, infinita e clara fama».

«Quem é que tão gentil louvor derrama?»
«Quem derramar seu sangue não duvida
por seguir a bandeira esclarecida
de um capitão de Cristo, que mais ama».

«Ditoso fim, ditoso sacrifício,
que a Deus se fez e ao mundo juntamente;
apregoando direi tão alta sorte».

«Mais poderás contar a toda a gente:
que sempre deu sua vida claro indício
de vir a merecer tão santa morte».
 


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Não vás ao monte, Nise, com teu gado


Não vás ao monte, Nise, com teu gado,
que eu lá vi que Cupido te buscava;
por ti somente a todos perguntava,
no gesto menos plácido que irado.

Ele publica, enfim, que lhe hás roubado
os melhores farpões da sua aljava;
e com um dardo ardente assegurava
traspassar esse peito delicado.

Fuge de ver-te lá nesta aventura,
porque, se contra ti o tens iroso,
pode ser que te alcance com mão dura.

Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
se à tua incomparável fermosura
se rende o dardo seu mais poderoso!
 


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Nem o tremendo estrépito da guerra


Nem o tremendo estrépito da guerra,
com armas, com incêndios espantosos,
que despacham pelouros perigosos,
bastantes a abalar üa alta serra,

podem pôr medo a quem nenhum encerra,
depois que viu os olhos tão fermosos,
por quem o horror nos casos pavorosos
de mi todo se aparta e se desterra.

A vida posso ao fogo e ferro dar,
e perdê-la em qualquer duro perigo,
e nele, como Fénix, renovar.

Não pode mal haver pera comigo,
de que eu já me não possa bem livrar,
senão do que me ordena Amor imigo.
 


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No mundo quis um tempo que se achasse


No mundo quis um tempo que se achasse
O bem por acerto ou sorte vinha;
E, por exprimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas – segundo o que o Céu me tem mostrado -
Já sei que deste meu buscar ventura,
Achado tenho já que não a tenho.
 


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No mundo, poucos anos e cansados


No mundo, poucos anos e cansados
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tão cedo a luz do dia escura
que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados,
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto,
que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!
 


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No tempo que de Amor viver soía


No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!
 


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Nos braços de um Silvano adormecendo


Nos braços de um Silvano adormecendo
se estava aquela Ninfa que eu adoro,
pagando com a boca o doce foro,
com que os meus olhos foi escurecendo.

Ó bela Vénus! porque estás sofrendo
que a maior fermosura do teu coro
em um poder tão vil perca o decoro
que o mérito maior lhe está devendo?

Eu levarei daqui por pressuposto
desta nova estranheza, que fizeste,
que em ti não pode haver cousa segura.

Que, pois o claro lume, o belo rosto
àquele monstro tão disforme deste,
não creio que haja Amor, senão Ventura.
 


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Num bosque que das Ninfas se habitava


Num bosque que das Ninfas se habitava,
Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;
subida nüa árvore sombria,
as amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava
a vir passar a sesta à sombra fria,
num ramo o arco e setas que trazia,
antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira
para tamanha empresa, não dilata,
mas com as armas foge ao Moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
senão a mim, que de matar-me vivo.
 


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Num jardim adornado de verdura


Num jardim adornado de verdura,
a que esmaltam por cima várias flores,
entrou um dia a deusa dos amores,
com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo üa rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos milhores;
mas excediam muito às outras flores
as violas, na graça e fermosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,
qual daquelas três flores tomaria,
por mais suave, pura e mais fermosa.

Sorrindo-se, o Minino lhe tornava:
«Todas fermosas são; mas eu queria
viol' antes que lírio nem que rosa».
 


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Num tão alto lugar, de tanto preço


Num tão alto lugar, de tanto preço,
este meu pensamento posto vejo,
que desfalece nele inda o desejo,
vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixeza em mim conheço,
acho que cuidar nele é grão despejo,
e que morrer por ele me é sobejo
e mor bem para mim do que mereço.

O mais que natural merecimento
de quem me causa um mal tão duro e forte
o faz que vá crecendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento,
porque, inda que este mal me causa a morte,
un bel morir tutta la vita onora.
 


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O céu, a terra, o vento sossegado


O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado
Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

- Ondas – dezia – antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

 


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O cisne, quando sente ser chegada


O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo à sua vida,
Música com voz alta e bem subida
Levanta pola praia inabitada.

Deseja ter a vida prolongada,
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.

Assi, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam os meus amores,
Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave canto e harmonia
Descantei polos vossos desfavores,
La vuestra falsa fe y el amor mío.
 


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O culto divinal se celebrava


O culto divinal se celebrava
no templo donde toda a criatura
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que o tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
nüa celeste e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,
e meu livre costume não sabendo
que nenhum confiado lhe fugia,

deixei-me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.
 


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O dia em que eu nasci, moura e pereça


O dia em que eu nasci, moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
 


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O filho de Latona esclarecido


O filho de Latona esclarecido,
que com seu raio alegra a humana gente,
o hórrido Piton, brava serpente,
matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco, e de arco foi ferido
com ponta aguda de ouro reluzente;
nas Tessálicas praias, docemente,
pela Ninfa Peneia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,
ciência, diligências, nem respeito
de ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano
de quem era tão pouco em seu respeito,
eu que espero de um ser que é mais que humano?
 


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O fogo que na branda cera ardia


O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu n' alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se encendia,
da grande impaciência fez despejo
e, remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
a pagar seus ardores e tormentos
na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram-se, Senhora, os Elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.
 


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Ó gloriosa cruz, ó vitorioso


Ó gloriosa cruz, ó vitorioso
troféu, de despojos rodeado,
ó sinal escolhido e ordenado
para remédio tão maravilhoso;

ó fonte viva de licor sagrado,
em ti nosso mal todo foi curado!
Em ti o Senhor, que forte era chamado,
quis merecer o nome de piedoso.

Em ti se acabou o tempo da vingança;
em ti misericórdia assim floreça
como despois do inverno a primavera.

Todo o imigo ante ti desapareça.
Tu pudeste fazer tanta mudança
em quem nunca deixou de ser quem era.
 


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O raio cristalino se estendia


O raio cristalino se estendia
pelo mundo, da Aurora marchetada,
quando Nise, pastora delicada,
donde a vida deixava, se partia.

Dos olhos, com que o Sol escurecia
levando a vista em lágrimas banhada,
de si, do Fado e Tempo magoada,
pondo os olhos no Céu, assi dezia:

«Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora,
qualquer alma alegrando descontente;

que a minha, sabe tu que, desde agora,
jamais na vida a podes ver contente,
nem tão triste nenhüa outra pastora».
 


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O tempo acaba o ano, o mês e a hora


O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora.

O tempo busca e acaba onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.
 


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Oh! quão caro me custa o entender-te


Oh! quão caro me custa o entender-te,
molesto Amor. que, só por alcançar-te,
de dor em dor me tens trazido a parte
onde em ti ódio e ira se converte!

Cuidei que, para em tudo conhecer-te,
me não faltasse experiência e arte;
agora vejo n'alma acrescentar-te
aquilo que era causa de perder-te.

Estavas tão secreto no meu peito
que eu mesmo, que te tinha, não sabia
que me senhoreavas deste jeito.

Descobriste-te agora; e foi por via
que teu descobrimento e meu defeito,
um me envergonha e outro me injuria.
 


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Oh, como se me alonga, de ano em ano


Oh, como se me alonga, de ano em ano,
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio, que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece,
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda parece,
Da vista se me perde e da esperança.
 


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Olhos fermosos, em quem quis Natura


Olhos fermosos, em quem quis Natura
mostrar do seu poder altos sinais,
se quiserdes saber quanto possais,
vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura;
no que eu padeço retratada estais;
que, se eu passo tormentos desiguais,
muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:
ser vosso; e só de ser vosso me arreio,
por que o vosso penhor em mim se assele.

Não me lembro de mim, quando vos vejo,
nem do mundo; e não erro, porque creio
que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.
 


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Ondados fios de ouro reluzente


Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos
Fazeis que sua graça se acrecente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nace e parece,
Se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza,
De si, em nova glória, a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!



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Onde mereci eu tal pensamento


Onde mereci eu tal pensamento,
nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
de quem tanto me honrou co vencimento?

Em glória se converte o meu tormento,
quando vendo-me estou tão bem perdido;
pois não foi tanto mal ser atrevido,
como foi glória o mesmo atrevimento.

Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
e pois esta alma tenho tão rendida,
em lágrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar de amar-vos
receios de perder por vós a vida,
que por vós vezes mil a perderei.
 


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Orfeu enamorado que tañía


Orfeu enamorado que tañía
por la perdida ninfa, que buscaba,
en el Orco implacable donde estaba,
con la arpa y con la voz la enternecía.

La rueda de Ixión no se movia,
ningún atormentado se quejaba,
las penas de los otros ablandaba,
y todas las de todos él sentía.

El son pudo obligar de tal manera,
que, en dulce galardón de lo cantado,
los infernales reyes, condolidos,

le mandaron volver su compañera,
y volvióla á perder el desdichado,
con que fueron entrambos los perdidos.
 


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Ornou mui raro esforço ao grande Atlante


Ornou mui raro esforço ao grande Atlante
com que a celeste máquina sustenta;
honrou seu alto engenho esse, que intenta
Grécia do quarto céu levá-lo avante.

Coroou já o Amor o firme amante
Orfeu, firme na paz e na tormenta;
aspirou a ventura em tudo isenta
a César, de quem foi um tempo amante.

Tu exaltaste, ó Fama, a glória alta
de Hércules sobre o monte em que resides;
mas Castro, em quem o Céu seus dões derrama,

mais orna, honra, coroa, aspira, exalta
que Atlante, Homero, Orfeu, César e Alcides,
Esforço, Engenho, Amor, Ventura e Fama.
 


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Os reinos e os impérios poderosos


Os reinos e os impérios poderosos,
que em grandeza no mundo mais creceram,
ou por valor de esforço floreceram
ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;
doze pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosos.

Ao nosso Portugal (que agora vemos
tão diferente de seu ser primeiro),
os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro
do braganção estado, há mil extremos
iguais ao sangue, e mores que a idade.
 


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Os vestidos Elisa revolvia


Os vestidos Elisa revolvia
que lhe Eneias deixara por memória:
doces despojos da passada glória,
doces, quando seu Fado o consentia.

Entre eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste história;
e, como quem de si tinha a vitória,
falando só com ela, assi dezia:

«Fermosa e nova espada, se ficaste
só para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,

sabe que tu comigo te enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja-me a tristeza da partida».
 


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16/03/2006