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Luís Vaz de Camões




Sonetos






Para se namorar do que criou


Para se namorar do que criou
te fez Deus, santa Fénix, Virgem pura.
Vede que tal seria esta feitura
que a fez quem para si só a guardou.

No seu santo conceito te formou
primeiro que a primeira criatura,
para que única fosse a compostura
que de tão longo tempo se estudou.

Não sei se direi nisto quanto baste
para exprimir as santas qualidades
que quis criar em ti quem tu criaste.

És filha, mãe e esposa. E se alcançaste,
üa só, três tão altas dignidades,
foi porque a três e um só tanto agradaste.
 


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Passo por meus trabalhos tão isento


Passo por meus trabalhos tão isento
de sentimento grande nem pequeno
que, só pola vontade com que peno,
me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
temperando a triaga co veneno,
que do penar a ordem desordeno,
porque não mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor sente
e pagar-me meu mal com mal pretende,
torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê cos males tão contente,
faz-se avaro da pena, porque entende
que, quanto mais me paga, mais me deve.
 


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Pede o desejo, Dama, que vos veja


Pede o desejo, Dama, que vos veja;
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
 


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Pelos extremos raros que mostrou


Pelos extremos raros que mostrou
em saber Palas, Vénus em fermosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
espírito e corpo em liga generosa,
esta mundana máquina lustrosa,
de só quatro Elementos, fabricou.

Mas mor milagre fez a Natureza
em vós, Senhoras, pondo em cada üa
o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lüa,
a vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo Terra e Água vos serviu.
 


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Pensamentos, que agora novamente


Pensamentos, que agora novamente
cuidados vãos em mim ressuscitais,
dizei-me: ainda não vos contentais
de terdes quem vos tem tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente
cada hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados;
e não quereis, de esquivos, declarar-me
que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me;
que, se contra mim estais alevantados,
eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
 


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Pois meus olhos não cansam de chorar


Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo, em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se em montes, rios, ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora Amor
em feras, aves, prantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males
e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.
 


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Por cima destas águas, forte e firme


Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
pois por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.

Em que figura ou gesto desusado
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?
 


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Por sua Ninfa, Céfalo deixava


Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia;
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano;
outro se finge, preço põe diante;
quebra-se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!


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Porque a tamanhas penas se oferece


«Porque a tamanhas penas se oferece,
pelo pecado alheio e erro insano,
o trino Deus?» – «Porque o sujeito humano
não pode co castigo que merece».

«Quem padecerá as penas que padece?
Quem sofrerá desonra, morte e dano?»
«Ninguém, senão se for o soberano
que reina, e servos manda, e obedece».

Foi a força do homem tão pequena
que não pôde suster tanta aspereza,
pois não susteve a lei que Deus ordena.

Sofre-a aquela imensa Fortaleza,
por puro amor; que a humanal fraqueza
foi para o erro, e não já para a pena.


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Porque quereis, Senhora, que ofereça


Porque quereis, Senhora, que ofereça
a vida a tanto mal como padeço?
Se vos nace do pouco que mereço,
bem por nacer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,
que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores
com nada se restaura; mas deveis-ma,
por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores
houver de ser igual convosco mesma,
vós só convosco mesma andai d' amores.


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Posto me tem fortuna em tal estado


Posto me tem fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido,
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém,
E curarei um mal com outro mal.

E pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.



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Presença bela, angélica figura


Presença bela, angélica figura,
Em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
Gesto alegre, de rosas semeado,
Entre as quais se está rindo a Fermosura;

Olhos, onde tem feito tal mistura
Em cristal branco e preto marchetado,
Que vemos já no verde delicado
Não esperança, mas enveja escura;

Brandura, aviso e graça que, aumentando
A natural beleza c'um desprezo
Com que, mais desprezada, mais se aumenta;

São as prisões de um coração que, preso,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a sereia na tormenta.


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Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,


Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,
y en lágrimas pasáis la noche y día,
mirad si es llanto este que os envía
aquella por quien vos tantas vertistes.

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes,
y si ella lo es, oh gran ventura mía!
por muy bien empleadas las habría
mil cuentos que por esta sola distes.

Mas una cosa mucho deseada,
aunque se vea cierta, no es creída;
cuanto más esta, que me es enviada.

Pero digo que aunque sea fingida,
que basta que por lágrima sea dada,
por que sea por lágrima tenida.


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Qual tem a borboleta por costume


Qual tem a borboleta por costume,
que, enlevada na luz da acesa vela,
dando vai voltas mil, até que nela
se queima agora, agora se consume;

tal eu correndo vou ao vivo lume
desses olhos gentis, Aónia bela;
e abraso-me, por mais que com cautela
livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
o quanto se levanta o pensamento,
o como vou morrendo claramente.

Porém, não quer Amor que lhe resista,
nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
qual em glória maior, está contente.



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Quando a suprema dor muito me aperta


Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

Assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é logo a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.



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Quando cuido no tempo que, contente


Quando cuido no tempo que, contente,
Vi pérolas, neve, rosa e ouro,
Como quem vê por sonhos um tesouro,
Parece tenho tudo aqui presente.

Mas tanto que se passa este acidente,
E vejo o quão distante de vós mouro,
Temo quanto imagino por agouro,
Por que de imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura
Vos vi, Senhora, se assi dizendo posso,
Co coração seguro estar, sem medo;

Agora, em tanto mal não me assegura
A própria fantasia e nojo vosso:
Eu não posso entender este segredo!



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Quando da bela vista e doce riso


Quando da bela vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão enlevado sinto o pensamento
Que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento;
Assi que em caso tal, segundo sento,
Assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
Porque, quem vossas cousas claro sente,
Sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não é de estranhar, Dama excelente,
Que quem vos fez fizesse céu e estrelas.


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Quando de minhas mágoas a comprida


Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que pera mim foi sonho nesta vida.

Lá núa soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro para ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: "Não me fujais, sombra benina!"
Ela, os olhos em mim cum brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me: e eu, gritando: "Dina..."
Antes que diga mene, acordo e vejo
Que nem um breve engano e posso ter.


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Quando o Sol encoberto vai mostrando


Quando o Sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa
Ao longo de úa praia deleitosa,
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi os cabelos concertando;
Ali, co a mão na face, tão fermosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;

Aqui se entristeceu, ali se riu...
Enfim, nestes cansados pensamentos,
Passo esta vida vã, que sempre dura.


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Quando se vir com água o fogo arder


Quando se vir com água o fogo arder
e misturar co dia a noite escura,
e a terra se vir naquela altura
em que se vêem os Céus prevalecer;

O Amor por Razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa fermosura
então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minh' alma e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos.


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Quando vejo que meu destino ordena


Quando vejo que meu destino ordena
que, por me exprimentar, de vós me aparte,
deixando de meu bem tão grande parte
que a mesma culpa fica grave pena;

o duro desfavor que me condena,
quando pela memória se reparte,
endurece os sentidos de tal arte
que a dor da ausência fica mais pequena.

Pois como pode ser que na mudança
daquilo que mais quero estê tão fora
de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança;
porque mais sentirei partir, Senhora,
sem sentir muito a pena da partida.


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Quando, Senhora, quis Amor que amasse


Quando, Senhora, quis Amor que amasse
essa grã perfeição e gentileza,
logo deu por sentença que a crueza
em vosso peito amor acrescentasse.

Determinou que nada me apartasse:
nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha raríssima firmeza
vossa isenção cruel se executasse.

E pois tendes aqui oferecida
esta alma vossa a vosso sacrifício,
acabai de fartar vossa vontade.

Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabará morrendo em seu ofício,
sua fé defendendo e lealdade.



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Quanta incerta esperança, quanto engano!


Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano!

Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
entende que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram pera sempre com o amado.


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Quantas vezes do fuso se esquecia


Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
tantas vezes de um áspero receio
salteado, Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
para podê-lo ver não tinha meio.
Ora, como curar o mal alheio
quem o seu mal tão mal curar sabia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,
com soluços dezia (que a espessura
comovia, de mágoa, a piedade):

«Como pode a desordem da Natura
fazer tão diferentes na vontade
a quem fez tão conformes na ventura?»



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Que gritos são os que ouço? – De tristeza


«Que gritos são os que ouço?» – «De tristeza».
«Quem é a causa dela?» – «A morte só».
«Tão grande mal nos fez?» – «Quebrou um nó».
«Que nó? A quem atava?» – «A gentileza».

«Era mais que fermosa?» – «Era de Alteza».
«Desfez-se em ouro?» – «Não, em terra, em pó».
«Também é como nós?» – «Também, mas só».
«Que gemes?» – «De perder a tal Princesa».

«Não vês que tudo é mundo?» – «Bem o entendo».
«Pois não te agastes». – «Não mo sofre a alma».
«Que te consola aqui?» – «Na vida vê-la».

«Tão boa foi?» – «O reino o está dizendo».
«Pois sabe que, se cá levou a palma,
que lá terá também a palma dela».



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Que levas, cruel Morte? Um claro dia


«Que levas, cruel Morte?» «Um claro dia».
«A que horas o tomaste?» «Amanhecendo».
«Entendes o que levas?» «Não o entendo».
«Pois quem to faz levar?» «Quem o entendia».

«Seu corpo quem o goza?» «A terra fria.»
«Como ficou sua luz?» «Anoitecendo».
«Lusitânia que diz?» «Fica dizendo:
Enfim, não mereci Dona Maria».

«Mataste quem a viu?» «Já morto estava».
«Que diz o cru Amor?» «Falar não ousa.»
«E quem o faz calar?» «Minha vontade».

«Na corte que ficou?» «Saudade brava».
«Que fica lá que ver?» «Nenhüa cousa;
mas fica que chorar sua beldade».


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Que me quereis, perpétuas saudades?


Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais
E, se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.



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Que modo tão sutil da Natureza


Que modo tão sutil da Natureza,
para fugir ao mundo e seus enganos,
permite que se esconda, em tenros anos,
debaixo de um burel tanta beleza!

Mas esconder-se não pode aquela alteza
e gravidade de olhos soberanos,
a cujo resplandor entre os humanos
resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,
vendo-a ou trazendo-a na memória,
na mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,
cativo há-de ficar; que Amor ordena
que de juro tenha ela esta vitória.


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Que pode já fazer minha ventura


Que pode já fazer minha ventura
que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
de cousa que o não tem, nem é segura?

Que pena pode ser tão certa e dura
que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
os males, se com eles mais se apura?

Como quem se costuma de pequeno
com peçonha criar por mão ciente,
da qual o uso já o tem seguro;

assi de acostumado co veneno,
o uso de sofrer meu mal presente
me faz não sentir já nada o futuro.
 


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Que poderei do mundo já querer


Que poderei do mundo já querer,
que naquilo em que pus tamanho amor,
não vi senão desgosto e desamor
e morte, enfim, que mais não pode ser?

Pois vida me não farta de viver,
pois já sei que não mata grande dor,
se cousa há que mágoa dê maior,
eu a verei, que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
de quanto mal me vinha; já perdi
o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
na morte a grande dor que me ficou:
parece que para isto só nasci!



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Quem diz que Amor é falso ou enganoso


Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
sem falta lhe terá bem merecido
que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piadoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
seja por cego e apaixonado tido,
e aos homens, e inda aos deuses, odioso.

Se males faz Amor, em mi se vêem;
em mi mostrando todo o seu rigor,
ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;
todos estes seus males são um bem,
que eu por todo outro bem não trocaria.


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Quem fosse acompanhando juntamente


Quem fosse acompanhando juntamente
por esses verdes campos a avezinha
que, despois de perder um bem que tinha,
não sabe mais que cousa é ser contente!

Quem fosse, apartando-se da gente:
ela, por companheira e por vizinha,
me ajudasse a chorar a pena minha;
eu a ela o pesar que tanto sente!

Ditosa ave que, ao menos, se a Natureza
a seu primeiro bem não dá segundo,
dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis Ventura
que, para respirar, lhe falte o vento;
e para tudo, enfim, lhe falte o mundo!



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Quem pode livre ser, gentil Senhora


Quem pode livre ser, gentil Senhora,
vendo-vos com juízo sossegado,
se o Minino que de olhos é privado
nas mininas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
ali vive das gentes venerado;
que o vivo lume e o rosto delicado
imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nacem rosas
que fios crespos de ouro vão cercando,
se por antre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas
almas estão no peito traspassando,
assi como um cristal o Sol traspassa...


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Quem presumir, Senhora, de louvar-vos


Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
com humano saber e não divino,
ficará de tamanha culpa dino
quamanha ficais tendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,
por mais que raro seja e peregrino:
que vossa fermosura eu imagino
que Deus a Ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
em posse pôr de prenda tão subida
como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
que, pois mercê tamanha me fizestes,
de mim será jamais nunca esquecida.



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Quem pudera julgar de vós, Senhora


Quem pudera julgar de vós, Senhora,
que com tal fé podia assi perder-vos,
e vir eu por amor a aborrecer-vos?
Que hei-de fazer sem vós somente üa hora?

Deixastes quem vos ama e vos adora;
tomastes quem quiçá não sabe ver-vos.
Eu fui o que não soube merecer-vos,
e tudo entendo e choro, triste, agora.

Nunca soube entender vossa vontade,
nem a minha mostrar-vos verdadeira,
inda que clara estava esta verdade.

Em mim viverá ela sempre inteira;
e, se pera perder já a vida é tarde,
a morte não fará que vos não queira.


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Quem quiser ver d' Amor üa excelência


Quem quiser ver d' Amor üa excelência
onde sua fineza mais se apura,
atente onde me põe minha ventura,
por ter de minha fé experiência.

Onde lembranças mata a longa ausência,
em temeroso mar, em guerra dura,
ali a saudade está segura,
quando mor risco corre a paciência.

Mas ponha-me Fortuna e o duro Fado
em nojo, morte, dano e perdição,
ou em sublime e próspera ventura;

ponha-me, enfim, em baixo ou alto estado;
que até na dura morte me acharão
na língua o nome, n'alma a vista pura.



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Quem vê, Senhora, claro e manifesto


Quem vê, Senhora, claro e manifesto
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
o dar-vos quanto tenho e quanto posso,
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.


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Quem vos levou de mi, saudoso estado
 


Quem vos levou de mi, saudoso estado,
que tanta sem-razão comigo usastes?
Quem foi? Por quem tão presto me negastes,
esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado
tão duro, tão cruel, qual me ordenastes;
a fé, que tínheis dado, me negastes,
quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal;
Fortuna, que tem tudo a sua mercê,
amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val,
que, quem naceu chorando, justo é
que pague com chorar o que perdeu.


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Razão é já que minha confiança


Razão é já que minha confiança
se deça de üa falsa opinião;
mas Amor não se rege por razão:
não posso perder logo a esperança.

A vida, si; que üa áspera mudança
não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação,
si; mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente
quietação nüa alma que é cativa!

Se hei-de viver, enfim, forçadamente,
para que quero a glória fugitiva
de üa esperança vã que me atormente?



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Resposta do Autor a um soneto, pelos
mesmos consoantes



De tão divino acento e voz humana,
de tão doces palavras peregrinas,
bem sei que minhas obras não são dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farão enveja à cópia Mantuana.

E pois a vós de si não sendo avaras,
as filhas de Mnemósine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras;

a minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa de alta, a minha de envejosa.


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16/03/2006