Luís Vaz de Camões
Que é isto? Sonho ou vejo a Ninfa pura
Que é isto? Sonho ou vejo a Ninfa pura,
que sempre na alma vejo?
Ou me pinta o desejo
o bem que em vão cada hora me assegura?
Mal pode a noite escura,
amando a sombra fria,
mandar-me em sonho a luz fermosa e bela,
que se não torne em dia,
de seus luzentes raios inflamada.
Oh vista desejada
de graciosa Ninfa e viva estrela,
que há tanto que por este mar navego,
sem ver meu claro Pólo, escuro e cego!
Nesses fermosos olhos, de enlevada,
minha alma se escondeu
quando ordenava o Céu
que vivesse comigo desterrada.
Vós, a mais certa estrada
de ver a suma alteza,
do efeito a causa abris a esta alma minha.
Assi mortal beleza
só dela nasce, e nela se resume;
assi celeste lume
lá dos céus se deriva, e lá caminha.
Pois, como a Deus unir-me a vista possa,
porque a negais, meu sol, a esta alma vossa?
Se me quereis prender a parte a parte,
cabelo ondado e louro,
tecei-me a rede de ouro
em que prendeu Vulcano a Cípria e Marte;
dês que com gentil arte
vestis de flores belas
a terra em que tocais coa bela planta.
quantas vezes com vê-las
quis numa dessas flores transformar-me?
Porque, vendo pisar-me
desse cândido pé, que a neve espanta,
pode ser que na flor mudado fera
que deu a Juno irada e linda Flora.
Mas onde te acolheste, ó doce vida,
mais leve e pressurosa
de que na selva umbrosa
cerva de aguda seta vai ferida?
Se para tal partida,
meus olhos, vós abristes,
cerrara-vos o sono eternamente,
antes que ver-vos tristes,
perdendo tão suave e doce engano!
Agora, com meu dano,
vedes, para mór mágoa, claramente,
neste bem fugitivo e sono leve,
que mal não há mais longo que um bem breve.
Ditoso Endimião que a deusa clara,
que a noite vai guiando,
teve em braços sonhando!
Ah, quem de sonho tal nunca acordara!
Tu só, Aurora avara,
quando os olhos feriste,
me mataste, cruel, de inveja pura.
Mas se desta alma triste
a negra escuridão vencer quiseste,
sabe que em vão nasceste;
que para desfazer-se a névoa escura
de meus olhos, importa estar presente
outro Sol, outra Aurora, outro Oriente.
Se a luz de meu Planeta
não me aviva, Canção, branda e quieta,
qual flor de chuva, em breve consumida,
verás desfeita em lágrimas a vida.
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