Luís Vaz de Camões
Ó pomar venturoso
Ó pomar venturoso,
onde coa natureza
a subtil arte tem demanda incerta;
que em sítio tão fermoso
a maior subtileza
de engenho em ti nos mostra descoberta!
Nenhum juízo acerta,
de cego e de enlevado,
se tem em ti mais parte
a natureza ou arte;
se terra ou Céu de ti em mais cuidado,
pois em feliz terreno
gozas de um ar mais puro e mais sereno.
De teu fermoso peso
se mostra o monte ledo;
e o caudaloso Zêzere te estranha,
porque olhas com desprezo
seu cristal puro e quedo,
que com Pera os teus es rodeia e banha.
Em ti pintura estranha,
a que Apeles cedera,
enigmas intrincados,
e mirtos animados
vemos, que o próprio Escopas não fizera.
Em ti, coa paz interna,
tem o santo prazer morada eterna.
Os jardins da famosa
Babel, tão nomeados,
por maravilha o mundo não levante,
inda que em gloriosa
voz, que estão pendurados
do instável ar, a fama antiga cante:
nem haja quem se espante
dos famosos de Alcino;
nem as mais doutas penas
cantem os de Mecenas,
cultor de todo engenho peregrino;
mas onde quer que voe,
de ti se fale a Fama, e te pregoe.
Que se era antigamente
de pomos de ouro belos
o jardim das Hespéridas ornado
e, apesar da serpente
que os guardou, só colhê-los
pôde o famoso Alcides, de esforçado;
tu, mais avantejado,
mostras a uma alma casta
seguir o que deseja
fugir da torpe inveja
- pomos de ouro que o tempo não contrasta -:
enfim, coa caridade
vencer o Inferno, abrir a Eternidade.
Portanto da ventura
para ti reservada
te deixe o Céu gozar perpetuamente;
por que sejas figura
da glória avantejada
dele mesmo, e que em ti se represente;
porque enquanto sustente
o céu, o mar e a terra,
seus feitos milagrosos,
mistérios mais gloriosos
com que a morte das almas nos desterra,
por onde em nossas almas
com mais pompas triunfa e com mais palmas.
Goza, pois, longamente
teu venturoso fado,
da mãe do teu autor bem possuído;
que em ti, sempre contente
de seu sublime estado,
a alma dos seus alegra e o sentido.
Cada qual preferido
nas grandes qualidades
ao sábio Nestor seja,
para que o mundo os veja
exceder as longuíssimas idades;
e com a longa vida
seja sua memória enobrecida.
Canção, pois mais famosas
por ti não podem ser
deste monte as estâncias deleitosas,
bem pode suceder
que aquele que os teus números governa,
por querê-las cantar, te faça eterna.
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