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Luís Vaz de Camões




Quem com sólido intento




Quem com sólido intento
os segredos buscar da Natureza,
quanto de Atenas preza,
entregue ao mar irado, ao leve vento,
em forjar meu tormento,
nova filosofia,
de experiências feita, Amor me ensina.
Das leis do antigo tempo bem declina
que Amor e a Natureza em mi varia;
donde escola, de sábios nunca viu
em natural sujeito
quanto Amor em meu peito descobriu.

As aves no ar sereno,
o gado de Proteu nas águas pace;
vive o homem e nace
neste mundo, qual mundo mais pequeno.
Eu tudo desordeno,
em todos dividido;
Na boca o ar, na terra o entendimento:
dá-me esse Amor, dá-me esta o pensamento;
o coração no fogo é consumido;
mas a água, que dos olhos sempre dece,
tem efeito tão vário
que em um humor contrário o fogo crece.

Da vista, Amor soía
abrir ao coração segura entrada:
lei é já profanada
que quando a luz de uns olhos me feria,
amando o que não via,
qual de escopeta o lume,
primeiro o querer vi que a causa visse.
Quem o desejo coa esperança unisse,
cego iria após cego e vil costume;
que eu desta alma, das leis do mundo isenta,
morta a esperança vejo,
onde sempre o desejo se sustenta.

Em vão se considera
que um semelhante a outro busca e ama,
e que foge e desama
todo mortal a morte esquiva e fera.
Seja uma linda fera,
que esconde em vista humana
coração de diamante e peito de aço,
de meu sangue faminta, e satisfaço
com cruel morte e sede desumana.
Assi que, sendo em tudo diferente,
corro após minha sorte;
e, se me entrego à morte, estou contente.

Cai em maior defeito
quem cuida ser ciência clara e certa
que a causa descoberta
sempre produz a si conforme o efeito.
Rendeu-me um lindo objeito
que, sendo neve pura,
vivo me abrasa, e e fogo interno aviva
que esta fermosa fera fugitiva
com ser neve, de fogo se assegura:
donde infiro por certo – e cesse a fama
vã, mentirosa e leve -
que não desfaz a neve ardente chama.

Bem no efeito se sente
cessar, cessando a causa donde pende;
que o fogo mais se acende,
estando à vista, donde mais ausente;
mas na alma vivamente
a trazem debuxada,
de noite Amor, de dia e pensamento.
E quando Apolo deixa o claro assento,
por entre sombras vejo a Ninfa amada;
pois se sem luz Amar os olhos ceva,
cego, se não concede
que em nada a Amor impede a escura treva.

Erra quem atrevido
pregoa ser maior que a parte o todo:
Amor me tem de modo
que estou num'alma minha convertido.
Desta glória há nacido
o temor de perdê-la;
e, posto que o receio a muitos finge
lá na imaginação Quimera e Esfinge
de mal futuro, que urde imiga estrela:
vejo em mim por incógnito segredo,
quando estou mais contente,
que se do bem presente nace o medo.

Tem-se par manifesto
parecer-se ao sujeito o acidente;
mas inda em mi se sente
o pensamento, a cor, o riso, o gesto;
[e, tendo todo o resto]
da vida já perdido
neste tormento meu tão duro e esquivo,
[a gostos morto estou, a penas vivo.]
E, sendo morto já, vive o sentido,
porque sente que na alma despedida
pode em meu mal unir-se
o ficar e o partir-se, a morte e a vida.

Destas razões, Canção, infiro e creio
que ou se mudou em tudo a forma usada
de natural firmeza,
ou tenho a natureza em mi mudada.


 


 

 

 

 

 

16/03/2006