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Luís Vaz de Camões




Crecendo vai meu mal de hora em hora




Crecendo vai meu mal de hora em hora;
creio que quer Fortuna que pereça,
segundo contra mim sua roda guia,
pois, se a vida faltar, a pena creça,
que por muito que creça, cruel Senhora,
por fim fim há-de ter sua porfia.
Üa cousa de ti saber queria:
que ganhas em perder-me?
Que perdes em valer-me,
se à custa de me olhares brandamente
me podes ter contente?
E com me dar remédio e bem-fazeres
não deixarás por isso ser quem eres.

Se minha pena esquiva e meu tormento
te desse de alegria algüa parte,
contente viveria assi penando;
porque, como pretendo contentar-te,
me estaria sumamente deleitando;
mas claramente estou de ti notando
nesses teus olhos belos,
se acerto uma hora vê-los,
quão pouca conta tens co que padeço.
Ai que mui bem conheço,
pastora, que por meu destino e sorte
tens essa condição tão dura e forte.

Um tigre, qualquer fera irracional,
com sua asperidade, tem amor,
e por ele vive em paz silvestremente:
das aves, a maior e a menor,
todas com um distinto natural
possuem amor, e o têm naturalmente.
E tu, de perfeição tão excelente,
de tanta honestidade,
de tanta divindade,
de tanta galhardia e gentileza,
somente tens crueza!
Creio que com razão a ti compete
o nome da cruel Anaxarete.

Se cuidas que servir-te não mereço
por minha indinidade e tua valia,
engana-te, pastora, o pensamento;
que, se tens gentileza e galhardia,
eu tenho fé e amor de tanto preço
que me iguala com teu merecimento.
Mas, pouco presta ter tal fundamento
quem tem contrário o Fado:
amar-te me é forçado;
teu merecer altivo me faz força;
mas, quanto mais me esforça
a fé de meu amor e a confiança,
mais me desdenhas tu, com esquivança.

Que vale tua gentileza e alegre vista?
Que vale que sejas tão fermosa Dama,
se tudo tens em ti tão submergido?
A fresca flor, que coberto a rama,
a quem o tempo gasta sem ser vista,
nenhüa cousa presta haver nacido.
O ouro nada vale, se está escondido
em sua própria mina,
e não se tira e afina;
nem a pérola, em sua concha feia,
escondida na areia;
porque, sem a humana companhia
nenhüa cousa tem sua valia.

Assim, sua graça suma sobre-humana,
angélica figura grave e honesta,
o preço perde estando em ti escondida;
pois teu cabelo de ouro e branca testa
rostro belo, florida idade ufana,
gastas sem companhia em deserta vida.
Ó ingrata, cruel, desconhecida!
O campo que merece,
ou que te agradece
gastares nele idade tão sublime?
Dás-lhe o que não estima;
dás-lhe, com larga mão, o que me negas;
enfim, a luz lhe dás, a mim as trevas.

Olha que com pressa o tempo voa,
e como, com corrida pressurosa,
caladamente a fim tudo encaminha.
Procura de gozar de tua pessoa;
porque, despois de seca, à fresca rosa
sem preço e sem valia fica a espinha;
confesso-te que a graça que ela tinha,
se o tempo quis tirar-lha,
o mesmo torna a dar-lha;
e, se perde a sazão que a enobrece,
ao outro ano reverdece.
Mas tua sazão fresca, se se perde,
não cuides que jamais se torna verde.

Se te fez Natureza tão preclara,
se te dotou de graça e perfeição,
com ela não assanhes a Ventura;
olha que estás agora em tua sazão,
não sejas para ti tu mesma avara;
porque a fruita há-de colher-se se madura.
Se deixares murchar tua fermosura,
que agora mel despendes,
despois, se te arrependes,
o tempo, como corre à rédea solta,
não torna mais a dar volta,
nem nosso estado humano é tão felice
que se renove assim como a Fenice.

Como posso esperar de ti piedade,
se tu, com teu intento desumano,
contigo mesma usando estás crueza?
Claro está de meu mal o desengano:
quem não tem pera si liberalidade
mal poderá pera outrem ter largueza.
Mas contudo, essa roda de aspereza
espero que desande,
e algüa hora abrande;
porque, por tempo, as feras das montanhas
abrandam suas sanhas,
e o feroz cavalo altivo ufano,
por tempo se somete ao uso humano.

Se pera atormentar-me estás constante,
se pera crueldade tens tal posse,
a esperança em mim vive segura,
porque, por tempo, a poma se faz doce
e se quebra o forte diamante,
a água branda cava a pedra dura.
Quiçais permitirá minha ventura
que algum tempo veja
o bem que alma deseja;
que no tempo brumal o céu espelhado
não está sempre ofuscado;
e às vezes o mar manso tem tormenta,
mas escassa, se o vento a fúria assenta.

Se de qualquer trabalho, pouco ou muito,
pastora, galardão igual se espera,
e dar-se a quem o merece se costuma,
de meu amor constante e fé sincera
bem posso com rezão esperar fruito.
Sem te ofender com isso em cousa alguma
a vida pois se gaste e se consuma
em tão gentil demanda,
pois que Amor o manda;
e se nela quiser Fortuna ou Fado
que seja de ti amado,
não quero dele glória mais comprida.
E, quando não, morrer por ti é vida.

Canção, perdida vás, mas mais perdido
está quem te oferece ao seco vento;
pois, pera sentir males tem sentido,
e pera mais lhe falta sentimento.
Se me queixo, ao doente é concedido
queixar-se de seu mal, de seu tormento.
Portanto deixa-te ir e, donde fores,
pubrica meu tormento e mal de amores.


 


 

 

 

 

 

16/03/2006