Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Luís Vaz de Camões




À morte de D. Caterina de Taíde:




Personagens: SOLISO e SILVANO

SOLISO

De camanho alvoroço me causava
a vinda da menhã resplandecente
e quanto a clara aurora me alegrava
que, quando via o sol claro e luzente,
bem clara então em mi se conhecia
üa nova alegria diferente;
tanto me mata agora o novo dia,
vendo que me não mostra a fermosura
de que só me alegrava e só vivia.
E não me quis deixar minha ventura
esperança de mais tornar a vê-la.
Ó fado cruel, triste! ó sorte dura!
Ó fermosa Natércia, Ninfa bela,
em que mostrou o cabo a Natureza
de quanto se podia esperar dela:
se lá onde tu estás, na mor alteza,
te lembras de quem fica cá na terra
pera te magoar sua tristeza,
lembre-te da contínua, cruel guerra,
em que sempre me traz tua lembrança,
sem me lembrar do gado nem da serra.
Lembre-te que perdi a confiança
de poder jamais ver-te, e juntamente
de todo o outro bem a esperança.
Lembre-te por ti a água corrente
deste fermoso rio me é nojosa,
com que já noutro tempo fui contente.
Por ti esta menhã clara e fermosa
os males cada hora me acrecenta,
sendo-me noutro tempo deleitosa.
Por ti o claro sol me descontenta;
com seu cantar me mata Filomela;
e Progne, porque chora, me contenta:
For ti, casta Natércia, Ninfa bela,
a verdura suave deste prado
os males me acrecenta só com vê-la.
Por ti não curo já do manso gado;
e aquilo em que antão meu bem crecia
com isso crece agora meu cuidado.
Por ti não sou já agora o que soía:
mudou-se-me a vontade coa ventura,
mudou-se-me em tormento a alegria.
Mudou-se-me o dia claro em noite escura;
nem é muito que o bem se me mudasse,
pois se mudou tua fermosura.
Não via outro remédio que cuidasse
poder aproveitar a meu tormento,
nem outro nenhum bem em que esperasse,
senão enquanto o triste pensamento
se punha a contemplar tua beldade,
sem lhe lembrar tão longo apartamento.
Agora que me falta a claridade,
que de te ver a minha alma recebia,
ficando-me só dela a saudade,
qual ficará üa alma que soía
desta glória somente sustentar-se,
glória de que eu gozar não merecia?
Qual poderá ficar quem com lembrar-se
somente deste bem que é já passado
faz que não venha a morte em mal dobrar-se?
Qual poderá ficar quem um cuidado
sustém, que do mal é certa morada,
e vive já do bem desesperado?
Qual ficará, ó Ninfa delicada,
üa alma que te viu e, em te vendo,
o fio te cortou a dura fada?
A causa deste mal eu não entendo.
Entendo só que vi tua fermosura
e que, pola não ver, vivo morrendo.
Vejo que me roubou a morte dura
um bem por que meu mal me contentava.
Lembra-te tu de tanta desventura!
Lembra-te que de ti só esperava
remédio a meu mal. Antão verás
qual ficou quem em ti se confiava.
Lembra-te onde estou, e onde tu estás
e que, sem ti, o bem me aborrece,
e do mal de meu bem te alembrarás.

SILVANO

Não sei por que rezão assi amanhece
este dia, dos outros diferente,
em que toda a alegria se entristece:
porque o manso gado que, contente,
buscava pelos campos a verdura
e nos rios a clara água corrente,
agora o vejo andar pela espessura
sem lhe lembrar o campo e água fria,
sinal de algüa grande desventura.
Filomela não cura de harmonia;
Progne seu canto dobra cada hora;
também se mostra triste a penedia.
Sobretudo também a clara Aurora,
que os seus cabelos de ouro vem mostrando,
sendo sempre contente, é triste agora.
Está-se nestas ervas enxergando
üa tristeza, donde se conhece
que algum mal se nos vai aparelhando.
E vejo que agora tudo se entristece
e que a causa não sei; Deus ora queira
que menos seja o mal do que aparece;
que dês que aqui conheço esta ribeira
não me lembra que a visse tão pesada,
correndo com um tom desta maneira.
Não me lembra que visse a alvorada
tão triste esclarecer, como esta vejo
vir toda de tristeza acompanhada.
Folgara ter agora quem, sem pejo,
desta causa a rezão me declarasse
pera satisfazer a meu desejo.
Porque não posso eu crer que se gerasse
de algüa baixa causa um tal efeito
que até nas duras pedras se enxergasse.
Porque o coração dentro no peito
me diz que esta tamanha novidade
se mostra por algum grande respeito.
Mas, se me não cega esta claridade,
lá vejo vir Soliso com seu gado,
de quem posso saber toda a verdade.
Mas não posso cuidar neste cuidado
que com os olhos não mostre onde me chega
a dor de o ver tão fora do passado.
Porém, quem ao cruel Amor se entrega
não é muito sofrer todo o tormento
porque dá todo mal, todo bem nega.
Porque este, enquanto trouxe o pensamento
livre de outro cuidado em que o ocupasse
senão só em buscar contentamento,
festa não se fazia em que faltasse
a sua frauta, que ele assi tangia
que nunca houve pastor que lhe chegasse.
Agora já não é o que soía:
vejo-o na condição todo mudado,
mudada também dele esta alegria.
Porque não cura já do manso gado;
aborrecer-lhe vejo as frescas flores,
aborrecer-lhe a gente e povoado.
Não cura já das festas dos pastores;
vejo-o apartar-se só pela espessura,
enlevado somente em seus amores.

SOLISO

Deixa chorar, Silvano, ao que chora;
deixa-me lamentar meu triste fado
pois que meu bem perdi todo em üa hora.
Tu não sentes agora outro cuidado
senão buscar os campos e água fria.
Ah, ditoso viver, ditoso estado!
Coitado de quem passa a noite e dia
em desejar a morte, e a ventura
lha nega, porque o morrer lhe dá alegria!
Ó fermosa Terciana, tu a altura
do Céu resplandecente andas pisando.
Triste de quem cá viu tua fermosura!

SILVANO

Que é isso que do Céu estás falando?
Parece-me que já não és Soliso;
ou algüa cousa estás imaginando.

SOLISO

Quem já perdeu aquele doce riso
que dava discrição, saber e vida
não é muito perder também o siso.

SILVANO

Declara-me que cousa está perdida,
de que tanto te aqueixas, que o que eu sento
Natércia destes montes é partida.

SOLISO

Quão livre fala o que o tormento
alheio vê de fora, mas não sente
onde chega tamanho sentimento!
A perda que eu perdi não me consente
que tenha as palavras tão expertas
que possa declarar-tas facilmente.
Mas por outra rezão vejo que acertas;
que com nenhum mal deve embaraçar-se
quem as desventuras tem tão certas.

SILVANO

A quem a outrem não quer manifestar-se,
faltando-lhe pera isso a vontade,
não faltarão rezões pera escusar-se.
Não sei donde te vem tal novidade:
negares-me üa cousa que te peço,
pois ta merece já nossa amizade.
Se por ser teu amigo te aborreço,
- porque esse mal que cega o entendimento
às amizades faz perder o preço -,
eu te deixarei só com teu tormento;
mas não sem dor, por ver que tanto a peito
te sujeitas a um vão pensamento.

SOLISO

Outra era a rezão, outro o respeito
o que me fez negar-te o que pedias;
não creias que de ti tão mal suspeito.
Bem sei que meu proveito pretendias:
esta obrigação me fez negar-te
o que de mi saber tanto querias.

SILVANO

Vejo tanto em dizer-mo prolongar-te
que já suspeito mal por tua vida
que queiras acabar de declarar-te.

SOLISO

A alma sinto já desfalecida,
lembrando-me somente aquela história
que é, pera meus males, tão comprida.
Porque sinto em mi de novo a memória
daquele bem que o meu só sustentava.
Oh, quem pudera ir trás tanta glória!
Natércia, que estes montes alegrava
e à casta Diana fez inveja
e com sua bela vista o sol cegava;
Natércia, que era em perfeição sobeja,
em que a Natureza pôs o cume
de quanto em üa Ninfa se deseja;
Natércia, que ao mundo foi o lume
de fermosura tal que usurpado
tinha quase ao Amor o seu costume;
Natércia, por quem ando rodeado
de tanto mal que só a morte dura
espero que dê fim a meu cuidado;
já não amostrará aquela fermosura
com que alegrar soía toda a terra,
e fazia contente a noite escura.
Aos pastores já não fará guerra
com a vista, senão com a lembrança,
guerra que em maior dano se encerra.
Já de vê-la é perdida a esperança,
que esta vida trocou, de mal cercada,
por outra em que do bem não há mudança.
E por esta rezão esta alvorada,
das outras que passaram diferente,
vedes de sinais tristes rodeada.
Não me atrevo a dizer-te mais que sente
alma há no que digo; tal tormento
que quase esta memória não consente.

SILVANO

Se a mi não engana o entendimento,
Natércia deste mundo é partida.
Dize-me se é verdade ou fingimento.

SOLISO

Não queiras renovar-me esta ferida.
Natércia é morta; e eu tão endurecido
que me dura, sem ela, a triste vida.

SILVANO

Ó mundo cruel e triste, quão perdido
anda o que em tuas mostras se confia,
e a quanta desventura oferecido!
O teu contentamento e alegria,
o tem bem, que dás pera mor dano,
que são senão de males üa guia?
Deixas passar um bem de ano em ano
porque com maior mal nosso e tua glória
venhas a declarar-nos teu engano.
Assi contigo vai sempre a vitória,
deixando-nos somente por herança
do bem, que nos roubastes, a memória.
Perdida é em ti toda confiança,
que só de falsidades e enganos
se deve ter em ti certa esperança.
Quem cuidara que uns tão tenros anos
e üa tal claridade, que excedia
quanto podem cuidar peitos humanos;
e aquele olhar brando, que fazia
ao mesmo Amor guerra livremente,
pudesse perecer em algum dia?
Qual é o peito duro que isto sente
que queira vida mais, pois morta é aquela
que fazia o viver ledo e contente?
Morta é já aquela vista bela,
que alegrar a tristeza bem pudera
e a quem não a tem também trazê-la.
Ah, morte, morte dura e fera,
como não te movia üa beldade
que até as duras pedras comovera?
Como não te moveu üa tenra idade?
Como não te moveu a sorte dura
dos que agora sentem sua saudade?
Deixai, tristes pastores, a verdura;
deixai as frautas já e os mansos gados,
e vinde chorar vossa desventura.
E vós, silvestres Faunos namorados,
chorai tamanho mal, pois já perderam
seu remédio e seu bem vossos cuidados.
Ninfas, a quem os deuses concederam
destes bosques espessos as moradas,
em que tamanhas graças esconderam:
se aquela piedade costumada,
de que assi vos prezais, não esquecestes,
que sempre foi de vós tão venerada,
pois do alheio mal sempre vos doestes,
vinde chorar o próprio vosso agora,
pois vossa glória e honra já perdestes.
Náiades, das águas saí fora;
vinde chorar comigo um mal tão forte
que ali o duro monte também chora.
ó Ninfas, chorai a triste sorte
dos coitados pastores a quem nega
Amor pera maior mal a triste morte.
Ó Dríades, a quem o Amor se entrega,
a vós dou o cuidado deste pranto,
pois sabeis este mal onde nos chega.
Deixai, ó Amadríades, entretanto,
os prantos que guardais, por ajudar-me,
pois deixa Filomela o alegre canto.
Que pois não podeis remediar-me,
vinde deixar-me, por que juntamente
lembrança deste mal possa deixar-me;
que, enquanto vos tiver, terei presente.



 


 

 

 

 

 

17/03/2006