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Luís Vaz de Camões




Piscatória



MELISO

Encheu do mar azul a branca praia
Meliso, pescador, de mil querelas;
Meliso, que por Lília arde e desmaia.
Despois que à luz da lua e das estrelas,
sobre dura fateixa o barco posto,
as redes recolheu, remos e velas:
«Que gosto, ó Lília – disse – , ou que desgosto
te move a me negar, vendo qual ando,
teus olhos cor do céu, teu alvo rosto?
Se tu queres que pene desejando,
se queres que no mar em fogo viva;
ardendo sempre estê, sempre penando...
Mas olha, ó branda Lília – antes esquiva -
que não merece ser tão mal tratada
uma alma deuses olhos tão cativa.
Vives dos meus cuidados descuidada.
Coitado de quem traz a duvidosa
vida no mar e terra aventurada!
Bem podes com razão ser piedosa
com quem não quer mor bem que bem querer-te,
não sendo tão cruel como és formosa.
Ora deixa já, ingrata, deixa ver-te
a meus cansados olhos, que de tantas
lágrimas são movidos, sem mover-te.
Se tu me vences e se tu me encantas
com tua doce fala, doce riso,
porque foges de mi? Porque te espantas?
Lembre-te a formosura de Narciso
e qual pago lhe deu seu desamor:
olha que com amor disto te aviso.
Mas quando essa crueza tanta for
que mereça do Céu novo castigo,
qual erva será digna de tal flor?
Amor que me persegue, Amor que sigo,
me faz dum grave mal andar temendo;
dum mal, que eu sinto na alma e que não digo.
Quanto mais ledo já te estive vendo
aqui as mansas ondas esperando
- que, por chegar a ti, vinham correndo – .
e da molhada areia despegando
com a cândida mão roxas conchinhas,
a forma de teu pé nela deixando?
Daquelas, de que tu mais gosto tinhas,
muitas te trago aqui, posto que temo
que menos o terás por serem minhas.
Um temor tal me chega a tal extremo
que, vencido de um triste esquecimento,
no mar me cai da mão o duro remo.
E quando a branca vela solto ao vento,
tão descuidado vou do fiel leme
que me leva a perder meu pouco tento.
Mas quem arde por ti, quem por ti treme,
os seus maiores riscos não receia;
os teus, que sente mais, muito mais teme.
Despois que te não vi – não sei que creia
desta tardança tua e morte minha -,
sendo a lua vazia, é quase cheia.
O tempo, que nos gostos passa asinha,
detém-se neste mal da saudade,
por me dobrar a dor que dantes tinha.
Não desprezes, ó Lília, uma vontade
que, por te contentar, tudo despreza,
tudo julga, sem ti, por pouquidade.
Se pretendes amor, já tens certeza
que não podes ser nunca mais amada
dos que vencidos traz tua beleza.
Se porventura estás afeiçoada
a gentil parecer, a bom engenho,
a ninguém nestas partes devo nada.
Se fazes caso de honra, olha que venho
de geração de honrados pescadores;
se de riqueza, barco e redes tenho.
Por erros julgarás estes louvores,
e oxalá não os julgues por doudice!
Mas quem siso quer ter não tenha amores.
E mais tudo foi pouco quanto disse,
pondo os olhos no muito que meu Fado
nos teus, que ver desejo, quis que visse.
Aconteceu-me um caso desusado,
- inda que de uma cousa noutra salto -
digno, por ser de amor, de ser contado.
Pescando ontem à tarde no mar alto,
suspenso nessa rara formosura,
a quem com mil lembranças nunca falto,
comecei a cantar: «Lília, mais dura
que a mais inculta rocha rodeada
do mar, de cujo encontro está segura;
mais alva que jasmins, e mais corada
que purpúreas cerejas polo Maio;
mais loura que manhã desentrançada;
não vês...» Dizer queria que desmaio,
quando – cousa que mal me será crida -
no mar, vencido de um, do barco caio.
Ali tivera fim a triste vida,
se de um brando delfim, que me escuitava,
não fora, por ser tua, socorrida.
Parece que também vencido estava
do mal, de que me via andar vencido
quem em tamanho risco me ajudava.
Trouxe-me sobre si adormecido,
nadando ao som das ondas mansamente,
até que me sentiu em meu sentido,
livre deste mortal, bravo acidente.
Tal foi o espanto meu, tal meu temor,
que doutro me livrei escassamente.
Mas logo o amoroso nadador
me pôs junto do barco, que tão perto
esteve de ficar sem pescador.
O sol era de todo já coberto,
quando eu, entrando nele, saí fora
do perigo, onde tive o fim tão certo.
Porém outro maior me cansa agora.
De que mal sairei, se te não vir
amanhecer aqui coa nova Aurora?
Não pode ela tardar em descobrir
as suas louras tranças desatadas,
das quais as tuas bem se podem rir.
Pois por cima das ondas, acordadas,
as Alcióneas ouço lamentar-se,
do seu antigo dano inda lembradas.
E sinto o fresco orvalho derramar-se
mais congelado e frio; e Vénus bela
polo oriente já vejo levantar-se.
Bem podes, Lília, competir com ela,
e com Palas e Juno em gentileza;
em amor não, pois ele nasceu dela:
desterrou-o de ti tua aspereza,
que desterra de mi prazer e vida,
deixando em seu lugar mágoa e tristeza.
No silêncio da noite, que convida
a descanso comum, tanto me cansa
que não sei se remédio ou morte pida.
Se tu quisesses dar-me uma esperança
de te servir de mi ou tarde ou cedo,
nunca me negaria o mar bonança.
Polas inchadas ondas, que põem medo,
eu só, sem mais ajuda, levaria
sempre à força de braço o barco quedo.
Tão seguro por elas andaria,
como polo seu campo o lavrador
no mais quieto, claro e belo dia.
Olha que não há destro pescador,
que mais manhoso as redes desencolha,
nem os tortos anzóis isque melhor.
Os peixes deixarei em tua escolha:
aqueles de que fores mais amiga
nunca te faltarão de folha a folha.
Não sei, Lília formosa, que mais dia,
que mova amor em ti, que mova mágoa;
sei que mágoa e que amor a mais obriga.
Mas antes que o sol dê naquela frágoa,
onde meus ais dilata a triste Eco,
vou-me segurar mais o barco na água,
por que de baixa-mar não fique em seco.

 


 

 

 

 

 

17/03/2006