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            José Maria Cançado 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            A palavra essencial 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O "barrismo" que talvez ameaçasse a poesia de Manoel 
            de Barros já não ameaça no 13º livro do poeta -este nobre "Livro 
            sobre Nada". O risco do barrismo, alusão tanto ao seu sobrenome como 
            à proclamada vocação da sua poesia de ser um "apogeu do chão", de 
            fato não é pequeno: talvez a insistência num certo élan adquirido, 
            alguma mitologização, até involuntária, das referências, um ou outro 
            neologismo de consistência duvidosa. E principalmente: o risco que 
            haveria em deixar que esta poesia, que é uma estação incomum do 
            sujeito poético, virasse uma identidade linguística, 
            regional-pantaneira e cultural acabada. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Nada parecido neste "Livro sobre Nada" (sugestão de 
            Flaubert, que Barros assinala no seu prefácio, mas para dela se 
            diferenciar: 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            "Ele queria o livro que não tem quase tema e se 
            sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. Um 
            alarme para o silêncio..."). Neste livro não há tanto a feição às 
            vezes um pouco típica demais de composição das imagens de Manoel de 
            Barros, espécie de associação surrealista sem panca e sem pose de 
            objetos e qualidades ("parafuso de veludo", "alicate cremoso", 
            "sabiá com trevas" etc), uma das marcas de vários dos livros 
            anteriores do poeta, e que provocou tanto impacto e admiração no 
            final da década de 80, quando sua obra saltou da rede devota e meio 
            clandestina de não muitos leitores para uma circulação mais ampla e 
            nacional. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Este livro é talvez menos espetacular neste sentido. 
            Um livro quase recatado, mais essencial. Nele há uma índole e um 
            jeito de composição mais amparado no que o próprio Manoel de Barros 
            chamou de "lajedo interior do poema" do que na fulgurância das 
            imagens, há os delineamentos ocultos da sua poética e do seu mundo 
            ("Tem mais presença em mim o que me falta"; "É mais fácil fazer da 
            tolice um regalo do que da sensatez"). E há as fontes, a memória e 
            um pouco a moral do seu universo, dispostas em aforismas (como no 
            belíssimo princípio, à la Auden, "Não pode haver ausência de boca 
            nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou"). 
            Livro sobre nada, é também um livro sobre as virtudes. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O melhor porém é que mais ainda do que antes, Manoel 
            de Barros aloja no seu livro várias máscaras, alguns alter ego e 
            personagens: seu pai, sua irmã Bugrinha, o avô insondavelmente 
            teatral, que simulou um dia "cortar o phalo com o lado grosso da 
            faca", e povoa o seu mundo com eles. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Assim, na última seção do livro, de título 
            especialíssimo ("Os Outros: o Melhor de Mim Sou Eles"), o poeta como 
            que se dissolve em alguns desses alter egos: um pintor boliviano, 
            Rômulo Quiroga, em cuja pintura em sacos de aniagem ele viu "latejar 
            a cor psíquica e as formas incorporantes de Picasso", e lhe ensinou 
            que é preciso eliminar da natureza "as naturalidades"; Mário, um 
            tipo do Pantanal que lia o seu futuro nas entranhas dos animais; o 
            artista plástico Arthur Bispo do Rosário, cuja obra, "ardente de 
            restos", tem semelhança assombrosa com o melhor da poesia do próprio 
            Barros, que estampou num livro: "Aceita-se entulho para o poema". 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Estranho, este livro: pacificado, tranquilo no 
            início, quase um romance familiar em "idioleto mamoelês", ele 
            termina com uma dicção quase feroz, e lança vasos comunicantes para 
            vários lados. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Melhor assim: o ``barrismo'' o ameaçava, o ``barrismo'' 
            o salvou. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Barros continua "aberto aos desentendimentos como um 
            rosto". 
             
            
            José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de Orfeu", 
            biografia de Carlos Drummond. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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