Adalberto dos Santos
A miragem na mira
Os contos que
Carlos Gildemar Pontes reúne em seu primeiro livro do gênero, A
Miragem do Espelho (Ed. Universitária, UFPB, Prêmio Novos Autores
Paraibanos, 1998), demonstram definida influência de escritores
universais e brasileiros, muito subjetivismo e relativa aproximação
com a literatura fantástica.
Os contos (num
total de vinte e dois) são quase todos escritos em primeira pessoa.
Embora curtos, apresentam certo teor social, comprovado pela
evidente preocupação com os problemas que afligem o homem moderno.
De uma prosa fluente e perfeitamente elaborada, os contos de A
Miragem do Espelho vêm confirmar o talento literário desse escritor
cearense que, de uma vasta produção poética, agora mostra sua
capacidade criativa nesse outro ramo da literatura. O que há nesse
livro de contos é bem o reflexo do poeta que Gildemar era já no
início da década de 80, quando cursava Letras na UFC: um artista
preocupado com o valor estético de suas obras literárias. Naquela
época, havia um intenso movimento artístico em todo o Ceará, e o
poeta, estudante e amante dos livros, iniciava-se nessa vida
artística.
No começo foi
difícil, pois havia dificuldades para publicar, as editoras eram
poucas e para o gosto de uma elite de intelectuais, os iniciantes
tinham "pouco" valor literário. Aliás, a chamada literatura marginal
sempre fôra uma sub-arte e, por isso mesmo, pouca aceita no mercado.
Só que entre uma luta e outra Gildemar Pontes pôde demonstrar
determinação e, desde Reflexos (sua primeira obra, 1982), até hoje,
já publicou quase uma dezena de livros: entre eles um de literatura
de cordel e um de literatura infantil. A Miragem do Espelho abrange
algumas produções já publicadas em antologias e suplementos
literários e também premiadas em festivais. É o caso dos contos
"Miragem" (Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 88), "Arrepios na
Noite" ( primeiro lugar no concurso de contos da IX Jornada Cearense
de Psiquiatria, 86) e "Um Barato" (ganhador da medalha de bronze no
Concurso Nacional de Contos de Brasília, realizado em 1993).
Numa linha que
vai do fantástico kafkiano ao realismo de Moreira Campos, Gildemar
constrói seus contos desenhando cenários e personagens, enquanto, ao
mesmo tempo, vai unindo suas similaridades, conforme a narrativa
exigir. A imagem que se apresenta em "O Espelho", primeiro conto do
livro, é bastante significativa para esse processo. Assim como o
Gregor, personagem de Kafka, angustiado em sua condição miserável, o
personagem de Gildemar se dilacera psicológica e fisicamente na
solidão de seu quarto. Como se aceitasse seu destino e se
"transformasse" também num reles mortal , cuja única alternativa é
esperar seu trágico fim, o personagem de "O Espelho" se corrói a si
mesmo, lentamente. Na narrativa tudo é perfeitamente adequado: desde
a descrição do ambiente do quarto até a imagem do comportamento do
personagem - que escolhe observar-se toda noite em frente ao
espelho. Há um misto de fusão entre o espaço exterior da narrativa e
o espaço interior do personagem. Diríamos mesmo que isso ocorre pelo
trabalho minucioso que o contista faz nas descrições. O ajustamento
das palavras é perfeito, o que faz com que se perceba nitidamente o
ambiente: o leitor tem então uma visão total do espaço onde a
história se passa - o que contribui também para o "retrato" do
protagonista.
"Um Barato",
segunda história do livro, segue o mesmo estilo do conto
anteriormente analisado. O próprio título já estabelece uma relação
com o tema escolhido pelo autor para criar o enredo. Quem conhece
Kafka e sabe de sua importância na narrativa de caráter fantástico,
percebe, ao ler os primeiros parágrafos do conto, a influência desse
escritor sobre Gildemar. É a partir dessa história que o contista, a
julgar pelo fantástico, trabalhará temas semelhantes ao do
personagem, que por odiar tanto as baratas acaba tornando-se uma
delas, findando em suicidar-se bebendo veneno. Contos como "Perfil
de um Homem Comum", "Homo Sapiens", "Homo Sapiens-Sapiens" atestam
essa mesma técnica. Neles, o vocabulário denota um profundo gosto
pela escolha de bichos para compor as narrativas. Entre cupins,
baratas, aranhas, moscas e besouros, personagens se misturam em
ambientes mórbidos que provocam no leitor um certo mal estar, mas
mesmo assim agradam pela elegante sutileza da composição.
O fantástico
também aparece em pequenos fragmentos de algumas narrativas do
livro, a exemplo de "A Estação", em que personagens criam asas, ou
em "Os Elefantes não são Verdes", onde naturalmente após seguidas
reuniões secretas em um escritório alguém esquece a cabeça pendurada
num cabide, a narrativa "Domingo no Jóquei", cujo personagem
impressionado com um cavalo de corrida acaba, ao voltar para casa,
cavalgando rumo a uma batalha na Idade Média, "O Banho", história
insólita, na qual um homem escorrega pelo ralo do banheiro, "A
Torre", que remete a um ambiente medieval, onde o personagem vira
espadachim, conhece uma mulher e no fim acorda de um sonho que
parecia real. O ponto culminante desse elenco de narrativas aparece
em "O Seqüestro de Gregor", conto imaginativo e brincalhão, em que o
contista cria um personagem que convida um outro personagem de um
outro livro para juntos irem do Brasil a Praga "salvar" o personagem
de Kafka, antes que ele fique preso dentro d'A Metamorfose.
Há também contos
de um lirismo fabuloso, com grande qualidade. É o caso de "Miragem"
e "Eu te Criei do Nada", dois contos com uma dramaticidade bem
definida. Na verdade, a pretensão de Gildemar ao criá-los parece ter
sido a de fazer prosa poética. Os textos vão fluindo como um poema,
enquanto o lirismo torna-os mais poéticos. O sentimental se
demonstra na lembrança dos personagens que, em devaneio, motivam o
leitor a experimentar suas emoções. São contos bem construídos, de
linguagem fácil e que constituem o ponto máximo do livro.
Os contos de A
Miragem do Espelho apresentam um fino modelo da tradição contística
brasileira. Mesmo com uma face voltada para os grandes escritores
universais do gênero é como o já citado Kafka, ou mesmo Borges,
Tchekov, Maupassant - Gildemar tem muito de Machado de Assis,
Moreira Campos, Murilo Rubião e, talvez inconscientemente, Dalton
Trevisan e Moacyr Scliar. Antenado com as produções contemporâneas e
sendo um pesquisador do gênero narrativo, vale esclarecer que o
escritor, ao longo de seu processo criativo, sabe aproveitar as duas
vertentes. Seu trabalho é árduo enquanto arte, e sente a preocupação
em querer melhorá-lo cada vez mais.
Contudo, o mais
importante nesse livro de estréia de Carlos Gildemar Pontes é, sem
dúvida, a sinceridade com a obra artística. E mesmo que suas
histórias sejam pequenas e a narrativa propositadamente condensada,
uma única palavra de Machado de Assis encerraria o discurso: "O
tamanho não faz mal ao conto; importa a sua qualidade".
Mais nenhuma
palavra.
Professor e Crítico Literário.
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