Carlos
Gildemar Pontes
Prefácio pai
d'égua
Nós,
urbanóides viciados em técnica e moleza, engordamos nossos corpo e
mente diante da TV e do computador. Tudo bem! Ficamos informados e não
precisamos ir ao supermercado-capital para escolher a cor da lua. Na
aldeia global o sinal de fumaça nos previne ou nos aniquila. Vimos
estupefatos o 11 de setembro de transformar em pesadelo digital,
vimos um menino iraniano de corpo e cabeça, e só, ceifado de
pernas e braços pelas bombas estúpidas do inteligente Bush ou o
contrário dá no mesmo. Agora vai para o reformatório sacrossanto
do capitalismo em algum hospital livrar-se do pesadelo: vão lhe
botar pernas novas, braços novos, pés e mãos novinhos e vão
substituir sua memória e seu olhar por fotografias, aos poucos seu
cérebro será substituído por um chip minúsculo e ele verterá lágrimas
de óleo singer, até que um curto-circuito lhe mostre o mundo que
perdeu. do horror ao estupor vamos arquivando nossas relações de
amor e megabytes.
Sou
do tipo urbanóide, litorâneo e escolarizado. Lei e escrevo para não
morrer de tédio ou para deixar outros mundos de herança para
minhas filhas. Mundos como os que pude ver e sentir na minha infância.
Sorte minha meus pais terem nascido na Serra do Baturité, Mulungu,
Catolé, Trapiá, Riacho do Meio et adjacências. E o vovô tinha
uma moagem na Serras e uma fazendinha no Canindé, Caridadade, Camarão,
lugares bem pertinho do paraíso. Pude com isso saber das coisas do
mato, dos cheiros da autora, das cores que inverno deixa quando
parte e não se sabe se volta tão cedo. Bois e cavalos, jegues e
cachorros, gatos e galinhas, perus e bodes, leite mungido, pão de
milho, panqueca, jerimum amassado ao leite, coalhada, canjica, arroz
doce, pamonha, fubá, manga rosa, sapoti, siriguela, estia gosto de
tudo isso na boca! Dizem que os velhos costumam esquecer o passado há-pouco
e lembrar do passado remoto, na infância. Antecipei um dia desses a
lembrança de velho. Escondi-me nas locas de pedra, espreitando
passarinhos de baladeira estirada. Pei!, lá se foi uma rolinha.
Corre, que a corre-campo vem aí doida por uma perna de menino. E nós,
a primarada, afobada batendo o pé na bunda de tanto correr. A vovó
gritava de longe «Chico, deixa de fazer medo a esses meninos!» Ela
nem sabia que era de vera.
Tudo
isso escorreu sobre mim quando li o prefácio de Soares Feitosa para
o livro de Virgílio Maia. Eita prefácio pai d’égua! Aí lembrei
do que disse um desses críticos enfastiados. Tem prefácio que é
melhor do que a obra. Ora, um e outro são uma coisa só, senão o
autor não pedia ao amigo que o apresentasse. E todos nós temos os
nossos pares de prefácio e escolhemos os livros que queremos
prefaciar. Aposto que o Virgílio Maia ficou feliz e o Soares ficou
orgulhoso. Eu fiquei aqui com uma pontinha de inveja saudável, que
se cura sem doer nem fazer mal, porque conheço os dois. Talentos, têm
de sobra. E boa literatura é talento agregado a uma dosesinha de
inspiração. Eita prefácio pai d’égua!
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