Carlos
Gildemar Pontes
Uma morada para o poema
As considerações sobre a arte literária e sua relação com a
sociedade existem, em si, desde o nascimento das primeiras formas
literárias, o poema ou a narrativa orais, que inauguraram a cultura
artístico-verbal dos homens através de uma representação. Isso
começou a ser sistematizado desde a Antiguidade clássica, quando se
tentou definir os gêneros literários.
Esta representação foi, ao longo dos tempos, incorporando uma série
de relações formais e discursivas, fruto do acúmulo da experiência
humana e das obras manifestadas através dos diversos tipos de arte e
das suas linguagens. No caso da literatura brasileira, veremos
momentos díspares em relação a um conceito do que seja arte e arte
nacional, no esboço de um conceito de identidade nacional. Ora
tendemos para a dupla cópia: imitamos uma fôrma literária
estrangeira ou tentamos criar a nossa própria fôrma.
No livro III d’A república, Platão faz restrições à obra de Homero,
precisamente aos aspectos relativos ao que chama de “encanto
poético”. Para o filósofo, o “encanto poético” prejudicaria a
formação de crianças e homens, pois as palavras que produzem tal
efeito resultariam em uma certa deformação no caráter dos homens.
Não aceitava Platão que a natureza da criação literária consistisse
exatamente na imitação não só de uma obra/objeto, mas também de uma
idéia/realidade. Para o filósofo, o bom poeta não seria aquele capaz
de dominar o assunto do qual fala sem conhecê-lo profundamente. Se
falasse sobre a guerra, deveria ser conhecedor igualmente a um
general; se sobre a cadeira ou o sapato, deveria ser do mesmo modo
marceneiro ou sapateiro.
Apesar da atitude de censura ao poeta, o discurso platônico será
retomado por outros não tão ilustres quanto Platão, mas
lamentavelmente limitados a algum tipo de censura.
De outra forma pensou Aristóteles. Neste, e na sua Poética, a Poesia
ganha status de Arte superior à própria História.
Por isso, a Poesia
encerra mais filosofia e elevação do que a História;
aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos
particulares. Enunciar verdades gerais é dizer que
espécie de coisas um indivíduo de natureza tal vem a
dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a isso
visa a Poesia, ainda quando nomeia personagens.
Relatar fatos particulares é contar o que Alcebíades
(fulano) fez ou fizeram a ele.(ARISTÓTELES, 1988:28)
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Sua abordagem, portanto, passa do plano idealista para o plano
ontológico. Enunciação aparece, aqui, como dizer ou fazer
verossímil. A poesia comporta um discurso que é necessário à sua
existência.
Vê-se que Aristóteles considerava a obra de arte como mimese e, como
tal, a separava conforme o imitado, o meio de imitação e a maneira
pela qual essa imitação se efetuava. A poesia, por tratar de uma
verdade geral e operante, pode, através do poeta, escolher este ou
aquele incidente para alcançar uma realidade mais profunda que
aquela expressa na realidade comum.
A literatura, em seu processo de elaboração, possibilita o diálogo
de um texto com outros textos e com as outras formas artísticas,
pelo tempo e espaço indefinidos. A relação entre a literatura e os
outros elementos da cultura, segundo Bakhtin, associam o fazer
artístico ao ideológico. O que importa para o pensador russo são as
relações dialógico-discursivas que se estabelecem entre as formas
artísticas. Portanto, põe abaixo o conceito platônico de arte e
redimensiona a mimese aristotélica.
O que dizer então da poesia hoje, neste neomundoliberalglobalizado?
A poesia é uma soma de saberes advindos da experiência do poeta. O
poeta é o fulano de tal normal (ou não) + o profissional disto ou
daquilo + o pai, filho, marido, companheiro ou companheira + o
fingidor pessoano + o que quiser. Então, dos saberes do poeta, há
um, desierarquizado de papéis, que se transforma em arte. Já li e
ouvi muitas definições de poesia de acordo com as normas da Escola,
da tendência, do grupo etc. Todas válidas. Concordo em parte com
todas e discordo da parte que sobra.
A epopéia, de Homero a Camões, realizou um ciclo que se exauriu na
modernidade. A poesia lírica, mais antiga que a epopéia, permanece
até hoje camaleonicamente exprimindo uma individualidade mediada
pelo poeta. Não se mede o valor pela forma. Tanto Homero quanto
Matsuo Basho, tanto Rainer Maria Rilke como Mário Quintana foram
grandes poetas, cada galho tem os seus macacos.
Da epopéia ao haicai, do verso-frase ao verso-letra, passando pelo
verso-imagem que se recria no espaço da página, a poesia é um saber
em confronto purgado por alguma emoção. Como refém da tradição
vanguardista européia, que gerou a modernista brasileira, que se
desdobrou até então por reformar a forma (em concreta, práxis,
processo, mimeógrafo, herdeiros de Cabral), um segmento de poetas
contemporâneos a partir da Geração 80 vem subtraindo as figuras de
linguagem e hiperinflando a palavra de significados.
Cândido Rolim, em seu Pedra habitada, achega-se a esta tendência ao
menos. São 36 poemas enfeixados numa bela edição da AGE editora de
Porto Alegre. Não se trata de um livro-projeto como afirma Ronald
Augusto no posfácio ao livro, sim de um projeto definido de livro de
poemas com uma vertente por demais explorada na poesia brasileira
hoje, o minimalismo poético. Parece-me que os (neo) vanguardeiros,
herdeiros de Cabral estão neste conglomerado poético. Uns, ainda sem
domínio pleno da poesia de Cabral, outros, mais próximos
textualmente da consciência poética cabralina, excluindo um ou outro
conceito sobre a poesia do poeta pernambucano, que inverte o ditado:
Faça o que ele fez e não faça o que ele disse. Seu texto, este sim,
é modelar como forma que se propõe ao refazer poético. Cândido Rolim
está antenado a João Cabral e cercado de outras poéticas, como o
haikai oriental ou os pequenos mantras indianos. Os seus
quase-haikais, haikais e re-haikais de Pedra habitada comprovam sua
recriação sem a forma em trístico de 5, 7 e 5 sílabas. Explico a
ligação à forma poética oriental: Cândido Rolim aprendeu a lição de
Basho e deu aos seus poemas o enlace entre significante/significado,
ou seja, forma/fundo são elementos indissociáveis e em estado de
semi-acabado. O haikai deve trazer uma filosofia que ensina “O que
diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao
bambu, aprenda do bambu”. É assim que o poeta diz nos poemas
“assobio”:
opiácea vontade de
correr
um meio dia
entre vogais
construir com o pulso
estridência
gana de esconder-se
numa coluna
de pássaros
mastigar cinza
de gorjeio
(p. 51) |
e em “choro”:
sem motivo
aparente
a lágrima
agarra-
se
noutra lágrima
(p. 75) |
A atualização da forma nipônica e a plenificação do poema ao
consumar-se enquanto se faz jogo de palavras impõem uma leitura
lúdica mais lenta para mais entender o texto associado ao conjunto
de poemas do livro. Há encadeamentos entre poemas que poderiam se
fundir num só como nos poemas “abraço”, p. 23, “beijo”, p. 25,
“vício”, p. 27 e “ritual”, p. 29. Percebemos uma sutil erotização
nos textos; poder-se-ia separar os títulos dos corpos dos poemas e,
em seqüência, produzir um novo poema:
abraço
beijo
vício
ritual |
assim como emendar os textos sem os títulos e chamar-lhes “do amor”.
Se para levar Odisseu de volta a Itaca, Homero fez mil arrodeios e
impôs ao herói ciladas e bravuras, para habitar a pedra com poesia,
João Cabral minimizou os adornos e ressignificou palavras, como
sugeriu Victor Hugo: Le poète est ciseleur/ Le ciseleur est poète.
Assim, dialogando com a tradição
romântica-simbolista-vanguardista-cabralina ou qualquerista, Cândido
Rolim, em sua Pedra habitada, desmineraliza a poesia e, como um
ciseleur, transforma a pedra tosca em morada para o poema.
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES et al. A poética clássica. Introdução Roberto de
Oliveira Brandão. Trad. Jaime Bruna. 3ª ed. São Paulo: Cultrix,
1988.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 3ª ed.
Trad. Michael Lahud e outros. São Paulo: Hucitec/UNESP, 1986.
MELO NETO. João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova
Cultural, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite.
São Paulo: Perspectiva, 1976.
ROLIM, Cândido. Pedra habitada. Porto Alegre: AGE editora,
2002
* Poeta e ficcionista, Editor da Revista Acauã.
Professor de Literatura da UFCG. Doutorando em Literatura na UFPB.
Publicou:
Super dicionário de cearensês, 2000
Literatura (quase sempre) marginal, artigos, 2002
Porta-Fólio A miragem do espelho, contos, 2004.
Os gestos do amor: magia e ritual, poemas, 2004.
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