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            Carlos Gildemar 
            Pontes 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            Teoria e ficcionalização da 
            identidade brasileira 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            Introdução 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Na América Latina, a busca de uma identidade cultural passa, 
            necessariamente, por todo um processo de libertação histórica e pelo 
            choque entre a cultura nativa e a cultura do colonizador. Some-se a 
            isto, todo um processo de miscigenação do índio com o branco, o 
            africano e outros povos ao longo de nossa história. Esse 
            choque/encontro provocou aos poucos um sentimento nativista que se 
            transformou em nacionalismo durante a colonização de todos os países 
            americanos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O contato e a interação entre povos durante os três primeiros 
            séculos de colonização provocaram uma mudança estrutural profunda em 
            relação às condições existentes antes da chegada do colonizador. As 
            raças branca e negra, somadas aos índios pigmentaram novas cores ao 
            povo e ao território conquistado. No Brasil esse contato foi menos 
            brutal, se comparado à carnificina da conquista espanhola. O sentido 
            de exploração e submissão era o mesmo, entanto a habilidade 
            portuguesa diante de uma vastidão de terras a ser incorporada 
            estabeleceu uma estratégia diferente. Portugal não tinha como se 
            expandir na Europa, sua localização geográfica o impedia de crescer 
            além de suas fronteiras terrestres, pois que a Espanha o comprime a 
            um canto, e como outra fronteira disponível para a aventura está o 
            mar. Restou aos bravos marinheiros lusitanos descobrir novos mundos 
            para construir um dos maiores impérios marítimos da história. As 
            navegações de descoberta e conquista foram a maior contribuição que 
            Portugal deu ao velho mundo. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Demarcadas as terras abaixo da linha do Equador, Portugal tratou de 
            povoar o Brasil e de criar uma rota marítima regular para defender 
            suas terras e trazer delas os produtos comercializáveis na Europa. 
            Instituiu-se a partir desse momento a colonização exploratória. Era 
            preciso então apagar a cultura nativa como forma de impor a cultura 
            branca, cristã e européia. Durante o primeiro século, até por volta 
            de 1750, toda a vida cultural da Colônia estava ligada ao projeto 
            colonizador e comercial português. Logo com a Companhia de Jesus 
            impondo o catolicismo e a educação religiosa aos índios e colonos 
            como forma de submissão, depois, devastando o pau-brasil e saturando 
            o cultivo da cana de açúcar. Nesse período deram-se os conflitos 
            entre os índios e europeus. Visto não reunir condições suficientes 
            para manter o imenso espaço conquistado, Portugal inicia um processo 
            de cooptação aprendendo a linguagem e a cultura indígena para obter 
            mais eficácia no empreendimento da conquista. E deu certo. Os índios 
            serviram como escudo diante das ameaças de outros países. As 
            tentativas de invasão e colonização por parte de outras nações não 
            lograram êxito, a França de Villegagnon, mesmo aliada aos tamoios, 
            não viu seu projeto de criar uma França Antártica dar certo em 
            função das investidas dos portugueses, brasileiros e algumas tribos 
            aliadas em defesa de um espaço comum. Ainda assim deixaram sua marca 
            registrada na construção da cidade de São Luis. Com o tempo, 
            restou-lhe a pirataria e o lucro obtido em pequenos países 
            subjugados nas Antilhas. A Holanda é que ainda tentou estabelecer em 
            Pernambuco uma extensão do território holandês, as pontes e os 
            canais marcaram a arquitetura holandesa no Brasil. Fracassadas as 
            tentativas dos concorrentes portugueses, Portugal vê-se absoluto e 
            passa a demarcar politicamente o seu domínio.  
             
             
            Conceitos e confrontos de identidades 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Conceituar a identidade cultural brasileira se configura numa tarefa 
            das mais árduas entre pesquisadores das Ciências Humanas. A 
            literatura tem estabelecido uma melhor visão sobre o assunto, pois a 
            poesia (literatura) no discurso aristotélico, encerra mais filosofia 
            e verdade que a história. Isso nos remete a um conceito elementar: 
            literatura é ficção, portanto, a ficcionalização não obedece às 
            regras estabelecidas pelas Ciências Exatas. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A tarefa do escritor não tem compromisso com a verdade histórica, 
            sua postura é de recriar a própria história pelo viés da arte, ou 
            seja, a representação da realidade se dá através de um processo 
            mimético peculiar ao fazer artístico. Como crer na história oficial 
            do Brasil no século 17 sem a leitura dos poemas de Gregório de 
            Matos? Como entender o processo de libertação política no século 19 
            sem a leitura das polêmicas Alencar-Magalhães, Alencar-Nabuco, 
            Alencar-Távora, além dos romances indianistas de formação da 
            nacionalidade, O guarani, Iracema e Ubirajara, os poemas de Castro 
            Alves e Gonçalves Dias?  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O estudo das relações culturais na literatura leva em conta uma 
            discussão entre texto e contexto. Desta forma, o texto como forma de 
            permanência cultural é ao mesmo tempo produtor e produto da cultura, 
            como tal expressa as visões de mundo conflitantes, que se encontram 
            e se chocam, num amplo diálogo entre umas e outras. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A nacionalização do pensamento, para Afrânio Coutinho 
            [1], “é um processo intenso e persistente 
            de busca da identidade nacional, de integração e globalização da 
            realidade brasileira”, p 24. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O que poderia ser um processo de nacionalismo contra outros povos, 
            através de revoltas e guerras que mudaram o rumo da história em 
            muitos países, foi antes “um nacionalismo a favor”, de busca do 
            pitoresco, da diferença, notadamente com a poesia e o romance 
            indianistas e a re-escritura do passado através de uma pesquisa não 
            apenas documental, mas sobretudo de invenção. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O romance de José de Alencar propõe uma leitura do Brasil a partir 
            da diferenciação e do amálgama entre a cultura nativa e a do 
            colonizador. A noção de identidade cultural para o Brasil teve, no 
            período romântico e com alguns escritores marcadamente 
            nacionalistas, o ponto alto da formação de uma consciência nacional 
            capaz de produzir uma literatura voltada para as nossas raízes. 
            Embora as matrizes culturais do Ocidente ditassem todas as normas e 
            procedimentos para toda a produção cultural das colônias, os 
            escritores brasileiros daquele período ostentavam uma cultura 
            européia e um sentimento nativista, que começou a se sobrepor aos 
            modos europeus e ganhou, com a representação desse sentimento, uma 
            face brasileira híbrida, mas estabelecendo diferenças que 
            caracterizavam uma nova cultura nos trópicos – a cultura brasileira.
            Para compreensão de um conceito de cultura brasileira, discutiremos 
            sumariamente a noção de cultura em geral. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                    
                      
                        
                          | O desenvolvimento cultural de uma 
                          sociedade, em dado momento de seu desenvolvimento 
                          econômico e social, deve expressar a qualidade das 
                          relações do homem com essa sociedade; isto é, o grau 
                          de autonomia do indivíduo, sua capacidade de situar-se 
                          no mundo, de comunicar-se com seus semelhantes e de 
                          participar melhor da sociedade, podendo, ao mesmo 
                          tempo, liberar-se. Nessa perspectiva se trata de optar 
                          por um certo número de valores individuais e coletivos 
                          que tornem o desenvolvimento cultural a finalidade das 
                          finalidades. (HERRERA, 1977: 1-2) | 
                         
                       
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Esta noção de atividade cultural está diretamente ligada à qualidade 
            de vida do homem. Entenda-se, por isto, qualquer atividade cultural 
            capaz de redimir o homem do estado de alienação imposto por um 
            sistema dominante, que priva o indivíduo de participar da construção 
            de sua própria nacionalidade  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Esse debate sobre cultura já se fazia em longínquos quatro séculos 
            antes de Cristo, quando Confúcio, pensador chinês, colocava que “a 
            natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos que os mantém 
            separados”.(CONFÚCIO, Apud LARAIA, 1986: 10) Esses hábitos são as 
            características que diferenciam povos e até mesmo grupos sociais e 
            comunidades de uma mesma cidade. Um exemplo típico pôde ser 
            constatado por Montaigne (1972) que, ao se deparar com três índios 
            antropófagos Tupinambás, comentou sobre seus hábitos canibalescos: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                    
                      
                        
                          | (...) na verdade, cada qual considera 
                          bárbaro o que não se pratica em sua terra. (...) Não 
                          me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de 
                          crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos 
                          não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que 
                          é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer 
                          depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre 
                          suplício e tormentos e o queimar aos poucos, ou 
                          entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e 
                          fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre 
                          vizinhos nossos conterrâneos. (1972: 107)  | 
                         
                       
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Vê-se, portanto, que civilidade e barbaridade são conceitos 
            diferentes tanto para civilizados quanto para bárbaros. Devemos, 
            então, compreender que estas distâncias conceituais são as 
            diferenças que caracterizam cada tipo de cultura. Elaboramos a 
            seguir um esquema para melhor situar a cultura brasileira em relação 
            a outras culturas matrizes e repositórios. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A Europa, detentora de história milenar, representa a matriz da 
            cultura hegemônica ocidental. Os Estados Unidos assimilaram a 
            cultura européia e redefiniram a sua cultura a partir das 
            influências recebidas e do desenvolvimento do seu poder 
            econômico/militar. Cada país tem o mesmo esquema em relação ao seu 
            microcosmo (regiões, estados, cidades, vilas etc.). 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            No Brasil, em diferentes períodos da história, várias regiões 
            disputaram a hegemonia cultural sobre as regiões intocadas e sobre 
            as regiões que iam perdendo o status econômico durante o processo 
            colonizatório.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O Brasil sempre esteve em distonia com o resto do mundo. Na época 
            inicial da colonização, o ensino jesuítico implantado pela Companhia 
            de Jesus reprimia a cultura indígena por ser profana aos olhos da 
            igreja. Quando na época em que o latim deixava de ser língua de 
            formação na Europa, dava-se início ao seu ensino no Brasil como 
            suporte da cultura do Velho Mundo, em detrimento da língua 
            portuguesa adaptada ao Novo Mundo, que enriquecia com a contribuição 
            do novo povo que nascia e da língua indígena. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Nos três primeiros séculos da nossa formação literária, observamos a 
            permanência dos valores estéticos europeus que enformavam os 
            escritores. Tivemos manifestações do medievalismo e do classicismo 
            português, do barroco e do arcadismo. Vale a pena chamar atenção 
            para um detalhe importante, Gregório de Mattos faz uma literatura 
            plena de valores estéticos e integrada a um sistema que substitui a 
            tríade de Antonio Candido – autor/obra/leitor – pela tríade 
            autor/obra/ouvinte/(e/ou leitor de manuscritos). Antonio Candido 
            apresenta uma proposta para essa questão ao observar que no processo 
            formativo da nossa literatura há dois blocos diferentes: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                    
                      
                        
                          | um, constituído por manifestações 
                          literárias ainda não inteiramente articuladas; outro, 
                          em que se esboça e depois se afirma esta articulação. 
                          O primeiro compreende sobretudo os escritores de 
                          diretriz cultista ou conceptista, presentes na Bahia, 
                          de meados do Século XVII a meados do Século XVIII; o 
                          segundo, os escritores neoclássicos ou arcádicos, os 
                          publicistas liberais, os próprios românticos, por 
                          ventura até o terceiro quartel do século XIX. Só então 
                          se pode considerar formada a nossa literatura, como 
                          sistema orgânico que funciona e é capaz de dar lugar a 
                          uma vida literária regular, servindo de base a obras 
                          ao mesmo tempo locais e universais. (CANDIDO, 1985: 
                          90) | 
                         
                       
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Embora se refira ao processo formativo das nossas letras, e na 
            perspectiva historicista de Candido tudo que não estiver integrado à 
            sua noção de sistema não é literatura, a obra de Gregório de Mattos 
            é representante de uma tradição formalizada pelo barroco e por uma 
            literatura já consolidada em Portugal e transplantada para o Brasil. 
            A rigor, uma literatura que represente um sistema integrado no 
            Brasil só será consolidada no modernismo. 
             
             
            Do didatismo catequético à criação literária 
            
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                    
                      
                        
                          | Os primeiros escritos da nossa vida 
                          documentam precisamente a instauração do processo: são 
                          informações que viajantes e missionários europeus 
                          colheram sobre a natureza e o homem brasileiro. 
                          Enquanto informação, não pertencem à categoria do 
                          literário, mas à pura crônica histórica e por isso, há 
                          quem as omita por escrúpulo estético (José Veríssimo, 
                          por exemplo, na sua História da literatura 
                          brasileira). No entanto, a pré-história das nossas 
                          letras interessa como reflexo da visão do mundo e da 
                          linguagem que nos legaram os primeiros observadores do 
                          país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem, do 
                          índio e dos grupos sociais nascentes, que captamos as 
                          condições primitivas de uma cultura que só mais tarde 
                          poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. (BOSI, 
                          1987: 15) | 
                         
                       
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Somente no Século 19, com a chegada da Família Real, é que foi 
            criado no Brasil um ambiente cultural compatível com a nova sede da 
            corte portuguesa. Criou-se a Imprensa Régia, a Biblioteca Nacional e 
            o ensino universitário, com pelo menos 300 anos de atraso em relação 
            ao resto da América que teve sua primeira universidade criada em 
            1531, em Lima, no Peru. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Esse atraso, mais que a ocultação da realidade mundial, era, também, 
            a implantação de um projeto deliberado de dependência cultural. O 
            Brasil era um país arcaico que se alimentava da obsolência do mundo 
            civilizado. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A integração/entregação do Brasil no cenário mundial começou na 
            abertura dos portos, possibilitando o intercâmbio comercial e 
            artístico com a vinda das missões artísticas estrangeiras. As 
            informações começaram a circular mais rapidamente e, com a criação 
            de jornais, eram veiculadas não só as notícias oficiais, de 
            interesses políticos restritos pela ideologia imperial, mas, 
            sobretudo, as notícias de um Brasil calado e na escuridão.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A propagação de jornais, mesmo de vida efêmera, contribuiu para 
            difusão de idéias revolucionárias entre os intelectuais desalinhados 
            com a política da corte. Surgiram os folhetins, versão ancestral das 
            novelas de TV, revelando a produção literária dos nossos escritores 
            e ampliando o público leitor/ ouvidor, o que antes era privilégio 
            apenas da classe alta. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A burguesia que chegara ao poder na Europa era ainda incipiente no 
            Brasil. O crescimento desta nova classe ficou mais acentuado depois 
            que a realeza aportou no Brasil. Era o momento de definição da nossa 
            nacionalidade. As lutas políticas pela Independência demonstravam a 
            insatisfação com o sistema de governo reinante e impulsionavam o 
            desejo de mudanças sociais. A arte que surgia rompia não só com o 
            passado mas, também, com a mentalidade política até aquele presente. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Enquanto colônia portuguesa recebíamos o que, de resto, eles nos 
            permitiam. Com a literatura não foi diferente. Até o Arcadismo, 
            seguíamos o modelo da corte, muitas vezes já reprodução da Europa 
            mais desenvolvida. Com o surgimento do romantismo brasileiro, o 
            culto do nacionalismo passou a representar a necessidade de ruptura 
            com todas as formas de opressão cultural.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A nacionalidade foi buscada através dos valores da terra. O homem 
            passa a se identificar com o que é nacional, com o sentimento íntimo 
            em relação ao meio e ao passado. O sentimento do povo é na 
            literatura romântica a maior expressão do instinto de nacionalidade. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O romantismo brasileiro representa uma tomada de consciência dos 
            escritores quanto à necessidade de afirmar uma diferença cultural do 
            colonizador, uma vez que a Independência política surgira há pouco e 
            o sentimento lusófobo tomava conta de grande parte dos intelectuais 
            que agora elegiam Paris e Londres como espelhos das modas culturais 
            do mundo civilizado. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O Brasil saía da condição de Colônia e passava a pertencer ao mesmo 
            universo cultural das nações independentes, não mais um mero 
            repositório de culturas, mas um mosaico de culturas que, na ânsia de 
            mostrar-se liberto, tentava fazer falar a voz nativa. Esse embate 
            entre a voz macaqueada do ex-colono e agora do homem político livre 
            revela o surgimento de uma identidade autóctone, embora dependente 
            culturalmente das matrizes culturais do Ocidente. 
             
            Literatura, identidade e nação 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Embalados pelo nacionalismo vigente, os românticos buscaram no índio 
            e na terra os elementos provedores da temática romântica nativista e 
            indianista. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Inserido num processo de ruptura desencadeado pelo nacionalismo 
            político, o nacionalismo de Alencar, expresso de forma manifestal em 
            sua obra crítica, é um momento consciente da resistência cultural 
            aos modelos europeus. Essa resistência se dá, de fato, pela 
            incorporação da diversidade cultural do colonizador à cultura 
            nativa, através da construção de um tecido cultural em que as 
            diferenças culturais não mais se antagonizam, mas se integram. O 
            saber cultivado oriundo da civilização pode ser inútil numa terra 
            selvagem onde predomina o saber natural. Mas aliados podem 
            representar um novo saber, uma nova cultura. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Todo esse processo de abrasileiramento da nossa cultura surgiu na 
            medida em que se ia tentando fundar uma literatura nossa, 
            desvinculada do pensamento da metrópole. Como exemplo temos o 
            projeto nacionalista de Alencar, que pretendia uma língua e uma 
            literatura representativa do nosso modo de viver. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Nos artigos a preocupação de José de Alencar é de afirmar a 
            diferença cultural entre Brasil e Portugal, através da língua e da 
            literatura de cada um. Ao mesmo tempo, Alencar se utilizava 
            conscientemente do modo de ver a tensão resultante dessas diferenças 
            para mostrar o caldeamento polilíngüe estabelecido pelo processo de 
            colonização. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            No prefácio a Sonhos d’Ouro [2] Alencar tenta vincular sua ação 
            literária à sua ação política, rebatendo as críticas sobre ele 
            publicadas na revista QUESTÕES DO DIA. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Sobre os escritores portugueses que sobre nós opinaram, o romancista 
            cearense assim se manifesta:  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                    
                      
                        
                          | Lá uns gênios de Portugal, 
                          compadecendo-se de nossa penúria, tomaram a si decidir 
                          o pleito, e decretaram que não temos, nem podemos ter 
                          literatura brasileira. (...) Este grande império, a 
                          quem a Providência rasga infindos horizontes, é uma 
                          nação oca; não tem poesia nativa, nem perfume seu; há 
                          de contentar-se com a manjerona, apesar de ali estarem 
                          recendendo na balsa a baunilha, o cacto e o sassafrás. | 
                         
                       
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            E, em relação à língua falada no Brasil, diz: “Nosso português deve 
            ser ainda mais cerrado, do que usam nossos irmãos de além-mar; e 
            sobretudo cumpre erriça-lo de hh e çç, para dar-lhe o aspecto de uma 
            mata-virgem”. Para estabelecer bem a diferença, Alencar pergunta: “O 
            povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, não pode 
            falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que 
            sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Através destas diferenciações Alencar demonstra que, embora a língua 
            seja uma só, as variantes dessa língua são produtos do ambiente e da 
            cor local de cada país. Nem colonizador nem colonizado, Alencar 
            pretendia fundar o Brasil a partir da literatura. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Em Como e por que sou romancista, o autor de Iracema 
            esclarece seu método de criação e sua relação com o conhecimento e 
            com a literatura. Neste ensaio autobiográfico, percebe-se um 
            mergulho profundo nas raízes da nossa literatura através da 
            compreensão que Alencar tem da sua poética e da natureza do processo 
            criativo da literatura brasileira.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Tanto nos romances históricos como nos indianistas e urbanos, 
            Alencar percebe as contradições culturais brasileiras e procura 
            sistematizá-las através de um plano de escrever na perspectiva de 
            uma linguagem brasileira. Ora, sabemos que o desdobramento 
            ideológico de uma língua ocorre pela diversidade cultural do seu 
            falante. E essa diferenciação que Alencar pretendia mostrar entre a 
            linguagem portuguesa e a linguagem brasileira tupiniquim era 
            decorrente de sua proposta de abrasileiramento da língua, portanto 
            ideológica. A antítese de Alencar em relação à linguagem portuguesa 
            aparece com mais ênfase e de forma programática nos seus artigos e 
            nos prefácios e posfácios de seus livros. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O romancista, diante de sua cultura, elabora em sua obra um discurso 
            pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal. Como representante de 
            uma cultura, cria uma ponte de ligação entre as diversas culturas 
            que se entremeiam à sua. Alencar elabora de maneira consciente um 
            projeto literário que pretende dar uma dimensão da grandeza do 
            Brasil. A fisionomia literária asseguraria uma diferença marcante em 
            relação à cultura estrangeira, estabeleceria uma diferença mais que 
            política, porque vinculava a literatura a um modo de ser do 
            brasileiro. Os costumes, o espaço geográfico, os pormenores da 
            história estariam agregados de forma identitária na literatura. A 
            formação da nação para os românticos e especialmente para Alencar 
            estava definida pela literatura. 
             
             
            *Poeta e ficcionista, Professor de Literatura da UFCG 
            e Doutorando em Literatura e Cultura na UFPB, Editor da Revista 
            ACAUÃ. 
             
             
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            Notas: 
             
            [1] Defendido como parte de sua teoria 
            sobre a literatura brasileira em “A literatura como fator de 
            nacionalização brasileira”, publicado na Revista Tempo Brasileiro 
            33/34, p. 24-46 
             
            [2] ALENCAR, José de. 
            Sonhos d’ouro. 
            São Paulo: Ática, 1981. P. 7-12. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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