José Castello
Jornalista se considera o último
herdeiro
de um padrão que se perdeu no Brasil
O paulista Wilson Martins, de 73 anos, radicado em Curitiba, pode
ser considerado, sem risco de exagero, o último grande crítico
literário brasileiro. Vivendo novamente em Curitiba (cidade para
onde sua família mudou em 1930, quando ele tinha apenas 9 anos), ele
permanece sintonizado com a produção literária brasileira
contemporânea. E, acertando ou errando, continua a exibir imensa
coragem intelectual, atributo que o leva a fazer afirmações
contundentes como, por exemplo, a de que o romance Estorvo, de Chico
Buarque, não passa de uma imitação lamentável do Zero, de Ignácio de
Loyola Brandão, e a dizer que o País precisa aprender a respeitar um
autor sempre desmerecido pelas publicações literárias, como Paulo
Coelho.
Ele transferiu sua coluna literária do Jornal do Brasil para O
Globo. O décimo-primeiro volume de seu Pontos de Vista chegou às
livrarias pouco antes do Natal. Mais dois volumes, que reúnem
críticas literárias publicadas na imprensa até 1994, serão lançados
este ano.
Caderno 2 - Você é o último crítico literário
brasileiro?
Wilson Martins - Provavelmente, sim. Eu me formei numa tradição que
praticamente desapareceu, a do jornalismo literário francês.
Costumam dizer, de fato, que no Brasil eu sou o último dessa raça.
Deve ser verdade. Venho de um tempo em que todos os grandes jornais
tinham o seu rodapé literário, cada um com seu crítico titular, com
a obrigação de comentar e avaliar com regularidade a produção
literária contemporânea. Esse padrão predominou, no Brasil, até os
anos 50. Depois, começou a desaparecer.
Caderno 2 - Por quê?
Martins - A morte da crítica literária no Brasil é uma conseqüência
do aparecimento de um novo jornalismo, infuenciado pelo estilo
americano. Devo lembrar que morei quase 30 anos em Nova York e,
portanto, tenho autoridade para falar do assunto. Os jornais
americanos, há muito tempo, não têm mais críticos literários. Eles
foram substituídos pelos resenhistas. As editoras mandam seus
lançamentos diretamente para os editores dos jornais, que, sem
muitos críticos, saem à procura de autores de resenhas. Hoje,
exagerando um pouco, pode-se pensar que qualquer um pode escrever
sobre qualquer livro. Há, é verdade, um bom número de professores
universitários gabaritados que se tornaram resenhistas literários.
Mas eles já não escrevem mais crítica literária. Nos EUA, se você
deseja ler artigos de fôlego, deve comprar o New York Review of
Books.
Caderno 2 - O que aconteceu com a crítica
literária?
Martins - Sua morte, lenta, pode ser atribuída a várias razões.
Devemos pensar, primeiro, nos próprios críticos. Nas faculdades de
letras, a crítica tradicional, de estilo oitocentista, começou a
perder terreno a partir dos anos 60 para o estruturalismo e para a
nova crítica. Isso trouxe graves conseqüências para toda uma geração
de especialistas em literatura. Os estruturalistas fazem teoria pela
teoria. Perdem-se em suas elaborações intelectuais, em seus esquemas
cifrados e deixam as obras em segundo plano.
Caderno 2 - E o que se passou na imprensa?
Martins - Nos jornais, propagou- se com rapidez a idéia de que a
crítica literária não tem mais importância e o importante, agora, é
a resenha literária. Ora, a resenha não tem pretensão crítica, ela é
apenas um instrumento de apresentação e de divulgação do livro. De
fato, a resenha serve muito mais à publicidade dos livros do que a
crítica. Essa nova realidade agradou aos editores, que passaram a
ter publicidade farta e, mais que isso, gratuita. Basta ver como é
pequena a publicidade paga nas páginas literárias. Agradou, também,
aos donos de jornais, que, com os cadernos de resenhas, passaram a
ter um novo produto barato e de forte apelo. E agradou ainda aos
estudantes de letras e aos professores menos experientes, que
passaram a ter espaço para escrever e ainda encontraram uma forma de
ganhar alguns trocados.
Caderno 2 - Não há mais espaço para críticos
no velho estilo?
Martins - Penso que eu sou o último crítico formado nessa tradição
francesa, que procura conciliar a atualidade com o rigor. Críticos
não se limitam a resumir os livros, a vendê-los, mas dizem se eles
são bons ou ruins e põem suas cabeças a prêmio quando se arriscam a
dizer por quê. É claro que, muitas vezes, os críticos erram, pois o
erro faz parte de qualquer jogo. Mas, ao contrário dos resenhistas,
os críticos se arriscam. Por isso eles devem ter, obrigatoriamente,
um arsenal teórico para iluminar seus objetos. Já dos resenhistas
não se exige aparato teórico algum. Quanto aos novos críticos,
formados na onda estruturalista, eles se fecham em seus guetos
intelectuais e passaram a falar entre si, esquecendo-se das obras.
Nas universidades, os alunos não lêem mais as obras literárias, lêem
as críticas. Os próprios escritores passaram a escrever, em muitos
casos, para agradar a seus críticos. E a crítica fica felicíssima,
porque a obra passa a ser, apenas, uma confirmação de suas teorias.
Essa, infelizmente, é a fisionomia da crítica literária brasileira
nos últimos 30 anos.
Caderno 2 - Não se esboça nenhuma reação?
Martins - Nos últimos quatro ou cinco anos, nas universidades
brasileiras, parece se anunciar uma reação a esse culto da teoria
pela teoria. A verdade é que essa onda da teorização se esgotou e
está na hora de voltarmos aos estudos clássicos da crítica
literária. A ênfase na teoria criou, porém, uma espécie de vazio
intelectual. Os estruturalistas não se interessam por nada que
esteja fora de suas teorias. Só agora se começa a substituir o
estudo da literatura isoladamente pelo estudo dos contextos
culturais em que ela aparece. É exatamente isso o que fiz na
História da Inteligência Brasileira; por isso é história da
inteligência, e não história da literatura. Acho que essa tendência,
que começa a reaparecer, é muito interessante. Na juventude, eu
estudei Direito. Há um provérbio que aprendi na faculdade de que
gosto muito e merece ser citado: "Quem sabe só Direito, não sabe nem
Direito". Eu tocaria, apenas, a palavra Direito por literartura.
"Quem sabe só literatura, não sabe nem literatura". No contexto
terior, os escritores escreviam para os críticos e os críticos
escreviam para eles mesmos. Havia um enorme vazio, que agora começa
a ser preenchido.
Caderno 2 - Quais são as grandes novidades da
literatura brasileira contemporânea?
Martins - Não há grandes mudanças de enfoque e de concepção em nossa
literatura. O mais importante talvez seja o enfraquecimento evidente
do regionalismo. Nossa tendência sempre foi regionalista, mas agora
ela está desaparecendo em favor de uma visão mais universal. Os
poetas de hoje não têm mais a visão regionalista que tinham, por
exemplo, os poetas do modernismo. Eles deixaram as questões locais
de lado e passaram a tratar os grandes temas humanos. Na ficção,
ainda que em menor intensidade, essa mudança também pode ser
detectada. Veja um escritor como o gaúcho Assis Brasil. Ele está
escrevendo uma verdadeira história social do Rio Grande do Sul, mas
rompe com a tradição porque não se detém em um enfoque puramente
regionalista. O mesmo se passa, aqui no Paraná, com um romancista
como Cristóvão Tezza. Romances como Trapo e o recém-lançado Uma
Noite em Curitiba são excelentes exemplos dessa mudança de rumo em
nossa produção contemporânea. Tezza dá um passo além em relação ao
que fazia, por exemplo, um Érico Veríssimo. Mas isso não ocorre
apenas aqui no Sul. A literatura brasileira, como um todo, está se
abrindo para um enfoque mais universal. E isso é muito bom.
Caderno 2 - Não há renovação na crítica
literária?
Martins - Infelizmente, não. Ainda não surgiu uma geração que
substituísse aquela de Tristão de Ataíde, Antonio Candido, Álvaro
Lins. Continuamos esperando. Há, sim, os resenhistas. Mas a resenha,
por mais bem feita que seja, é sempre um trabalho de vulgarização, e
não de análise. A resenha tem um caráter noticioso, enquanto o
caráter da crítica literária é judicativo, isto é, o que define a
crítica é o poder de julgar. O leitor da resenha quer ser informado;
o leitor da crítica quer ser obrigado a pensar.
Caderno 2 - Os escritores contemporâneos
conseguem pensar em si mesmos?
Martins - Eu sou um otimista. Depois da morte de Drummond, as
pessoas se sentiram tão solitárias que parecia que a literatura
brasileira ia acabar. Mas não era nada disso. Surgiram grandes
poetas como Afonso Romano de Sant'Anna e Ivan Junqueira, que estão
um passo além de Drummond, no sentido de que escrevem uma poesia
universal. Afonso escreveu, por exemplo, um longo poema sobre a
catedral de Estrasburgo. Quem poderia pensar em algo assim algum
tempo atrás? Na ficção, essa tendência universalizante não é tão
forte, mas existem importantes esforços individuais.
Caderno 2 - O que você pensa da onda de
biografias brasileiras?
Martins - A produção, em geral, é boa. Nossos biógrafos acertaram a
mão, sobretudo, no que diz respeito à qualidade das pesquisas. Até
pouco tempo, os biógrafos brasileiros se contentavam em trabalhar a
partir de duas ou três informações. Eram preguiçosos. Agora não,
existe uma ênfase na pesquisa longa, no trabalho ousado, e aqui nós
somos obrigados a agradecer a influência dos americanos. Na
literatura brasileira, em geral, há uma tendência de volta daquilo
que os estruturalistas chamavam, pejorativamente, de "historicismo".
Mas não é historicismo, é simplesmente um esforço de estudo da
história intelectual.
Caderno 2 - As listas de mais vendidos
proliferaram nos suplementos culturais da imprensa brasileira e,
hoje, ditam o gosto do leitor. Como você as avalia?
Martins - Essa tendência a cultuar os best sellers é péssima. O que
está havendo no Brasil, nos últimos anos, é a tradução
indiscrimianda de livros que não têm nenhum interesse literário.
Sobretudo, desses romances americanos que só se baseiam no enredo,
só pensam na ação. São livros que, literariamente, não têm valor
algum. É a literatura de distração. Não há mal nenhum nela, devo
dizer; mas ela não pode ocupar o espaço que deve ser destinado aos
grandes autores. Há, também, essa literatura de qualidade duvidosa
que se baseia na auto- ajuda e no misticismo. Os livros de
auto-ajuda são enganadores, porque só iludem o leitor. Os livros de
misticismo, por sua vez, agravam a tendência mística dos
brasileiros, que é maléfica. O brasileiro está sempre esperando que
seus problemas sejam resolvidos pelo sobrenatural. Há uma crença
nacional no milagre, que só vem reforçar nossa tendência à evasão. É
com essa crença que a literatura mística trabalha.
Caderno 2 - Você leu O Xangô de Baker Street,
de Jô Soares? Leu Benjamin, de Chico Buarque? O que achou?
Martins - Não li nenhum dos dois. Mas acredito sinceramente que o
sucesso desses livros resulta menos de sua qualidade literária e
mais da fama de seus autores, de seu prestígio na mídia. Jô Soares e
Chico Buarque podem escrever qualquer coisa, que serão sempre lidos.
Eles, a rigor, não podem sequer serem considerados escritores
profissionais. E também, é bom que se diga, não se espera que seus
livros revolucionem literatura alguma. Posso falar de Chico Buarque,
de quem já li Fazenda Modelo e Estorvo. Fazenda Modelo é apenas um
recozimento de Family Farm, de Georges Orwell. Estorvo, por sua vez,
é o recozimento de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, que aliás é
um livro bem mais interessante. A relação entre Estorvo e Zero é tão
escandalosa que me espanta como,na época do lançamento de Estorvo,
nenhum resenhista tenha a ela se referido. É a mesma temática e,
muitas vezes, apresenta os mesmos episódios. Chico Buarque é um
grande músico, mas como escritor é apenas um autor de segundo
cozimento. Ainda não li Benjamin, mas estou curioso para ver de onde
ele o tirou. Não creio, sinceramente, que Chico Buarque tenha muito
futuro como escritor.
Caderno 2 - O que você pensa de um autor como
Paulo Coelho?
Martins - Grande parte de seu sucesso, é verdade, não passa de um
efeito de marketing. Mas não se pode reduzir as coisas a isso. Seus
livros respondem a uma necessidade espiritual, que não é apenas
brasileira, mas universal, tanto que seus romances se tornam sucesso
de venda em todas as partes do planeta. Paulo Coelho é autor de uma
literatura que não faz pensar, ela apenas confirma aquilo de que os
leitores já estavam convencidos antes de abrir o livro. Todos os
livros de misticismo vendem muito bem. Paulo Coelho talvez tenha
estourado por ter sido o pioneiro. Além disso, ele era roqueiro e
parceiro de Raul Seixas. E, se você ouvir com cuidado, verá que a
música de Raul Seixas é um pouco simétrica à literatura de Paulo
Coelho. Os livros de Paulo Coelho nos dão sempre a impressão de que
ele possui um segredo que não pode ser comunicado a ninguém. Mas
você não pode entender a literatura de um país sem levar em conta
fenômenos como ele. O Brasil é Rui Barbosa, é Euclides da Cunha, mas
é também Paulo Coelho. Não podemos desprezá-lo como algo
insignificante. Não sou leitor de seus livros nem seu admirador, mas
ele deve ser aceito como um dado da vida brasileira contemporânea.
Ele não acrescentou absolutamente nada à nossa vida intelectual; mas
abriu uma janela mística na qual muitas pessoas se espelham. Não
devemos desdenhá- lo. Paulo Coelho é um fenômeno muito brasileiro.
Caderno 2 - O que você pensa da nova geração
de críticos que está hoje na maturidade e inclui nomes como Silviano
Santiago, Flora Sussekind e Luís Costa Lima?
Martins - São nomes, sem dúvida, de primeiríssima qualidade, que
conseguiram escapar desse período negro regido pela teoria pura, e
prosseguiram intactos com suas obras. Mas aqui deve ser feita uma
distinção: nenhum deles é, a rigor, crítico literário. Silviano,
Flora, Costa Lima são, na verdade, ensaístas literários, e não
críticos. Voltamos aqui ao início de nossa conversa. O crítico é o
sujeito que escreve sobre a literatura corrente e que se expõe no
fogo nas novidades. Ele põe seu pescoço à prova, expõe suas opiniões
e pode acertar ou errar. São célebres os grandes erros cometidos por
críticos de prestígio; eles são, apenas, o ônus da profissão. O
ensaísta literário, ao contrário, escreve sobre os grandes autores
do passado, sobre as grandes tendências. Não fazem, a rigor, crítica
literária. Você não pode, hoje, fazer a crítica de uma peça de
Shakespeare, ou de um romance de Thomas Mann. Esses autores estão
acima da crítica, acima das considerações a respeito do bom e do
ruim. Eles se tornam, apenas, bjetos de ensaio literário. O ensaísta
pode repensar os grandes temas, retraçar as grandes linhas, mas não
vai escrever para dizer se tal romance de Machado, ou de Faulkner, é
bom ou ruim. Hoje temos, de um lado, os ensaístas preocupados com o
passado; de outro os resenhistas voltados para o presente imediato.
Críticos, mesmo, não temos mais.
Caderno 2 - O desaparecimento das revistas
literárias é causa ou efeito desse quadro?
Martins - As duas coisas estão ligadas. O lugar do ensaísta é a
revista literária. Mas, se elas não existem mais, ele se volta para
a imprensa diária. A diferença entre o crítico e o ensaísta é
simétrica a distância que separa um corredor de 100 metros rasos de
um maratonista. O ensaísta é o corredor de maratona. Já o crítico,
se não é um corredor de 100 metros rasos, é pelo menos um atleta dos
400 metros com barreiras. Mas, para o leitor comum, os dois
personagens, crítico e ensaísta, estão hoje confundidos. A imprensa
literária alimenta essa confusão.
Caderno 2 - A que você atribui o
desaparecimento das revistas literárias? Não há mais lugar para
elas?
Martins - Esse não é um fenômeno apenas brasileiro. Nos EUA, hoje,
temos apenas a New York Review of Books. Na França, de importante
mesmo só o Magazine Littéraire. Mesmo os países mais adiantados têm,
hoje, apenas uma grande revista. Há, ainda, as revistas
universitárias, mas elas aparecem apenas uma ou duas vezes por ano.
E, se você pega uma revista inglesa, ela só trata de Shakespeare,
das Bronte e de Bernard Shaw. As francesas só se interessam por
Racine, Corneille e Rabelais. Há, em geral, uma grande repulsa ao
presente. Por isso não há crítica.
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