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JOsé Castello




Flora Süssekind analisa críticos e autores
 



Para ela, as avaliações da produção cultural carecem de perspectiva histórica.



 

Nem tudo está perdido na crítica literária brasileira. Quem desejar um pouco de esperança deve ler, logo, os vigorosos ensaios da carioca Flora Süssekind, uma das mais brilhantes críticasde literatura da nova geração. Flora é uma intelectual incansável. No ano passado, publicou pela editora Sette Letras o ensaio Até Segunda Ordem Não Me Risque Nada, sobre os cadernos, os rascunhos e a poesia de Ana Cristina César.

Trabalhou também, com o rigor de sempre, na preparação da reedição das Memórias do Sobrinho de Meu Tio, de Joaquim Manuel de Macedo, editada pela Companhia das Letras, que faz parte de um amplo projeto de pesquisa sobre a época romântica brasileira. Flora retornou, também, à militância literária na imprensa, ao se tornar comentarista de livros do suplemento Idéias, do Jornal do Brasil. Concluiu, por fim, um livro de ensaios sobre o romantismo brasileiro, que tem o título provisório de Cenas de Fundação e, ainda sem editora definida, pretende publicá-lo ao longo deste ano.

Mas a agenda de Flora já está cheia até o final de 1996. Para começar, seu ensaio O Cinematógrafo de Letras, publicado em 1987 pela Companhia das Letras, está sendo traduzido para o inglês e tem edição programada para este ano pela Universidade de Stanford, EUA. Em abril, ela deve ser uma das conferencistas, em solenidade na Universidade de Berkeley, na Califórnia, de uma importante homenagem ao professor e crítico paulista Antonio Candido.

Como pesquisadora contratada do setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Flora Süssekind está preparando, em parceria com Júlio Castañon Guimarães, a reedição dos Romances da Semana, do mesmo Macedo. Flora é, apesar de prestígio intelectual precoce e da vida acadêmica agitada, uma mulher serena e tímida, que seleciona os amigos com muito rigor e odeia o excesso de exposição. "Gosto mesmo é daquela mesa no setor de filologia na Casa de Rui, do chá de jasmim com o Júlio, de ler todos os jornais possíveis, para falar mal ou bem com três ou quatro pessoas", diz. "Não preciso de muito mais que isso."

Flora Süssekind é uma pesquisadora de posições sempre substantivas, baseadas em amplo lastro cultural e em uma preocupação extrema com o rigor. Por isso vale sempre a pena ouvi-la. Nessa entrevista, ela nos fala do jornalismo cultural brasileiro, da produção literária contemporânea e sobre o destino de nossa crítica, que ela representa com tanto vigor.

Estado - Que avaliação você faz do jornalismo cultural brasileiro de hoje?

Flora Süssekind - Não só nas seções dedicadas a livros e espetáculos, mas nos jornais brasileiros como um todo, o gênero dominante hoje é a coluna social. É um gênero modelar em todas as áreas, diferenciando-se apenas os personagens e os temas enfocados. Essa situação vem se anunciando desde o período militar, quando as colunas ganharam força como lugares em que se plantavam, anonimamente, notas e em que "informantes", como os de polícia, se tornaram muitas vezes mais importantes que os repórteres. Não é à toa que, nos anos 70, essas seções serviram, muitas vezes, de porta-vozes oficiosos para os meios militares. Sua popularização se associa, também, a uma preocupante ligação da atividade jornalística ao marketing e a um evidente empobrecimento cultural das classes médias, um público consumidor, mas não leitor, porque é incapaz de se concentrar em textos mais longos ou mais analíticos. A diagramação, por vezes, até mesmo transforma os segundos cadernos em simples extensões das colunas sociais, em geral asmesmas de jornal para jornal, e com fotos apenas ilustrativas. O mais grave é que só o que parece passível de venda imediata, de marketing, se torna noticiável. A cultura é vista como objeto de divulgação, não de reflexão. Daí não ser de estranhar a rarefação, talvez mesmo a impossibilidade, de algo sequer próximo da crítica cultural.

Estado - E o que se entende aí por cultura?

Flora - Os melhores suplementos culturais da imprensa brasileira - o Suplemento Dominical, do Jornal do Brasil, o Cultura, do Estado, nos anos 50, e o Folhetim, da Folha de S. Paulo, na virada dos anos 70 - tinham uma visão globalizante da produção cultural, procuravam colocar em relação articulistas de áreas diferentes e atividades culturais diversas. Isso é o contrário do que se vê hoje, com um dia para os discos, outro para o cinema, outro para livros, cada coisa numa prateleira própria, intransitiva. Outro dado curioso é que só o que está para ser lançado ou em cartaz pode ser tematizado. Ou então, o que acaba de morrer, fazer cem anos, ou coisa assim. Não se enxerga sequer o passado recente. Daí ser impossível comparar, detectar tendências ou reviravoltas. Tudo é ou boom ou crise. Sem perspectiva histórica não se consegue enxergar o que realmente singulariza o presente. Nesse sentido, seria fundamental reler uma seção como a Poesia Experiência, do Mário Faustino, nos anos 50. Com seu interesse simultneo em reavaliar a tradição literária e comprender a contemporaneidade, em meio a uma diagramação fantástica, fragmentária, sem hierarquizações na página, multiplicando a perspectiva de leitura.

Estado - Por que os críticos literários brasileiros, hoje, evitam um confronto direto com a produção contemporânea? Não são eles, em certa medida, responsáveis pela crise do jornalismo literário e pela separação entre crítica e leitor?

Flora - É, de fato, dificílima a análise do que nos é contemporâneo. Somos todos, artistas e críticos, parte de um mesmo período de tempo, convivemos com as tensões que o compõem e respondemos a elas sem que se possa prever o que resultará dessas respostas. Um grande crítico, no entanto, se define pela capacidade de compreensão do seu tempo. Lembre-se, nesse sentido, a avaliação do surrealismo, ou do trabalho de Brecht, por Walter Benjamin. Lembre-se a importância da leitura de Antonio Candido de seus contemporâneos João Cabral, Graciliano Ramos ou do memorialismo de Pedro Nava. Ou a crítica, via carta, da poesia de Drummond por Mário de Andrade. Ou a compreensão, de cara, por Augusto de Campos, da importância de Caetano Veloso, ou por Haroldo de Campos, do trabalho de Gerald Thomas.

Estado - O refúgio na universidade não significa uma opção pela torre de marfim? Por que a dificuldade da crítica em assinar avaliações objetivas, dizer com clareza "isso é bom", ou "não é bom"?

Flora - Às vezes o diálogo com o contemporâneo não é assim tão direto. E é por meio da análise de um outro período que se fala do próprio tempo. Um pouco como fez Paulo Leminski em Catatau, ao tratar do exílio interno por meio da figura de Descartes perdido no Brasil holandês, ou Silviano Santiago no romance Em Liberdade, tematizando Cláudio Manuel da Costa e Graciliano Ramos, mas também, indiretamente, o Brasil do período da distensão política. Ou, pensando em termos de crítica literária, quando Antonio Candido escreveu sobre Sílvio Romero, por exemplo, estava também redefinindo, para sua geração, o exercício da crítica literária. Quando Luís Costa Lima estuda a "mimesis", parece repensar igualmente os critérios de avaliação estética numa cultura dependente como a latino-americana. Quando Roberto Schwarz estuda o século 19, também procura dialogar com a prosa brasileira atual e direcioná-la para um realismo crítico como o que define no final do seu segundo livro sobre Machado de Assis. Silviano Santiago, uando estuda Mário de Andrade, parece procurar definir também o próprio perfil intelectual. E Walnice Nogueira Galvão, em No Calor da Hora, empreende não só um estudo sobre Canudos, mas uma genealogia da notícia, das exclusões, do processo contraditório de construção de um acontecimento, fundamental para a discussão da escrita histórica no Brasil.

Estado - O que define a literatura brasileira dos anos 90?

Flora - Um aspecto que me parece marcar a literatura brasileira desde fins dos anos 80 é uma tentativa de redimensionamento textual da temporalidade. No campo da poesia, pelo trabalho com a série, como faz Carlito Azevedo em As Banhistas, com o poema longo, como faz Haroldo de Campos no Finismundo e, de modo bem diferente, Bernardo de Mendonça em O Livro Diverso, com a retomada do poema em prosa, realizada, dentre outros, por Sebastião Uchoa Leite e José Paulo Paes. No campo teatral, por uma reflexão sistemática em torno da narratividade, como nos últimos trabalhos de Gerald Thomas, Antunes Filho, Luiz Arthur Nunes. Ou na preocupação com o aproveitamento teatral do monólogo interior tematizada, via Jorge Andrade, Nélson Rodrigues e Oduvaldo Vianna Filho, por Eduardo Tolentino de Araújo nas montagens mais recentes do Grupo Tapa. E, no terreno do romance, de modo bem mais acanhado, com uma retomada do romance histórico que, em vez de alargar e problematizar a compreensão temporal, tem congelado períodos e prsonagens em cacoetes, citações e descrições de época, sem maiores conquistas formais. O que não seria impossível. Basta lembrar que livros como Orlando, de Virginia Woolf, e A Morte de Virgílio, de Hermann Broch, são também romances históricos.

Estado - Quais são os autores esquecidos na literatura brasileira nesse fim de século?

Flora - Pensando em contistas, há o Samuel Rawet, de quem quase não se fala mais. Na poesia, o Joaquim Cardoso, por exemplo. Há o Marques Rebelo, que tem sido pouco estudado. Há, no romantismo, figuras como as de Luís Gama e Laurindo Rabelo. E, pensando em gente viva, o caso, a meu ver inexplicável, de um autor da qualidade de Valêncio Xavier, com textos excelentes, como O Mês da Gripe e O Mistério da Prostituta Japonesa, que não tiveram até hoje edições com tiragem comercial.

Estado - O conto não tem hoje, no Brasil, o mesmo prestígio que teve, por exemplo, nos anos 70. Grande parte da geração de contistas dos 70 decidiu, nos 80, partir para o romance. Essa foi uma boa opção?

Flora - Creio que essa troca, nos anos 80, ocorreu em parte por exigências mercadológicas. Acabaram as revistas e os jornais alternativos que veiculavam esses contos e, além disso, os romances interessam mais às editoras, melhor ainda se mais extensos, porque sobem assim os preços dos livros. Por outro lado, essa mudança parece obedecer a uma persistente hierarquização entre os gêneros que coloca ainda hoje, no Brasil, o romance no tipo das realizações literárias possíveis. Hierarquização explicável pelo desejo épico que tem marcado a literatura brasileira desde o romantismo, desejo de um texto fundador da nacionalidade em que tem mergulhado e naufragado de Gonçalves Magalhães a João Ubaldo Ribeiro.

Estado - A troca do conto pelo romance foi, então, um fracasso?

Flora - Não necessariamente. Esse alargamento da extensão da narrativa de ficção corresponde, muitas vezes, a exigências do próprio material com que se está trabalhando e a experiências formais peculiares a certos ecritores. Caio Fernando Abreu, por exemplo, em Onde Andará Dulce Veiga?, não escolhe à toa Marques Rebelo, marcadamente urbano e, como ele, contista e romancista, como interlocutor. Por meio da retomada da Dulce Veiga de A Estrela Sobe, ele trata, sobretudo, do processo de caracterização do personagem no romance. Já João Gilberto Noll, que passa dos contos de O Cego e a Dançarina para uma série de romances de extensão variada, do longo A Fúria do Corpo ao brevíssimo Rastros de Verão, faz uma indagação sobre o esgotamento da voz narrativa que parece orientar, paradoxalmente, essa ampliação da sua duração. Já Dalton Trevisan, no romance A Polanquinha, procura conjugar corte e extensão, numa sucessão de capítulos curtíssimos, sintetizados, por fim, numa mini-história quase autônoma com que parece etornar ao conto.

Estado - Na perspectiva da massa de leitores, a ficção brasileira dos anos 80 parece ter afunilado no nome de José Rubem Fonseca. Acho, como muita gente, que ele é muito melhor contista que romancista. Você concorda com essa avaliação?

Flora - No caso de Rubem Fonseca, um escritor que associou com muita inteligência, em seus contos, brutalidade temática e concisão narrativa, o que me parece distinguir contista e romancista é o grau de experimentação que ele se permite nos dois gêneros. Veja-se seu livro de contos mais recente, O Buraco na Parede, que ele transforma numa espécie de estudo do uso da primeira pessoa em ritmos narrativos diversos. Ora em textos de certa extensão, como o que dá nome ao livro, em que diálogos narrados quebram, se desdobram de uma única voz dominante; ora num monólogo curtíssimo, sem desdobramentos, e muito bom, como Orgulho. Não há exercícios dessa qualidade nos romances

Estado - Os romances de Rubem Fonseca são ruins?

Flora - É preciso distinguir O Caso Morel, A Grande Arte e Bufo & Spallanzani de Agosto e O Selvagem da Ópera. Os dois últimos, a meu ver, são empreendimentos sobretudo comerciais, obedecendo à voga dos romances históricos e biografias romanceadas. Nos outros, porém, o modelo tradicional do romance policial parece ter servido mais de amarra, de sustentação para a maior extensão da narrativa, para o prolongamento da ação, do que de horizonte crítico, cujas possibilidades expressivas poderiam ser tensionadas a cada reatualização. Como fazem Peter Handke, em textos como O Chinês da Dor ou O Medo do Goleiro, e Paul Auster, no diálogo com Poe que orienta sua Trilogia de Nova York. E como fez belissimamente Graciliano Ramos ao relacionar crime e confissão em Angústia, patamar a partir do qual se deveria discutir a literatura brasileira recente de temática criminal.

 



Leia a obra de Flora Süssekind


 

 

 

 

30/05/2005