Flora Süssekind
abicasaderuy@frb.br
Rua São Clemente, 134
Casa de Ruy Barbosa 
22.260-000 - Rio de Janeiro, RJ 

Ensaios :
    1. Galáxias’ e a seqüência poética moderna
    2. A poesia de Dora Ribeiro
    3. Escalas e Ventríloquos
    4. O real da poesia (Francisco Alvin)

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O real da poesia


Em seu novo livro, "Elefante", 
o poeta Francisco Alvim intensifica o diálogo com a obra de Drummond 


por Flora Süssekind
(Folha de São Paulo, Caderno Mais!,
19.11.2000)

A começar pela referência explícita, no título em duplicata, ao Drummond de um poema como "O Elefante" e a um livro como "A Rosa do Povo", marcados pela tensão entre o comprometimento com o tempo presente e a investigação metalinguística, é também sob o signo de uma dúvida estética intensificada -"qual o real da poesia?"-, de uma orientação obrigatoriamente dupla (entre o descritivo e o reflexivo, entre fora e dentro, entre ver e ouvir), de uma autodesconfiança constitutiva a um processo verbal marcado pela despersonalização, pelo inacabamento e pelo elíptico que se define a experiência poética -e que o poeta parece reavaliar a própria trajetória- no belo livro novo de Francisco Alvim. Não que a referência seja nova, pois há um nítido rastro drummoniano em toda a sua poesia até agora. Dele são exemplares desde a visão paterna em "Oráculo", a procura da poesia em "Subsolo", a repartição pública em "Inventário", as gentes da fazenda, os ossos da tia-avó, a memória familiar, motivos todo-poderosos, mas submetidos a violenta compressão, em "Amostra Grátis", de "Sol dos Cegos" (1968), seu primeiro livro, até o "olhar/ em fuga" (à maneira da "vida, em sua fuga", de "Ciência", de Drummond), o "roguei não roguei", a "fala, não fala" (à maneira dos "beija não beija", "vi não vi", "briga perdoa", do primeiro Drummond), presentes num livro reunindo textos de 20 anos depois, como "Corpo Fora" (1988). Mas no recém-publicado "Elefante" não é como referência, mas como núcleo estrutural do livro, que se intensifica o diálogo com a obra drummoniana, processo de que são diretamente representativos textos, não à toa impressos em sequência, como o que dá título ao livro e "Poema", dedicado a Drummond. E, se em "O Elefante" Drummond tratava das tensões internas e externas constitutivas do processo poético, da fragilidade do seu "pobre elefante", imponente e frágil, desastrado e tocante, construído e dissolvido ao longo do texto, imagem-poema "minada internamente por suas próprias contradições" e "externamente pela incredulidade e pelo ceticismo do mundo", como assinala Iumna Simon em "Drummond - Uma Poética do Risco", Francisco Alvim faz, em "Elefante", uma espécie de poema-apóstrofe, no qual o animal passa de figura a interlocutor mudo, mas de uma descrição pautada e cindida, toda ela, por contradições como as que estruturam o poema de Drummond. E que incluem desde as imagens de um ar feito de carne, um firmamento que fica dentro, um brilho que reverbera, às tensões entre aberturas e fechamentos, claros e escuros vocálicos, entre o macio e o bélico, o prosaico da carne e do corpo e o escudo épico, a erotização (a intumescência, o ventre) e a abstratização (distância, tempo, ar) e entre atropelamentos e corrosões internas e um "a tua volta" no qual "tudo canta", "tudo desconhece". 

Cisão e incorporação 
Tensões que sublinham simultaneamente as cisões e incorporações entre dentro e fora, longe e perto, poema e mundo, que percorrem todo o livro de Francisco Alvim. E que dão ao seu "Poema" matéria (ar escuro, sombra), constituição contraditória ("luz de dentro/ Fora") e princípio figurativos (a imagem voco-visual e a imagem semântica) em disjunção ("uma coluna sonora" e a multiplicação das "sombras no mundo", "sombras das sombras" em refração) à maneira dos que compõem o "Elefante". Não é de estranhar, então, no contexto de uma acentuação das disjunções e interferências entre dentro e fora, longe e perto, poesia e mundo, que, nessa coletânea de poemas, nuvens e sombras se convertam em imagens privilegiadas de figurações em fuga ("nuvens passam/ o olhar não percebe o barulho dos astros", "ri na claridade/ minha sombra oblonga", "Helóisa é feita de escuro/ Helóisa é feita de ar", "chove nos edifícios/ e também em tua sombra/ de bípede que palmilha/ esta e mais outra trilha"), pois, mal se sugere aí qualquer paisagem, é para que ela receba imediata certidão de inconsistência ("Binóculos para achar/ o leão mais altivo/ que inexiste na sombra baobá", "Um céu, que não existe", "Corro. No deserto/ Líquidos longes e pertos", "pura luminosidade dentro/ de retina inexistente"), de uma espécie de existência/inexistência própria ao poético. Situação exposta desde o poema de abertura do livro, "Carnaval", que apresenta, a rigor, uma paisagem marinha, possível vista carioca, mas geminada a um movimento de autodissipação ("Esta água é um deserto", "O mundo, uma fantasia", "O mar, de olhos abertos/ engolindo-se azul"), sintetizado no mote final: "Qual o real da poesia?". Figuração movida a autodiluição que dominaria igualmente os seis últimos poemas de "Elefante", por vezes fazendo do externo uma paisagem interior ("Ouço dentro um brusco mar"), por vezes convertendo o dentro em fora ("Na alma a coroa/ de espinhos/ da dor mais profunda/ desfaz-se na tarde"). Por vezes sugere-se o descarte do próprio sujeito do poema ("vontade de me jogar fora") ou a dissolução de algumas das imagens mais caras ao poeta, como as do lago e da montanha ("Longe ficaram as montanhas/ Perto o lago não está"), num branco sobre branco ("Ária branca aderência/ em muro branco/ neste dia tão solar"), numa "desmesura do ar". Mas não é só via figuração em fuga que Francisco Alvim parece encaminhar, em "Elefante", sua consideração do poema e, em particular, do seu método poético, não à toa se desdobrando esse movimento auto-reflexivo de uma indagação mais geral sobre as relações entre o poema (convertido, com frequência, em espaço de ressonância: "Quer ver?/ Escuta") e o mundo (daí as vozes e clichês que invadem os seus poemas-minuto), sobre a "realidade", o processo de ficcionalização próprios à vertente dramatizada de sua poesia, movida sobretudo por movimentos de miniaturização crítica e por afastamentos e aproximações entre a sua perspectiva semi-oculta (por vezes perceptível num título, num corte) e as "personae" (usualmente pouco apreciáveis) que se expõem (com seus imperativos, preconceitos, lugares-comuns) nos poemas breves. 

Orientação dramática 
E, mesmo essa orientação dramática, dominante na sua escrita poética desde os anos 70 e responsável por boa parte dos micromonólogos de que se compõe o livro novo, receberia espelhamento crítico, distanciado, em "Escolho", um dos melhores poemas de "Elefante": "Longe tão longe/ do humor da ironia/ das polimorfas vozes/ sibilinas/ transtornadas no ouvido/ da língua". Nesse poema se expõe não apenas a dimensão prosaico-teatral da sua escrita, mas o movimento, a divisão -"entre dois trajetos/ dois portos/ (duas lagunas)/ duas doenças"- que parece acompanhar, no seu caso, a necessidade antilírica de refração. E que transforma "Escolho" numa espécie de figuração exemplar de momentânea aporia ("Parado/ Na plataforma superior/ Entre as pernas/ no chão/ as compras num plástico"), de parada reflexiva por parte do poeta, intensificada por uma interlocução silenciosa da matéria, pela força mesma das coisas: "Ali onde o chão é chão/ as pernas, pernas/ a coisa, coisa/ a palavra, nenhuma". "Escolho" terminaria com um "envoi" interrogativo, pedindo às "sublimes virtudes do acaso" proteção contra a "escolha" e a "incessante, intolerável, fuga do enredo". Orientação interrogativa presente, igualmente, em "Carnaval", "Mula", "Espelho", "Hospitalidade", "No Telefone". Ou num poema como "Aberto", dedicado a Cacaso, que parece funcionar como um duplo crítico do diálogo entre pai e filho de "Oráculo", texto dos anos 60 de Francisco Alvim. E, enquanto o texto mais antigo se encerra melancólica, mas afirmativamente ("deste perigo/ não podes escapar/ Deixa-te estar/ neste lugar"), em "Aberto", o exercício poético é submetido a um crescendo de indeterminação: "O olhar sem memória/ sem destino/ se detém/ no ar do ar/ na luz da luz lugar?". 

Forma em fuga 
A interrogação "lugar?", se, por um lado, parece ecoar o "rien n'aura lieu que le lieu" mallarmaico (evocado por Giorgio Agamben ao tratar da hesitação entre som e sentido como constitutiva do poético), por outro lado se aproxima, em "Elefante", das frases pelo meio dos seus micromonólogos (como em "Factótum"), das muitas vozes entreouvidas, das vistas em dissipação, das suas composições movidas a pequenas variações e repetições ("Velho", "Sombra", "Eta Ferro"), formas de desdobramento da tensão entre o lírico e sua dramatização, entre "coisas, coisas" e "sombras de sombras", e das relações entre as coisas do mundo e o poético, investigadas ao longo do livro. E de autofiguração, por parte de Francisco Alvim, de um método construtivo à maneira do seu "Elefante" -também enformado por um movimento duplo e uma intensificação de tensão que não se dissipam, mas parecem minar, de dentro, a própria forma, propositadamente em fuga, dos seus poemas.
Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, autora, entre outros, de "A Voz e a Série" (7 Letras/UFMG) e "O Brasil Não É Longe Daqui" (Companhia das Letras). 

Elefante
152 págs., R$ 21,00 
de Francisco Alvim. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3846-0801).











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    3. Escalas e Ventríloquos (e o rebate de Florisvaldo Mattos)

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