José Castello
Manoel de Barros busca o sentido
da vida
Poeta diz ter solidão, mas acha que é opulência da alma e a traz,
em sua obra, como amargor e sol
Manoel de Barros ficou perto de cinco meses com um
longo questionário que lhe enviei pouco antes do carnaval deste ano.
"Vou responder devagar e do meu jeito", ele me advertiu na época.
Aceitei suas condições. Não imaginei, porém, que necessitasse de
tanto tempo. Barros seguiu, em parte, as instruções de seus novos
editores, da Record, que preferiam ver uma grande entrevista
publicada no Estado apenas na época do lançamento do Livro sobre
Nada. Mas não foi só essa preferência que o fez deixar o
questionário de lado por um período tão longo. O poeta é um homem de
hábitos lentos, que gosta de meditar muito antes de agir e não está
acostumado a trair seu temperamento interiorano. Finalmente, no dia
12, ele despachou de Campo Grande, pelo correio, suas respostas a
algumas perguntas que formulei. Assim começa um breve bilhete anexo:
"Aí está o que pude; peço desculpas pela demora." Manoel de Barros
respondeu por escrito, em organizadas folhas brancas do tipo ofício,
datilografadas com esmero. Corrigiu os erros com a esferográfica,
numerou metodicamente as questões e grampeou as páginas.
É um homem, sempre, cheio de cuidados. Antes de
aceitar o convite da editora Record para se transferir - "proposta
irrecusável por todos os motivos, até mesmo os financeiros",
limita-se a dizer -, o poeta consultou José Elias Salomão, o
proprietário da Civilização Brasileira. "Falei com ele e tudo bem;
ficamos em paz todos", relata. A morte recente do editor Ênio
Silveira, por certo, influenciou nessa decisão. Manoel de Barros se
sentia tão ligado a Ênio que, enquanto ele estava vivo e mesmo com as
condições precárias que a editora Civilização Brasileira atravessou
na última década, não ousou mudar de casa. Os laços de amizade e a
fidelidade pesaram mais que os interesses pessoais. Cada um de seus
últimos livros editados por Ênio Silveira, mal ou bem (e,
considerando que são livros de poemas, esses números são ótimos)
vendeu, de todo modo, perto de 10 mil exemplares. "Acho que, na
Record, esse número deve crescer por causa da estrutura de marketing
da editora", diz. Apesar desse otimismo, Manoel de Barros continua a
ser um homem basicamente melancólico e pessimista. "Acho que no
futuro o homem vai pedir pelo amor de Deus para conhecer uma árvore,
um passarinho, um cavalo", diz. "Tenho medo que a ciência acabe com
os cavalos, com a luz natural, com as fontes do ser." A seguir, as
questões que ele decidiu responder.
Estado - Em que medida Mato Grosso do Sul está presente em sua
poesia? Qual é sua relação com o regionalismo?
Manoel de Barros - Há sempre um lastro de ancestralidades que nos
situa no espaço. Mas não importa muito onde o artista tenha nascido.
O que marca um estilo literário é a maneira de mexer com as
palavras. Poesia é um fenômeno de linguagem. De minha parte,
confesso que fujo do regionalismo que não dê em arte, que só quer
fazer registro. Não gosto de descrever lugares, bichos, coisas da
natureza. Gosto de inventar. Quem descreve não é dono do assunto;
quem inventa é. Não tenho compromisso com as verdades consagradas. O
que desejo é me constar por meio de um trabalho estético. Se de tudo
resultar um cheiro de coisa do chão, é bom. Pode até ser que seja
regionalismo. Porém, há de ser mais transfigurismo pela palavra.
Estado - Você se sente isolado em Campo Grande?
Barros - Isolado não me sinto, juro. Às vezes me isolo, me tranco na
minha toca para escrever, para ler, para imaginar. Parece que, no
fechado, o imaginário se solta melhor. O que sinto mesmo é incompletude: essa falta de explicação para o sentido da vida. O que
tenho é solidão. Mas solidão é opulência da alma. Tudo isso parece
que destila amargor e sol na minha poesia.
Estado - As viagens marcaram sua poesia? Penso em um poeta como
Vinícius de Moraes que, em cada cidade que viveu, parece ter sido um
homem diferente.
Barros - Alguns anos da minha vida ambulei por lugares decadentes.
Havia um certo fascínio em mim por cidades mortas, casas
abandonadas, vestígios de civilizações. Um fascínio por ruínas
habitadas por sapos e borboletas. Eu gostava de ver alguma
germinação da inércia sobre ervinhas doentes, paredes leprentas,
coisas desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo, vêm de
errâncias desurbanas. Agora, o caso do Vinícius é outro. Ele é um
poeta inumerável. Ele vem das grandes paixões, das grandes
complexidades, das perplexidades humanas. Ele era 300, ele era 350,
como diria o nosso Mário de Andrade. Manoel de Barros só é um bugre
perturbado.
Estado - Existe essa entidade chamada poesia brasileira ou existem
apenas poetas nascidos no Brasil?
Barros - Penso que existe sim uma poesia brasileira. Uma poesia que
expressa a nossa alma e o nosso quintal. Porém, a linguagem, o
tratamento que o poeta imprima à sua matéria pode fazer dele um
poeta universal. Assim, as nossas particularidades podem ser
universais por meio das palavras. Temos poetas do mundo nascidos no
Brasil.
Estado - Como foi sua relação com o editor Ênio Silveira, recém-
falecido?
Barros - Do Ênio fui amigo e companheiro desde o primeiro dia que
conversamos. Uma das criaturas mais puras, mais honestas, mais
idealistas que conheci. Um ser de escol - como se diz. Trocamos
cartas por muitos anos. Trocamos amizades. Mandava a ele os meus
originais e ficava quieto, esperando. De repente, me mandava as
provas. Fazia questão de escrever as orelhas. Tenho cinco livros
lançados por ele.
Estado - Como é hoje sua rotina de poeta?
Barros - Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que
chamo "lugar de ser inútil". Exploro há 60 anos esses mistérios.
Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações.
Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos
cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a
Bíblia, dicionários, às vezes percorro século para descobrir o
primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler Vozes da
Origem. Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era
gente e namorou a mulher de outro homem." Está no livro Vozes da
Origem, da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a
explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever.
Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento.
Estado - Seu último livro publicado se chama O livro das Ignorãças
(Civilização Brasileira, 1983). A citação de abertura é eloqüente:
"As coisas que não existem são mais bonitas." Qual é o papel da
ignorância na atividade poética?
Barros - Gosto de ver o que não aparece. Um que não era o adivinha
de Tebas, o Tirésias, um que era apenas o Pote-Cru, andejo de beira
de rios, criado em grotas de preá, me disse um dia: "Eu tenho
vaticínios de lugares." Pote-Cru, ele tinha percepções sensoriais
largas, como os adivinhos, os videntes, os bruxos, os urgos, os
demiurgos, os curandeiros, os magos. Essa gente toda usa muito a
ignorância para nos conhecer. Como é que eles podem dizer: "Vi a
tarde se encolher no olho de um pássaro?" Entretanto, se encolhe!
Como é que eles podem dizer: "Os carrapichos não pregam no vento."
E, entretanto, não pregam. Essas descobertas vêm da ignorância.
Estado - Você vive em uma região brasileira em que a natureza, mal
ou bem, ainda resiste. Há futuro para a natureza?
Barros - No grande futuro, não sei o que seja, acho que o homem vai
pedir pelo amor de Deus para conhecer uma árvore, um passarinho, um
cavalo. Tenho medo que a ciência acabe com os cavalos, com a luz
natural, com as fontes do ser. Aquela liberdade que o homem tem de
se sentir livre para o silêncio das árvores não vai ter mais. O
idioma não vai servir mais para celebrar. O ser não vai mais
comungar com as coisas. A imaginação não vai mais desabrochar,
porque os nossos desejos e fantasias serão realizados. O mundo vai
ter outro cheiro. Salvo não seja.
(in O Estado de São Paulo, Caderno 2)
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