José Castello
Manoel de Barros faz do absurdo
sensatez
CAMPO GRANDE - Parti para Mato Grosso do Sul
com a cabeça carregada de frases de Manoel de Barros, que
anotei das raras entrevistas que o poeta deu no passado.
"Prefiro as máquinas que servem para não funcionar", ele disse.
"Não gosto de dar confiança para a razão, ela diminui a
poesia", afirmou também. "A poesia não existe para comunicar,
mas para comungar", comentou ainda. "Desconfio do verso
que fulgura; em poesia, o opaco é mais luminoso que o
brilhante." E disse mais: "Poesia é um lugar onde a gente ainda
pode fazer com que um absurdo seja uma sensatez."
Antes de viajar, dediquei-me a reler seus poemas. Mas
frases sufocaram-me. "As coisas que não existem são as mais
bonitas", está na abertura do Livro das Ignorãças, atribuída a
Felisdônio. E mais à frente: "As coisas me ampliaram para
menos." No Arranjos para Assobio há uma definição de
poeta: "Sujeito inviável." No Concerto a Céu Aberto para
Solo de Aves está dito: "O nome ensina ao poeta as suas
semelhanças." E em Matéria da Poesia ele dá uma definição
definitiva: "Poesia é a loucura das palavras."
Desde janeiro de 1996, eu vinha tentando convencer o
poeta Manoel de Barros, de 80 anos, a receber-me para uma
entrevista. Naquele verão, ele aceitou, por fim, responder a
algumas perguntas por escrito. Nada mais. A maior parte das
poucas entrevistas que Manoel deu ao longo da vida foi assim:
perguntas por escrito e respostas anotadas no papel.
Levou três meses para enviar suas respostas -
publicadas em março do ano passado no Estado. Não desisti.
Nas muitas conversas preparatórias que tivemos por telefone,
Manoel parecia sempre um homem simpático, mas retraído,
pouco preparado para as coisas do mundo, entre elas a
imprensa. Aos poucos, construí para meu uso pessoal o perfil
de um interiorano, um caipira dos pântanos, um homem
reservado e de poucas palavras, que qualquer repórter mais
afoito poderia machucar seriamente.
Jogo - Ao chegar a Campo Grande, porém, levei uma
rasteira - muito parecida com aquela que Manoel de Barros
costuma dar-nos com seus magníficos versos. Descobri que,
durante quase dois anos, ele jogara comigo, meigamente, mas
com mestria, do mesmo modo que, na folha em branco, joga
com suas palavras. Eu - o repórter - fui, por longos meses,
apenas uma palavra na cabeça de Manoel de Barros. Uma
palavra perigosa. Agora, graças a algum raciocínio que eu
ainda não podia alcançar, ele abria a guarda e estávamos frente
a frente.
Que homem encontrei? Imaginava Manoel de Barros
magro e triste, mas ele é gorducho e enérgico. Imaginava um
homem ingênuo, que passasse os dias entre cachorros e
passarinhos - mas ele ouve concertos clássicos, lê Kant,
Benjamin e Roland Barthes e toma cerveja com psicanalistas.
Caí na armadilha de seus poemas. E talvez fosse isso o que,
mantendo-se escondido, ele desejasse preservar: os versos.
Manoel fala como qualquer senhor respeitável de 80 anos; não
fala "torto", como falam seus poemas. É essa fala reta,
provavelmente, o que ele chama de timidez: o homem comum
que se esconde detrás dos versos insensatos.
A crer no próprio Manoel, esse homem que eu agora
tinha diante de mim era falso - o verdadeiro só aparece nos
poemas. "É a palavra que me vai desvelando", ele diz, sabendo
que a palavra oral exigida em uma entrevista o rouba,
justamente, daquele poder de burilar, de construir, de jogar,
que a palavra escrita oferece. Ao responder a entrevistas por
escrito, Manoel de Barros transformou as entrevistas em um
gênero literário, tão digno quanto qualquer outro. Era essa,
agora, a herança que me massacrava, mas também me fazia
avançar.
Manoel sabe que o diálogo-padrão entre entrevistador
e
entrevistado, a idéia de que a determinadas perguntas
correspondem determinadas respostas, a ilusão de que podem
entender-se e comunicar-se, só empobrece a palavra. "Penso
que só com a desarrumação sintática se consegue atingir o
`criançamento' do idioma", ele disse certa vez.
E agora ali estava eu com minhas perguntas normais,
querendo respostas comuns. Seria possível? Manoel também
disse: "O meu apagamento me exibe antes que me apaga." Mas
já estou eu, novamente, enroscado na teia das palavras. No
entanto: poderia ser de outro modo?
A casa - Manoel de Barros mora em uma bela casa na
Rua Piratininga, no Jardim dos Estados, desenhada pelo
arquiteto mato-grossense Sérgio Saad e por seu companheiro,
Osvaldo, que já morreu. Uma casa cheia de recantos, de
pequenos jardins internos, de esconderijos, que dá a impressão
de ser muito maior do que realmente é. Uma casa que engana
e se disfarça - como ele próprio.
Na varanda do quarto, Manoel tem uma pitangueira,
plantada pacientemente pela mulher, Stella, e hoje carregada
de frutos. No pequeno jardim da frente, cercado por um muro
de 2 metros, os passarinhos de Campo Grande vêm cumprimentá-lo. O
escritório, em um pequeno cômodo do segundo andar, é escuro e
misterioso. A chave fica escondida no corredor, sobre o batente da
porta. De 7 horas ao meio-dia, todos sabem, Manoel tranca-se no
escritório para ler e escrever e não está para ninguém.
Manoel de Barros ainda passa, uma vez por mês, dois
ou três dias em sua fazenda, a Fazenda Santa Cruz, no município de
Corumbá, a seis horas de carro de Campo Grande. É uma fazenda de 12
mil hectares, onde ele cria 5 mil cabeças de gado e, na época da
cheia, fica completamente isolada do mundo. Desde que Manoel
transformou seus empregados em sócios, ela funciona em um esquema de
autogestão. "Assim, eles não precisam mais de mim", diz. Dispensar o
papel de fazendeiro o alivia.
Sua obra está sendo toda relançada, em primoroso
projeto editorial, pela Record. Em dezembro, chega às livrarias
a nova edição do Livro de Pré-Coisas, editado em 1985 pela
Philobiblion. O poeta dedica-se, atualmente, a escrever um
novo livro que tem o título provisório de Tratado Geral das
Inutilezas. Escreve à mão, em caderninhos miúdos, que ele
mesmo monta com folhas grampeadas e capas coloridas e mais
parecem obra de criança.
Chego à sua casa às 10 horas, saio às 19. Depois de
nove horas de conversa amistosa, aumenta, no entanto, minha
sensação de estranhamento. Para consolar-me, volto às
palavras do próprio Manoel que trago anotadas em minha
agenda: "Me exibo através de ficar sob as cinzas. Sou sempre
uma pose falsa tirada no escuro. Me exibo de costas. Eu faço
o nada aparecer." Com Manoel de Barros, as palavras perdem
seu poder de explicar e tornam-se enigmas. É isso o que agora
carrego.
A leitura desta entrevista dará aos leitores dos
poemas,
ainda assim, a falsa sensação de esclarecimento. Poderão ter a
ilusão de que, agora, o poeta se aclara, que finalmente sabem
quem ele é. Mas não se iludam: ao voltar aos livros, os versos
soarão ainda mais estranhos e desconcertantes. A entrevista é
um gênero da ordem das "inutilezas". A vida tranqüiliza a
poesia, mas não a doma.
Estado - Como surgiu seu amor pelas coisas sem importância?
Manoel de Barros - Quando eu era jovem, fiz uma longa viagem pela
Bolívia. Viajei sem rumo por Porto Suárez, Orurus, Chiquitos,
vivendo sempre no meio da indigência. Eu não fazia nada, eu
simplesmente vivia - e bebia muita chicha, a aguardente que os
índios bolivianos fazem com o milho. Passava os dias ali, quieto, no
meio das coisas miúdas. E me encantei.
Estado - Você já se interessava por literatura?
Manoel - Sim, eu lia muito. Levei comigo as Obras Completas de Rimbaud e de Baudelaire e não parava de ler. Foi durante essa
viagem, também, que descobri o peruano César Vallejo, um poeta da
palavra - como eu.
Estado - Um poeta, também, das coisas menores.
Manoel - Prefiro as coisas menores, as coisas sem nome. Sempre fui
muito voltado para as coisas sem importância. Há pouco tempo, uma
poeta do Rio disse-me: "Quando você escreve, você só se interessa
pelas `inutilezas'." A palavra é dela, "inutilezas", e me pareceu
muito boa. O livro que estou escrevendo tem o título provisório de
Tratado Geral das Inutilezas.
Segunda parte:
"Minha poesia é torta", diz Manoel de Barros
CAMPO GRANDE - Ele acha melhor o seu primeiro
livro, Poemas Concebidos sem Pecado, que só teve uma
edição de cerca de 30 exemplares rodada em prensa manual,
por achar que todos os outros são decorrência desse. O poeta
Manoel de Barros, que diz escrever "uma poesia torta", conta
ao Estado como foi sua trajetória até hoje e fala do novo livro.
Estado - Onde você encontrou as "inutilezas" para o livro que está
escrevendo?
Manoel de Barros - Em minha viagem à Bolívia, procurei as cidades
decadentes, as mais miseráveis. Ficava o dia todo encostado,
pescava, bebia, passava os dias misturado com os bugres, os
descendentes diretos dos índios americanos. Eu vivia no meio deles,
empenhado apenas em conhecer aquelas pequenezas.
Estado - E o que você fez quando voltou?
Manoel - Encontrei um amigo que queria ir para Nova York. Foi um
choque cultural: Picasso nos museus, Bach tocando nas igrejas.
Fizemos uma viagem cheia de escalas, fomos chegando aos poucos.
Estado - E o que encontraram pelo caminho?
Manoel - Miséria. Em Santa Cruz de la Sierra, fomos abordados por um
menino que veio oferecer-nos mulher. Ele nos levou a uma casa muito
pobre e nos apresentou a suas três irmãs, três meninas miseráveis. O
menino pegava homens na rua para transar com as irmãs, era assim que
a família sobrevivia. Essa experiência rendeu-me um poema, que
chamei de Maria-Pelego-Preto.
Estado - Ela existiu mesmo?
Manoel - Sim, uma das meninas tinha pentelhos que subiam até um
umbigo. Os pais exploravam esses pêlos como um fenômeno, uma
anormalidade. Cobravam ingressos só para exibi-los.
Estado - Como você publicou seu primeiro livro?
Manoel - A primeira edição de Poemas Concebidos sem Pecado foi
rodada na prensa manual de um diplomata, o Henrique Rodrigues Vale.
Foram só 20 ou 30 exemplares, dados de presente. Não guardei nenhum.
Estado - Quando você o lê, hoje, o que acha?
Manoel - Acho que esse meu primeiro livro é meu melhor livro. Tudo o
que escrevi depois vem dele. Ali, eu já tinha a noção do valor
lingüístico da poesia. Poesia não é para contar história, poesia é
um fenômeno de linguagem.
Estado - Você foi um jovem desocupado?
Manoel - Tentei trabalhar como advogado, mas não funcionou. Na minha
primeira audiência como advogado, fiquei tão nervoso que
simplesmente vomitei em cima do processo. Imagine a cena: aquela
mesa longa, o juiz postado na cabeceira, eu sentado diante dos
autos. É minha vez de começar a falar. Então, antes de dizer a
primeira palavra, eu me curvo sobre os documentos e vomito.
Estado - Você, certamente, escolheu a profissão errada.
Manoel - Mas então escute uma segunda história. Agora não sou mais
advogado, sou poeta. Um dia, convidam-me para um programa especial
na rádio em que escritores brasileiros iriam ler franceses. Eu
deveria ler um poema de Aragon. O programa está no ar. É minha vez
de ler. Mas, antes de dizer a primeira palavra, eu desmaio.
Estado - Poemas são assim tão perigosos? Os seus costumam ser
adotados nas provas de vestibular. Você não gosta. Por quê?
Manoel - Faço uma poesia difícil. Depois, cair no mundo das imagens
não é para qualquer um. Ainda mais para adolescentes. Adolescentes
querem as coisas retas, senão não aceitam. E minha poesia é torta.
Estado - Eles exigem, no mínimo, professores muito preparados.
Manoel - Mas nem os professores me digerem. Há pouco tempo, chegou
aqui em casa uma das coordenadoras do vestibular em Mato Grosso. Ela
me disse: "Eu não entendo nada de seus livros. Se me permitir dizer
a verdade, eu vou dizer: seus livros são uma m...!"
Estado - E como você reagiu?
Manoel - Eu lhe disse: "Olhe, minha querida, se meus
poemas são difíceis, a culpa não é minha. Juro que não tenho
culpa. Meus poemas sofrem de mim."
Estado - E então?
Manoel - Ela estava desesperada. E me disse: "Pois é,
mas eu não entendo nada. Como é que vou preparar meus
alunos para as provas?" Eu respondi: "Olhe, eu também não sei
o que lhe dizer. Meus livros não são para vestibular." Poesia
exige sensibilidade. Se você não tem sensibilidade, preparo
algum adianta.
Estado - No seu caso, de onde veio essa sensibilidade?
Manoel - Fui criado numa fazenda do Pantanal. Meu
pai empregou-se como arameiro, que é aquele sujeito que faz a
cerca para isolar o gado. Cortava as árvores para tirar postes,
depois passava o arame nas cercas. A gente não tinha casa,
vivia acampado na beira das cercas. Até os 8 anos, eu fui
criado no chão, da forma mais primitiva.
Estado - E o gosto pela leitura, como surgiu?
Manoel - Quando deixei de acompanhar meu pai pelas
fazendas, fui para um colégio interno em Campo Grande.
Depois, meu pai me mandou para o Rio, para o Colégio São
José, dos irmãos maristas, onde fiquei por mais sete anos.
Passei todo esse tempo lendo.
Estado - João Cabral de Melo Neto também estudou com os irmãos
maristas, no Recife, e guarda recordações bem pouco estimulantes
desse período de sua vida.
Manoel - Eu tive a sorte de conhecer um professor,
padre Ezequiel, um homem culto e de espírito aberto, que
marcou profundamente minha formação. Quando eu tinha 13
anos, ele me deu para ler um livro do padre Vieira. Fiquei
alucinado. Vieira despertou em mim o gosto pela frase, pela
sintaxe, pela construção sofisticada. Vieira não tinha o menor
apreço pela verdade, ele gostava é da frase. Se você quiser
tornar-se cristão lendo Vieira, não se tornará. Se quiser
tornar-se escritor, poderá tornar-se.
Estado - É uma leitura que ainda hoje o acompanha?
Manoel - Jamais o abandonei. Agora mesmo estou
lendo o capítulo dedicado a Vieira na História da Inteligência
Brasileira, de Wilson Martins. Ele segue o Vieira passo a
passo, com revelações que me assombram. Lendo o Vieira,
descobri que qualquer palavra pode tornar-se poética, desde
que você a coloque no lugar certo. Com o Vieira aprendi o
valor da construção na poesia. Até hoje eu o leio todos os dias.
Estado - A faculdade de Direito afastou-o da literatura?
Manoel - Nada me afastaria. Eu tomava a condução
para ir à faculdade, mas parava no centro e ia para a Biblioteca
Nacional. Padre Ezequiel, é claro, não me fez ler Rimbaud,
Mallarmé, Baudelaire, mas me ensinou o francês. Na Biblioteca
Nacional, eu finalmente podia lê-los.
Estado - E quanto à prosa?
Manoel - É claro, o Machado. Ele é uma glória. Mas o
prosador que hoje eu prezo mais que todos é o Dalton
Trevisan. O Dalton é um escritor da linguagem, que modifica
sempre, que enxuga cada vez mais. Para o Dalton, a linguagem
é mais importante que o personagem. O Dalton lembra-me
aquele personagem do Giovanni Papini que aparece em Gog,
aquele literato que enxugou tanto seu livro que, um dia,
descobriu que só lhe restava uma palavra.
Estado - O que essa busca da linguagem mínima significa?
Manoel - A evolução para a linguagem enxuta é a
evolução para o absoluto. Meus escritores favoritos são
aqueles que se encaram como seres de linguagem. O Dalton, o
Machado, o Guimarães Rosa, o Gregório de Matos, o João
Cabral, o Augusto dos Anjos, o Pessoa.
Estado - Você não inclui Clarice Lispector nessa lista?
Manoel - É claro que sim, como ela me escapou? Um
dia, escrevi uma carta para a Clarice e ela nunca me respondeu.
É uma coisa que me frustrou muito. Abri meu verbo, entreguei
meu coração, e nada. Ela só me deu o silêncio. Até hoje isso
me dói.
Estado - É, no mínimo, surpreendente que um escritor tão empenhado
no trato da linguagem tenha sido, em determinado momento da vida, um
militante comunista. Comunistas preferiam, em geral, os "conteúdos".
Manoel - Foi o Apolônio de Carvalho quem me enfiou
na Juventude Comunista. Eu o conheci quando era estudante e
morava no porão de uma pensão do Catete, que pertencia a
uma húngara. Éramos quatro rapazes vivendo no porão. Um
dia recebemos uma tarefa: devíamos pintar a frase "Viva o comunismo" na estátua de Pedro Álvares Cabral, na Glória. Os
outros foram, eu não. Às 4 horas, a polícia bateu na pensão.
Meus amigos tinham sido presos e os policiais queriam
levar-me.
Estado - Como se defendeu?
Manoel - Fui salvo pela húngara. "Sr. policial, deixe
esse menino em paz", ela disse. "Ele acabou de chegar do
colégio de padres, não pode ser comunista." Eu estava com 18
anos e ainda tinha cara de menino. Mas os policiais não se
convenciam. Então, a húngara usou o argumento decisivo: "Ele
até escreveu um livro de poesia." Um policial, sem acreditar,
pediu o livro. Eu mostrei, então, o livro que tinha acabado de
escrever. Chamava-se Nossa Senhora de Minha Escuridão.
Estado - Um título que não combina muito com você.
Manoel - Era um livro de sonetos, feitos ainda no
colégio. Produziu um efeito avassalador. O policial leu os
títulos: Para Nossa Senhora, A Fala de Jesus Cristo, coisas
assim. Fechou o livro, botou debaixo do braço e disse: "Você
pode ficar." Fui salvo pelos sonetos.
Estado - Você ainda conserva esses poemas?
Manoel - Infelizmente, não. Não sei por que, o policial
levou o livro com ele. Era minha única cópia e eu o perdi para
sempre. Hoje, deve estar nos arquivos do Filinto Müller...
Estado - Como você vê o comunismo hoje?
Manoel - Apesar de tudo, ainda me considero um
socialista. O que sobrou do comunismo é muito importante
para o mundo. Considero, além disso, que o socialismo é
inevitável. Mais cedo ou mais tarde, o socialismo virá.
Estado - Como você se afastou da política?
Manoel - Militei durante cinco anos. Um dia,
decepcionei-me com um discurso do Prestes, que passou a
elogiar o Vargas, o mesmo que o tinha prendido, e resolvi
afastar-me do partido. Meus amigos diziam-me: "Não sai do
partido, porque eles te matam." Então resolvi sumir. Peguei um
trem e fui para a fronteira do Paraguai, onde meu pai era
gerente de uma charqueada. Fiquei escondido por uns seis
meses.
Estado - E o que você fez durante esse tempo?
Manoel - Voltei a viajar pelo Pantanal. Naquela época,
descobri que no Pantanal se falava uma espécie de dialeto. E
botei na minha cabeça de que eu iria estruturar as bases desse
dialeto. Viajando pela fronteira, dei-me conta de que cada
fazenda do Pantanal era uma ilha lingüística, em cada uma delas
se falava um dialeto próprio. Passei, então, a colecionar
palavras. Em pouco tempo, eu reuni mais de 500 expressões
do dialeto pantaneiro.
Estado - O que você fez desse material?
Manoel - Você não vai acreditar: eu perdi. Não sei
como perdi. Fico muito chateado quando penso no que
aconteceu. Ninguém se preocupou em preservar o dialeto do
Pantanal, só eu. E, no entanto, deixei que tudo se perdesse.
Estado - Como se reencontrou com a literatura?
Manoel - Eu me cansei e precisava ganhar a vida, não
tinha muito tempo para a literatura. Tinha de usar, de alguma
forma, meu diploma de advogado. Arranjei então um emprego
no Sindicato dos Peixeiros. Toda madrugada, a polícia saía à
caça dos peixeiros que adulteravam o peso de seus produtos.
Minha missão era ir até as delegacias para soltá-los. Fazia um
requerimento, pagava uma fiança e os livrava da prisão. Nada
de espetacular. Fiquei nisso uns bons três anos de minha vida.
Estado - Não chegou a tentar de novo a vida de escritório?
Manoel - Trabalhei por um breve período no escritório
do Dr. Cloves Ramalhete. Eu só podia fazer serviço de
subalterno, pois jamais suportei encarar uma audiência. Eu sei
que sou esquizofrênico. Essa minha timidez excessiva, esse meu
narcisismo, são sintomas bem claros disso.
Estado - Um esquizofrênico, no entanto, que se tornou um
bem-sucedido fazendeiro.
Manoel - Meu pai morreu, herdei uma fazenda e tive de
voltar para Mato Grosso para administrá-la. Voltei em 1961,
pouco depois da eleição do Jânio Quadros. Disse para minha
mulher: "Vamos ficar em Mato Grosso o mesmo período que o
Jânio permanecer no Alvorada." Mas ele renunciou logo
depois, enquanto eu passei muitos anos envolvido com a
fazenda. Hoje, não. Meu filho caçula é quem cuida de tudo, eu
só assino papéis de vez em quando.
Estado - Voltar não lhe pareceu um retrocesso?
Manoel - Eu tinha medo de voltar porque o interior
pode mumificar a gente. Eu achava que ia ficar emburrecido,
paralisado. Mas aconteceu o contrário. Quando retornei ao
Pantanal, minha imaginação desabrochou. Isso foi um
deslumbramento. Aqui tenho sossego, silêncio. Aqui a
imaginação pode dar saltos. Não posso ir às grandes
exposições de arte ou freqüentar cinematecas. Mas vou sempre
ao Rio. Tenho um pequeno apartamento no Leblon.
Estado - Nesse longo percurso, ao que parece, quase nada do menino pantaneiro se perdeu.
Manoel - Eu não mudei. Até hoje me entendo muito
com as crianças. Elas são inteligentes, descobrem coisas que a
gente não vê. Têm a sintaxe torta. Eu tenho em mim, sempre,
um lado muito grande de brejo, de natureza. Acho que sou
extraído das palavras. Os lacanianos adoram quando digo
essas coisas.
Estado - Você conhece algum?
Manoel - Muitos. Eles não me deixam. Eu me
correspondo há muito tempo com o M. D. Magno. Em Campo
Grande, há um grupo de analistas lacanianas com quem saio
uma ou duas noites por semana para tomar umas cervejas. Elas
pensam que minha poesia comprova as teorias de Lacan.
Estado - Você concorda com essa tese?
Manoel - Só sei dizer que a palavra é o nascedouro que
acaba compondo a gente. O poeta é um ser extraído das
palavras. Não é a gente que faz com as palavras, são as
palavras que fazem com a gente. O meu texto é isso.
Estado - E a natureza onde fica?
Manoel - Somos parte da natureza. E, do mesmo
modo, somos parte das palavras também. Quantas vezes uma
palavra interrompe a gente e aparece? Quantas vezes ela se
impõe sem que possamos entender por quê? Uns pensam que é
mediunidade, mas é a palavra que fala em nós. Para um poeta,
a palavra que se impõe é mais forte que o sentido.
Estado - A palavra está, então, acima de tudo.
Manoel - Eu considero que, na escala dos valores
humanos, o sujeito que mexe com palavras está em primeiro
lugar. Recebo aqui em casa muitos poetas, e muitos maus
poetas, e sempre lhes digo isso. Mesmo nos maus poetas a
palavra já é uma qualidade. Só essa dedicação à gratuidade da
palavra já merece meu respeito. Ser poeta é dedicar-se às
inutilezas - que é como chamo as coisas inúteis.
Estado - De onde vem seu interesse particular pelos pássaros?
Manoel - Antes das palavras vem o canto puro, sem
sentido, que é aquilo que está no bico dos pássaros. O canto é
ágrafo, não admite escrita. Só depois dele é que as palavras
aparecem. Existe uma continuidade entre o canto dos pássaros
e as palavras humanas. O canto dos pássaros é uma
"despalavra".
Estado - Seus poemas estão cheios, também, de insetos. Muita gente
sente repulsa por insetos, você não?
Manoel - Meu impulso poético me diz que as coisas
grandes devem ser desequilibradas com as pequenas. Tenho
uma atração pelas coisas mínimas. O ínfimo tem sua grandeza e
ela me encanta. Gosto muito das coisas desimportantes, como
os insetos. Não só das coisas, mas também dos homens
desimportantes, que eu chamo de "desheróis".
Estado - Daí seu interesse por Charles Chaplin?
Manoel - Chaplin descobriu o encanto dos vagabundos.
Queria celebrar o ínfimo, o pobre coitado, o homem jogado
fora, o joão-ninguém. Mas eu tomei gosto pelo desimportante
lendo o Gogol, um escritor que exaltou como ninguém o
homem sem valor, sem qualidade. Estou sempre relendo O
Capote. A literatura do homem desqualificada, do pobre
diabo, começou com Gogol.
Estado - Nenhum inseto o incomoda?
Manoel - Não tenho medo de insetos, nem mesmo de
baratas. Eu fui criado em chão de acampamento, no meio de
lagartixas, lagartos, sapos, mosquitos. Vivi nos brejos, lugares
úmidos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas
palavras que aparecem em mim. Na hora de escrever um
verso, essas palavras brotam em mim naturalmente. É o lastro
"brejal" que não perdi.
Estado - Nenhuma relação, eu suponho, com os poemas do senador José
Sarney...
Manoel - Nem com o seu lado "brejal" nem com os
seus poemas de marimbondo. O José Sarney é um subliterato.
Se ficasse só presidente já era ruim, mas ainda escritor...
Estado - O que você pensa da exploração turística do Pantanal?
Manoel - Não é uma exploração, é uma deformação.
Mas existem limites. O Pantanal tem um regime de chuvas e de
enchentes que ninguém pode mudar. Se o sujeito cismar de
erguer um restaurante, uma agência bancária, um
supermercado, daqui a seis meses tudo estará boiando. O
Pantanal sabe defender-se. O turismo jamais vai conseguir
domá-lo.
Estado - No Pantanal, a natureza ainda se sobrepõe à cultura.
Manoel - É um lugar edênico. Eu diria adâmico. Está na
origem do mundo. Parece que a formação geológica do
Pantanal ainda não terminou. Claude Lévi-Strauss, quando o
visitou, observou que seus rios não têm profundidade, não têm
barrancos. O Pantanal é um lugar primário, não terminado, sem
feições definitivas. É muito inquieto, muito incorreto, sem
disciplina. "No Pantanal não se pode passar a régua", eu
escrevi. A régua impõe limites e o Pantanal não tem limites.
Tem uma estrutura aquática que não permite que ele seja
modificado.
Estado - Você escreveu também: "O artista é um erro da natureza."
Pode explicar isso?
Manoel - Mas eu também escrevi: "Beethoven é um
erro perfeito." Logo, o erro é a perfeição. O artista é um
doente, não é um homem normal. É sempre um psicótico, tem
um desvio de sensibilidade, algo assim. Minha principal
qualidade literária é minha visão torta do mundo - logo, minha
principal qualidade literária é minha doença. Escrever que
"Beethoven é um erro perfeito" é uma idéia torta, não é?
Escrever que "o silêncio do mar é azul" também é uma idéia
torta, porque silêncio não tem cor. E, no entanto, eu escrevi
isso e as pessoas consideram. Todo artista tem um desvio
lingüístico e é ele que forma seu estilo.
Estado - O estilo é uma condenação?
Manoel - O estilo é um estigma, é uma coisa que marca.
Já vem com as nuances do indivíduo. O estilo é coisa quase
genética. Todo escritor surge de uma doença. Quanto mais um
escritor é atingido pela anormalidade, mais seu estilo aparece.
Estado - Uma pessoa como Bernardo, o velho empregado a quem você
dedicou um longo poema, também está marcada pela estigma da
anormalidade e no entanto não se tornou poeta. Como isso se explica?
Manoel - Bernardo está internado há um mês em um
asilo. Ele está sofrendo do coração. Temos a mesma idade e
ele está comigo desde os 18 anos. Bernardo não fala, não fala
mesmo. Não porque não queira, mas por fastio. Ele tem uma
inocência animal.
Estado - Os pássaros ainda pousam na cabeça dele?
Manoel - Não só os pássaros, mas até as galinhas
selvagens. Os porcos querem ir para o seu colo. Todos os
animais querem chegar perto de Bernardo. Não sei o que é,
não me peça explicação. Bernardo tem uma inocência animal,
de forma que os animais sentem e se aproximam.
Estado - Você o tem visitado?
Manoel - Vou sempre visitá-lo. Encontro-o rindo e
fumando seu cachimbo. Os médicos dizem que não adianta
mais proibir. Bernardo é um ser que não conhece ter. Ele nunca
teve nada, nunca pediu nada. A gente é que leva roupa, lhe dá
comida, remédio. E tem uma memória igual à de um
computador. Ele é capaz de dizer a idade de uma pessoa que
ele conheceu há 50 anos e nunca mais encontrou. A memória é
o sentido que, nele, absorveu os outros.
Estado - Já em seu caso parece que o gozo com as palavras está acima
de tudo. É isso?
Manoel - É verdade, eu gozo com as palavras. Já
escrevi: "Meu gozo é no fazer." É no fazer o verso que o poeta
goza. Eu tenho isso: todo verso meu, eu gozei nele. Não
escrevo muito porque eu demoro muito para gozar. Eu trabalho
muito em cima das palavras, bolino muito as palavras, acaricio.
"Uma palavra tirou o roupão para mim", eu escrevi. E é
exatamente isso o que acontece.
Leia a obra de Manoel de Barros
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