José Castello
Floriano Martins traz os poetas
hispano-americanos ao Brasil
Depois de oito anos de trabalho,
escritor cearense reúne 24 entrevistas em `Escritura Conquistada'
Um cearense de 42 anos, autodidata de formação, assina aquele que
foi, provavelmente, o mais interessante livro de entrevistas lançado
no País em 1998. Escritura Conquistada/ Diálogos com Poetas
Latino-Americanos, um respeitável volume de 407 páginas, foi
publicado em complicada, mas eficaz, co-edição entre a Fundação
Biblioteca Nacional, a Universidade de Mogi das Cruzes, de São
Paulo, e a editora Letra&Música, de Fortaleza. Traz longos diálogos,
densos e bem meditados, do autor, o poeta e crítico literário
cearense Floriano Martins, com 24 poetas do continente, entre eles
nomes importantes, mas absolutamente desconhecidos entre nós, como o
nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, o peruano Javier Sologuren, o
chileno Pedro Lastra, o cubano José Kozer e o argentino Leónidas
Lamborghini. Há quatro brasileiros na lista de entrevistados: o
poeta, tradutor e crítico Ivan Junqueira, que não é preciso
apresentar; Sérgio Lima, um raro representante do surrealismo na
poesia brasileira; Sérgio Campos, poeta falecido precocemente em
1994, aos 53 anos, que se definia praticamente de uma "arte
arcaica"; e o poeta mineiro radicado em São Paulo Donizete Galvão.
É curioso, primeiro, que um trabalho de tal qualidade necessite de
uma verdadeira operação de guerra editorial para, finalmente, vir à
luz. E depois, mais curioso ainda, que seja um crítico e poeta de
Fortaleza, em ponto tão distante da fronteira hispânica, quem venha
a realizar esse esforço de confronto, mas também conjunção entre as
duas Américas.
Floriano Martins é bem um intelectual nordestino. Vive das críticas
que escreve para a imprensa local, de projetos gráficos (pois é
também projetista gráfico autodidata) e de traduções, fazendo
verdadeiras contorções para levar à frente seus projetos literários.
É um escritor de luta - e é isso, antes de qualquer outra coisa, o
que causa respeito. Recentemente, aliás, chegaram ao mercado seus
dois mais recentes trabalhos como tradutor: uma antologia de poemas
de Federico García-Lorca e um livro de contos do cubano Cabrera
Infante, ambos editados pela Ediouro, do Rio, volumes que também
organizou e prefaciou.
Como poeta, Floriano Martins já tem dez livros publicados, o
primeiro em 1979. Livros, reconhece, que como costuma ocorrer com a
poesia brasileira, caíram no esquecimento quase completo, sobretudo
por causa do eterno problema da distribuição. Alma em Chamas
(Letra&Música), o mais recente, acaba de chegar às livrarias
nordestinas. Floriano Martins circula sempre que pode pelo Rio, onde
freqüenta poetas e críticos como Marco Luchesi, Ivan Junqueira e
Antonio Carlos Sechin, e por São Paulo, onde morou entre 1982 e 1987
e deixou amigos e interlocutores assíduos como Claudio Willer e
Donizete Galvão. Mas é, por princípio, um grande solitário - ainda
mais agora que trabalha em casa e vive apenas para escrever.
E não pára de escrever. No fim do ano passado, publicou pela
Fundação Memorial da América Latina um belo ensaio, Escrituras
Surrealistas, dedicado ao estudo (bastante desprezado, é bom
recordar) do surrealismo na América hispânica. Somado ao volume de
entrevistas, ao livro de poemas e às duas traduções, foram cinco
livros publicados em apenas um semestre. Não satisfeito, Floriano
trabalha agora em O Fogo nas Cartas, um volume que reúne entrevistas
com escritores brasileiros e algumas das resenhas críticas que
publicou na imprensa.
Em parceria com o poeta chileno Pedro Lastra, trabalha ainda na
organização de uma antologia da obra do poeta chileno, já falecido,
Enrique Lihn - a ser publicada simultaneamente no Chile e no Brasil.
Dedica-se também a traduzir uma novela do escritor costa-riquenho
Alfonso Peña. E faz anotações, já bastante avançadas, para um volume
de ensaios sobre os moderrnistas na América hispânica. "Nesse caso,
em vez de entrevistas, pois todos já morreram, eu os apresento por
meio de ensaios", explica.
Desde que abandonou um emprego público, há três anos, para
dedicar-se integralmente à literatura, Martins parece tomado pela
febre de escrever. Mas não vê nada demais em seu ritmo avassalador
de trabalho. "São projetos que eu vinha desenvolvendo devagar e
agora chegaram à hora de concluir", diz. É hora também de falar
sobre o que finalmente está concluindo.
Estado - Como começou sua paixão pela poesia
hispano-americana?
Floriano Martins - Isso surgiu pelos idos de 83, 84, ao receber de
um amigo na Espanha, de presente, a Poesia Completa de Cesar Vallejo.
Logo no prólogo encontrei referências ao chileno Vicente Huidobro e
ao uruguaio Julio Herrera y Reissig, poetas que eu desconhecia,
ambos da lavra modernista, da virada do século - o modernismo na
América hispânica equivale, aproximadamente, ao nosso simbolismo.
São poetas que me despertaram grande curiosidade e me estimularam a
descobrir as trilhas invisíveis dessa poesia. A partir deles, em um
ou dois anos, estabeleci uma vasta rede de correspondência com
escritores do continente. Nas primeiras cartas, eu me identificava
como um autor brasileiro curioso a respeito da literatura hispânica
e me dizia interessado em me corresponder. As respostas foram, no
geral, muito acolhedoras. Em pouco tempo, eu me correspondia com
dezenas, centenas, mesmo, de poetas de todo o continente.
Estado - Em que época começou a fazer as
primeiras entrevistas?
Martins - Já entre 1985 e 88, comecei a fazer entrevistas com
escritores brasileiros, que publiquei em parte no Suplemento
Literário do Minas Gerais e também no Suplemento do Diário do
Nordeste, de Fortaleza. Só agora eu as estou reunindo em um livro,
Fogo nas Cartas, que acabo de organizar. Esse não é só um livro de
entrevistas: é uma seleção dos textos que publiquei na imprensa. Há
também resenhas, comentários e artigos críticos.
Estado - Viajou pela América Latina para fazer
as entrevistas?
Martins - Todas elas foram feitas por carta. Em alguns casos, houve
um vaivém: eu recebia um lote de respostas e remetia em seguida
novas perguntas, num diálogo lentíssimo. Com os escritores
brasileiros, afora raras exceções como o Cláudio Willer e o Roberto
Piva, que foram feitas pessoalmente, trabalhei da mesma forma. A
técnica que passei a exercitar, e que hoje prefiro, é a da
entrevista epistolar. Pode-se pensar que optei por ela só por força
das contingências, mas não é só isso. As entrevistas feitas por
cartas proporcionaram-me uma profundidade maior e as conversas
tornaram-se também textos literários.
Estado - Quando você começou a trabalhar nas
entrevistas?
Martins - As entrevistas com os hispano-americanos foram feitas
entre 1988 e 1995, portanto ao longo de quase oito anos. Foi preciso
ter paciência. Há a demora natural da correspondência internacional.
E também houve outros autores que, por uma razão ou outra, acabaram
por recusar-se a responder minhas perguntas e perdi longo tempo
esperando por isso. O livro só ficou pronto em 1995. Foi entregue à
gráfica em julho de 1998 e em agosto estava pronto - uma década
depois da primeira entrevista. Foi uma edição pequena: 2 mil
exemplares foram entregues à própria Biblioteca Nacional e a tiragem
restante, não mais que 700 exemplares, ficou com a editora, que teve
de enfrentar as dificuldades de distribuição. Fiz lançamento em
Natal, São Paulo, Rio e Brasília, ocasião em que as pessoaspuderam
comprar o livro. São os exemplares que sobraram dessa leva, não sei
quantos, que ainda estão nas livrarias.
Estado - Que critérios usou para a escolha dos
entrevistados?
Martins - Todos os entrevistados representam, de alguma maneira,
momentos inestimáveis da poesia contemporânea em seus países.
Representam muitos gêneros, estilos, escolas. O chileno Enrique
Gómez-Correa, ou o venezuelano Juan Calzadilla, ou o colombiano
Fernando Charry Lara foram, por exemplo, os fundadores de
importantes movimentos literários em seus países. Além disso, há a
importância muito grande que alguns deles deram ao ensaísmo e à
tradução, como é o caso do peruano Javier Sologuren, ou o do chileno
Pedro Lastra, ou o do boliviano Eduardo Mitre. É a multiplicidade
que define a existência do poeta em nossa sociedade.
Estado - Esses poetas consagrados confirmaram
seu prestígio?
Martins - Tive mais confirmações que desilusões. Tive, sim, algumas
frustrações. O chileno Enrique Lihn, por exemplo, às vésperas de
nosso encontro, morreu. Não pude entrevistar o peruano Emilio Adolfo
Westphalen, que, ao lado de Cesar Moro, outro peruano que já morreu,
é um dos mais destacados nomes do movimento surrealista do Peru. Ele
queria receber-me, mas está muito velho, com problemas de saúde, e
não foi possível.
Estado - Por que estamos tão isolados da
poesia da América hispânica?
Martins - Segundo alguns dos entrevistados, o isolamento dá-se por
causa da ineficiência das ações diplomáticas de seus países. Outros
acham que há um desinteresse mútuo, expresso na frase "nós não nos
interessamos por eles porque eles não se interessam por nós", o que,
além de não resolver o problema, é um argumento falho. Basta pensar
que em alguns países como o México, o Peru e a Venezuela se publicam
coleções importantes de autores brasileiros. A Biblioteca Ayacucho,
da Venezuela, por exemplo, tem um programa editorial com obras
completas de autores da a América Latina, entre eles vários
brasileiros, como Drummond, José Lins do Rego e Machado. Além do
mais, há o mais inaceitável dos argumentos: o da falta de mercado. A
verdade é que não temos nenhum programa editorial para a publicação
da poesia hispano-americana. E os poucos poetas que chegam até nós,
chegam às vezes de forma bastante estranha. O argentino Enrique
Molina, por exemplo, entrou no Brasil por meio do único romance que
escreveu, um romance histórico! Ele morreu há dois ou três anos,
deixando dez excelentes livros de poesia, mas só conhecemos seu
único romance, de menos importância. As editoras parecem, às vezes,
trabalhar às cegas.
Estado - Isso, provavelmente, produz uma visão
distorcida da poesia hispano-americana contemporânea.
Martins - Sim, há um desconhecimento em relação ao que se passa lá
fora e, em conseqüência, há, como eu costumo chamar, um "desprograma"
editorial. O nicaragüense Ernesto Cardenal, bastante conhecido no
Brasil, é, na verdade, um poeta de menor importância em sua geração.
Basta confrontar sua obra com a de Pablo Antonio Cuadra, um de meus
entrevistados em Escritura Conquistada, e também com a de Luiz
Alberto Cabrales, e se verá a diferença. E, no entanto, enquanto
esses dois são absolutamente desconhecidos no Brasil, já temos pelo
menos uma antologia de Cardenal em português. O mesmo se dá em
relação ao Chile. Enquanto se disseminam as traduções do pior
Neruda, desconhecemos poetas como Pablo de Rokha, Rosamel del Valle
ou Humberto Dias Casanueva, que são da mesma geração de Neruda e
muito aclamados pela crítica chilena. Do mesmo modo, modernistas de
importância do mexicano Lopes Verlarde, ou do peruano José Maria
Eguren, ou do argentino Leopoldo Lugones, continuam desconhecidos no
Brasil.
Estado - E quais seriam os motivos de tantos
enganos?
Martins - Não consigo encontrar nada que justifique esse isolamento
e esses enganos a não ser uma desprezível tendência brasileira de
considerar a América hispânica mais próxima do Terceiro Mundo do que
nós. O que é apenas um efeito cascata no âmbito do colonialismo
cultural. Nós somos uma nação sem paidea, desfigurada culturamente,
e aí não aceitamos que possa haver identidade na cultura peruana, na
uruguaia, na mexicana. E cometemos um grave erro. O importante seria
que os escritores brasileiros concordassem em discutir abertamente o
que se passa conosco.
Estado - Não persistem também zonas de
isolamento interno? Apesar de todos os avanços das telecomunicações
e da informática, uma cidade como Fortaleza não está ainda
culturalmente isolada?
Martins - A verdade é que só temos dois grandes centros editoriais,
São Paulo e Rio, e tudo o mais é periferia. E o que se produz aqui
só existe se desaguar e ecoar nesses dois centros. É lamentável, mas
é uma realidade. No caso cearense, por exemplo, temos dois poetas
que se poderia mencionar nacionalmente: Gerardo Mello Mourão e
Adriano Espinola. Mas ambos moram no Rio e, além disso, têm suas
obras editadas por grandes editoras do Rio ou de São Paulo, que
fazem seus livros existir. A publicação de um livro já não garante
sua existência. Um livro só existe quando é lido e para isso precisa
ser distribuído. No caso do Ceará, temos poetas como um Francisco
Carvalho, e no passado tivemos José Albano e Américo Facó, já
mortos, que foram em seu tempo nomes de grande importância. Mas eles
não tiveram obras reeditadas. Eu mesmo estou cuidando da reedição da
obra do Facó, um poeta esquecido que morreu só há 40 e poucos anos.
Estado - Ivan Junqueira diz que os poetas
cearenses brigam muito entre si - e aponta, assim, para um
isolamento interno também.
Martins - Isso é verdade, mas se dá mais no plano existencial, até
porque a inveja é um dos componentes mais característicos do perfil
do cearense - e ao revelar isso num artigo na imprensa de Fortaleza,
certa vez, eu quase fui apedrejado, mesmo risco que corro agora. A
verdade é que no nosso caso a inveja é um componente forte e não diz
respeito só aos artistas. Eu não saberia dizer qual é a origem desse
sentimento, francamente.
Estado - Se há pouco espaço, é natural que a
competição se acirre.
Martins - De fato, de uma maneira geral, os poetas são invejosos.
Mas é curioso ver até que ponto essa briga se dá entre bons e maus
poetas. Não me vem à memória o caso de nenhum bom poeta que
participe desse tipo de atitude, mas posso estar enganado. O fato é
que não nascem bons poetas todo dia, mas todo dia há alguém querendo
ser poeta e isso cria um ambiente propício para esse tipo de
atitude. A poesia que se divulga hoje em raros momentos vai além de
superficialidade, de maneirismo retórico, e o que se vê é uma
ausência quase absoluta de identidade. Os poetas, hoje, são sempre
epígonos de alguma determinada circunstância, escrevem sempre "à
maneira de". Boa parte desses poetas mais divulgados é, além disso,
refém da imagem. Brinco dizendo que se tirassem o vaso de flor da
janela não teriam mais sobre o que escrever.
Estado - O contato pessoal com os poetas que
entrevistou não teria sido importante?
Martins - De todos os poetas o único que conheci pessoalmente foi o
chileno Rolando Toro. E isso porque ele esteve em Fortaleza e veio à
minha casa. Poetas da América hispânica raramente aparecem no
Nordeste. Mas as cartas permitem uma aproximação muito boa e também
que se faça muita coisa a partir delas. No ano passado, por meio de
uma correspondência intensa com a revista literária Blanco Móvil, do
México, fizemos uma edição da revista inteiramente dedicada à
literatura brasileira contemporânea, organizada e apresentada por
mim.
Estado - Como é o contato entre os poetas
nordestinos?
Martins - A grosso modo, os poetas não se comunicam entre si. Mais
do que a disputa, há o isolamento. Isso é do temperamento dos
poetas? Do meu não é. Não faço parte disso, não entendo, mas os
escritores têm dificuldade de ir à imprensa, acham que a imprensa é
que deve ir a eles. Depois reclamam que não há espaço para eles...
Muitas vezes isso é verdade, mas outras vezes vejo o oposto: o
escritor acha que tem de vir alguém atrás dele, a começar pelo
próprio colega, o outro escritor. Isso é pela vaidade, pelo orgulho,
ainda muito fortes no temperamento do escritor brasileiro.
Estado - Só do brasileiro?
Martins - Nas entrevistas com os hispano-americanos não transparece
esse tema do orgulho. Há, no entanto, alguns casos bem parecidos. Os
colombianos também são um tanto quanto desunidos. De um modo geral,
não vejo esse orgulho e essa vaidade em outros países, não quero
dizer que não exista. Vejo, sim, o inverso disso, como é o caso dos
poetas peruanos, que são muito unidos.
Estado - Não são as condições adversas, de
mercado, que provocam tanta competição?
Martins - Isso pode ser uma boa defesa dos escritores, mas não é
justificativa. Com condições editoriais mais favoráveis, num local
com uma tradição de publicação de revistas poéticas, etc., podem
competir menos. Aqui as revistas ainda são sazonais, sem
consistência, sem durabilidade. Logo, há menos espaço para os
escritores e os ânimos se acirram. Países pequenos como a República
Domicana ou Porto Rico têm, ao contrário de nós, grande tradição de
revistas literárias. O México, nesse sentido, é insuperável. Não há
mais espaço para a aventura literária, três amigos juntarem-se para
fazer uma revista. Hoje, uma revista é uma empresa, tem de ser feita
em outras bases. E, quando há a oportunidade de uma revista se
firmar, sempre aparece alguém disposto a invalidar o trabalho.
Leia a obra de Floriano Martins
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