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José Castello




Escritores estão presos ao século 19, diz Wilson Martins

(in O Estado de São Paulo, 30.05.1998)




Para o crítico, a literatura brasileira precisa cumprir o seu compromisso com a atualidade para não desaparecer e diz que autores não têm investido nos problemas do País, com exceção de poucos, entre eles Fausto Wolf, Maria Cristina Cavalcante de Albuquerque e Luiz Antônio de Assis Brasil

JOSÉ CASTELLO

RIO - Para o crítico literário Wilson Martins, a literatura brasileira não está hoje dando conta dos problemas do País. E alerta: "Ela precisa tornar-se contemporânea para não morrer, pois ainda responde aos esquemas que vieram do século 19."

Ele garante que o nosso grande romancista é Josué Montello e confessa não gostar de Raduan Nassar nem de Nélson Rodrigues, cuja obra ele considera demagógica. Mas fala ainda sobre os injustiçados, entre eles Marcos Rey e Ignácio de Loyola Brandão.

Estado - Que futuro aguarda a literatura neste mundo informatizado?

Wilson Martins - Temos de partir de outra pergunta, saber se a literatura ainda fará algum sentido no mundo moderno. Ao menos a literatura na concepção tradicional que vem do século 19. Os pesquisadores têm a tendência de encarar a pesquisa literária como se ela fosse objeto de ciência. Isso é uma tolice. O que salva a crítica, se é que ela pode salvar-se, é a variedade de opiniões.

Estado - Que mudanças devemos esperar?

Martins - Os gêneros devem ser reformulados. A literatura deve ser outra coisa. Os melhores estão conseguindo. Poetas como Affonso Romano de Sant'Anna e Ivan Junqueira passaram a escrever sobre os grandes temas da civilização humana. São dois escritores que estão reagindo. Veja, por contraste, um poeta como João Cabral, que ainda se apega a uma temática muito regionalista. Os poetas modernos, como Saint-John Perse, ampliaram suas visões para além do nacional e chegaram aos temas universais.

Estado - A mudança dos conteúdos é mais importante que a das formas?

Martins - Quando se muda o conteúdo, se muda a forma. Mas a revolução formal não é tão importante quanto se imagina. O exemplo extremo é o concretismo, que acabou reduzido a exercícios tipográficos. As vanguardas apostam tudo na forma, e se esquecem do sentido, da emoção, da significação.

Estado - Quem mais está apostando no futuro?

Martins - Penso em um poeta como Gerardo Mello Mourão. Ele está sendo muito boicotado com acusações vagas de, na juventude, ter sido um direitista, até mesmo um espião fascista! Mesmo que essas acusações fossem verdadeiras, elas não teriam a menor importância para a avaliação de sua obra. Gerardo, em Invenção do Mar, teve a coragem de reescrever os Lusíadas na perspectiva brasileira. O resultado é excelente, mas a crítica o despreza.

Estado - A literatura brasileira de hoje está dando conta dos problemas brasileiros?

Martins - Não, não está. E ela precisa tornar-se contemporânea para não morrer. A literatura brasileira de hoje ainda está respondendo a esquemas que vieram do século 19. Os grandes romancistas de hoje são aqueles que superaram o regionalismo para escrever o romance social e histórico. Penso em um grande romance político como o Quarup, de Antonio Callado. E em Os Tambores de São Luís, de Josué Montello. Há um romance muito desprezado que também segue esse caminho: Luz do Abismo, de Maria Cristina Cavalcante de Albuquerque, publicado pelas Edições do Bagaço, do Recife. Outro romance de primeira linha muito rejeitado é o À Mão Esquerda, de Fausto Wolf. Gosto muito ainda do Luiz Antônio de Assis Brasil, de Porto alegre. Ele parte de temas locais, mas tem uma perspectiva universal, ao contrário de um poeta como Manoel de Barros, que é tão festejado, mas faz um regionalismo direto, sem força alegórica.

Estado - O que você pensa da geração de escritores brasileiros que chega hoje aos 40, 50 anos?

Martins - Bem, é a geração que surgiu depois do Rubem Fonseca, aquela que o sucede. Em grande parte, ela não conseguiu libertar-se da influência de Fonseca. Penso em Ana Miranda, que para libertar-se sempre quis dar um pulo maior que as pernas. Seu romance sobre Gregório de Matos, Boca do Inferno, é cheio de anacronismos e simplificações. E em Patrícia Melo, que continua presa a Rubem Fonseca e se mantém fiel ao gênero policial, mas apesar disso é mais moderna.

Estado - Há a geração que surgiu antes, ainda nos anos 70, que inclui nomes como os de Sérgio Sant'Anna e o de João Gilberto Noll. O que você pensa deles?

Martins - Sérgio Sant'Anna é muito bom, embora às vezes seja irregular, como naquele A Tragédia Brasileira. Já fiz também elogios aos contos do João Gilberto Noll. O problema do Noll é que, depois que passou a dedicar-se aos romances, vem escrevendo cada vez pior. Seus livros são cada vez mais gratuitos.

Estado - Você poderia explicar por que não gosta de Raduan Nassar?

Martins - Não tenho explicação para isso. Sei que ele é um escritor muito recomendado por grandes críticos, mas tentei lê-lo e não consegui gostar. Não consigo perceber o que ele quer, que tipo de literatura deseja fazer. É um escritor com o qual não tenho conexão. Acho que há muito de artificial em sua reputação. Ele sempre jura que não é escritor, que não deseja ser escritor, mas continuam a tratá-lo como escritor e ele parece gostar. Então, só posso pensar duas coisas: ou ele realmente não é um escritor, e o estamos torturando com essa idéia; ou ele não é sincero.

Estado - Quem são os outros bons escritores que você considera injustiçados?

Martins - Um grande injustiçado é Marcos Rey. É verdade que seus livros, em geral, caem de qualidade no fim. Não sei se ele se cansa, se ele se perde. É uma injustiça, de todo modo, que o prestígio de Rey nunca tenha ultrapassado as fronteiras de São Paulo. Outro injustiçado é Ignácio de Loyola Brandão. Ele é, sem dúvida, um escritor bastante irregular. Mas esse livro autobiográfico sobre o aneurisma cerebral (A Veia Bailarina) é ótimo. E com o Zero ele lançou o protótipo de uma literatura que, hoje, o Chico Buarque está imitando, sem conseguir chegar ao mesmo nível de qualidade. Loyola é, há muito, o grande escritor urbano de São Paulo, assim como Rubem Fonseca é o grande escritor urbano do Rio de Janeiro.

Estado - Vamos a outros nomes: que avaliação você faz da obra de Nélida Piñon?

Martins - Nélida é uma mulher importante que, além de ser presidente da Academia Brasileira de Letras, já recebeu prêmios prestigiosos no exterior. No entanto, tenho escrito críticas bastante desfavoráveis a seus livros. Acho sua literatura muito artificial. Ela escreve romances históricos cheios de lacunas e simplificações. Também me incomodo muito com o seu vocabulário. Nélida escreve narrativas muito retóricas, muito literárias.

Estado - E o que você pensa de Lygia Fagundes Telles?

Martins - Eu a considero uma escritora com a obra já concluída, que sempre foi muito melhor nos contos que nos romances. Mas também a considero uma escritora um pouco artificial, com seu estilo sempre um pouco rebuscado.

Estado - Somos um país de contistas?

Martins - Não só. Apesar de tudo, o romance brasileiro renova-se. Gosto muito, por exemplo, do Cristóvão Tezza. Seu último romance, Breve Espaço entre Cor e Sombra, o transforma em um escritor de primeira linha. Mas é verdade: não estamos em um período de grande produção romanesca.

Estado - Já que chegamos ao Paraná, como você avalia a obra de Dalton Trevisan?

Martins - Desde o início, sou um grande admirador do Dalton. Ele introduziu no conto brasileiro uma perspectiva absolutamente original. Mas sua obra está completa, não podemos nem devemos esperar surpresas. Ainda assim, ele continua a escrever com a competência de sempre.

Estado - Quem é nosso grande romancista?

Martins - Josué Montello é, hoje, sem dúvida, o decano do romance brasileiro. Escreve romances clássicos, na linha de Machado e de Eça, e não está preocupado em ser original. Ele mesmo admite, sem nenhum problema, que ignora as inovações estéticas dos últimos 50 anos. Escreveu romances extraordinários, em particular Os Tambores de São Luís. Não posso esquecer de citar, ainda, o João Ubaldo Ribeiro. Viva o Povo Brasileiro, em particular, é um romance muito curioso, ainda que bastante mal construído. Mas, apesar disso, você o lê e sabe que está diante de um grande romance. Os defeitos que ele pode ter são defeitos que só um grande romancista pode ter. O grande problema do João Ubaldo é que até hoje ele não se livrou da influência de Jorge Amado.

Estado - Aproveitando que você chegou a ele, que avaliação você faz da obra de Jorge Amado?

Martins - Amado vive, hoje, o mesmo problema de Lygia Fagundes Telles: é um romancista cuja obra já se concluiu. Seus grandes livros têm duas fases: a stalinista, em que praticou o realismo socialista, que se encerra com Terras do sem Fim; e a fase da desestanilização, na qual o melhor livro é Tenda dos Milagres. O grande defeito de Jorge Amado é o mesmo de Guimarães Rosa: a partir de um dado momento, ele não se libertou de si mesmo, passou apenas a imitar-se.

Estado - Você parece achar exagerado o prestígio de Guimarães Rosa. É isso mesmo?

Martins - Depois do Grande Sertão, Guimarães Rosa entrou em um beco sem saída: ou ele se renovava e já não era mais Guimarães Rosa, ou se repetia. Por isso, Grande Sertão não teve continuidade. Logo depois do lançamento do romance, encontrei-me acidentalmente com Sérgio Milliet, que era muito chegado ao Rosa. Ele me disse: "Este é apenas o primeiro volume, vai haver uma continuação que se chamará Grande Sertão: Cidades." Mas, em vez de escrever a continuação projetada, Rosa escreveu aqueles contos do Corpo de Baile, que são totalmente diferentes. Não conseguiu continuar seu projeto. Corpo de Baile é um livro que ninguém leu. Eu penso que o caso Guimarães Rosa precisa ser reexaminado pela crítica do futuro.

Estado - E Clarice Lispector?

Martins - Acho que a obra de Clarice também precisa ser repensada. Foi Clarice, e não Rosa, quem inaugurou o período estetizante de nossa literatura, pois Perto do Coração Selvagem é de 1943 e Sagarana, de 1946. A grande crítica, com as exceções de Antonio Candido e Sérgio Milliet, praticamente silenciou a respeito do romance de Clarice. E Rosa se apossou da glória de pioneiro, quando a glória devia ser dela. Rosa apossou-se ainda de outras glórias. Por exemplo, da glória de Mário Palmério que, em 1956, publicou Vida dos Confins, um romance que considero muito superior ao Grande Sertão. O romance de Rosa emocionou por causa de suas experiências lingüísticas. Mas, romance por romance, o de Palmério é melhor. Voltando a Clarice: depois de Perto do Coração Selvagem, ela caiu num certo limbo. No meu julgamento, seus livros de contos são infinitamente melhores que seus romances. Ela não é boa romancista.

Estado - Que valor você dá às experiências de Guimarães Rosa com a linguagem?

Martins - As experiências lingüísticas de Rosa têm importância como experiências lingüísticas, mas não como criação literária. Muita gente diz que o Rosa foi o nosso Joyce. Guardadas as devidas proporções, isso é verdade, mas só guardadas as devidas proporções. Ao contrário do que ensinam os irmãos Campos, Joyce renovou mais a narrativa do que a linguagem. Ele renovou a língua em Finnegans Wake, romance que é mais uma brincadeira do que um romance. Mas o Ulisses é, antes de tudo, um romance realista.

Estado - Você conhece os ficcionistas mais jovens. Leu, por exemplo, os livros de Bernardo Carvalho?

Martins - Li um livro desse rapaz, Os Bêbados e os Sonâmbulos, e realmente gostei muito. É uma história surrealista, mas que faz sentido. E é um livro muito bem construído. Ainda que, no fundo, tudo aquilo me pareça um pouco artificial.

Estado - Você não parece muito convencido, também, do prestígio de Nélson Rodrigues. Afinal, qual é o seu valor como dramaturgo?

Martins - Não sou admirador da obra do Nélson, que me parece um tanto demagógica. Penso que esse é mais um caso a ser reavaliado. Com sua biografia, O Anjo Pornográfico, Ruy Castro propôs a idéia de que Nélson é o grande dramaturgo brasileiro. Mas mesmo o Vestido de Noiva, que é sua única grande obra, já mereceu muitas ressalvas. Minha avaliação do teatro de Nélson não é nem um pouco positiva. Suas peças procuram sempre provocar escândalo. Ele multiplicava os incestos, as traições, fazia um teatro sensacionalista.

Estado - Como você vê nossa poesia desde a geração de Drummond, Bandeira e Vinícius?

Martins - Essa é uma geração que produziu grandes poetas, Bandeira e Drummond, sobretudo. Depois, em 45, surge a geração que se revolta contra a herança modernista, a chamada geração de 45. Mas ela foi incapaz de produzir um poeta do porte de Drummond. Mais tarde, vieram os concretistas, que formaram a nossa última escola poética organizada. Eles tinham um decálogo, regras de inclusão e de exclusão, combatividade. Mas tudo isso se concluiu num paradoxo: os concretistas produziram excelente teoria, mas não conseguiram fazer um só poema importante. Ficaram só nas experiências tipográficas e vocabulares, na poesia sem sentido. Os concretistas reformaram tanto a mansão da poesia que a tornaram inabitábel. Seu prestígio só perdura porque eles sempre foram muito brilhantes nas teorias e nos manifestos. E também extremamente agressivos.

Estado - Você faria uma avaliação parecida do modernismo de 22?

Martins - Não se pode ignorar o modernismo, pois ele propôs princípios muito oportunos. Mas hoje ele não faz sentido algum. É um pouco o mesmo caso do concretismo. O modernismo de 22 foi uma escola de obras falhadas. Você lê os manifestos, que são muito importantes, e percebe o que eles queriam ter feito e não fizeram. O próprio Mário de Andrade dizia: "Macunaíma, uma obra-prima que não saiu uma obra-prima." Mário é um escritor que está em segundo plano em todos os gêneros. Não foi um grande romancista, não foi um grande poeta. O Osvald de Andrade seguiu o mesmo caminho. A cada livro que Osvald publicava, dizia-se: "Bem, o próximo será um grande livro." E o grande livro nunca veio. O modernismo foi só um movimento de agitação.

Estado - Esses movimentos de agitação fazem falta?

Martins - Certamente que sim. Hoje não temos movimentos literários que sacudam o ambiente. E isso é muito ruim, pois eles fazem muito barulho e, mesmo sem criar grandes obras, favorecem a vitalidade criadora. Não importa a qualidade das obras, nem mesmo das teorias, o que importa é o barulho. Qual é a grande obra de Marinetti? É o futurismo como escola. O mesmo se pode dizer de Mário de Andrade. Sua grande obra não foi esse ou aquele livro, mas o modernismo de 22.

 



Wilson Martins
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30/05/2005