José Castello
O poeta do agora
Folhas de relva, de Walt Whitman.
Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes. Editora Iluminuras, 319
pgs. R$ 44
O poeta americano Walt Whitman
(1819-1892) foi o poeta do hoje. Nem o passado lamuriento dos
saudosistas, nem o futuro idealizado dos visionários. Para Whitman,
nada era melhor que o presente — e para fisgar o fogo do presente,
ele julgava, era preciso escrever em estado de máxima liberdade.
Liberdade que expressou em seus versos livres, sinuosos e
intermináveis.
Entre a herança fervorosa do
romantismo e as aspirações do modernismo, Whitman fez de sua poesia
uma encruzilhada. Um laboratório no qual a vida, com suas
complicações e grandezas, foi o único objeto. Cento e cinqüenta anos
depois de publicado, seu livro mais importante, “Folhas de relva”,
de 1855, recebe, enfim, uma tradução digna (de Rodrigo Garcia Lopes)
no Brasil.
Como cidadão, Walt Whitman foi um
libertário, que defendeu os direitos da mulher, o fim da escravatura
e a prática do amor livre. Esta visão antidogmática da vida
caracteriza também sua poesia. Enquanto ele viveu, “Folhas de relva”
teve várias edições, ampliadas, modificadas, num esforço nunca
completo para fisgar o que lhe escapava. Poeta da grandeza, ele teve
uma visão vital e nada sagrada, imperfeita, da literatura. Sabia
que, ao perseguir a grandeza, é com as migalhas que se fica.
A publicação de “Folhas de relva”
valeu a Walt Whitman a perda do emprego, um posto burocrático no
Ministério do Interior. Horrorizado com seus versos, seu chefe achou
que Whitman não se condizia com a imagem do bom burocrata de Estado.
E, na verdade, não deixava de estar certo.
Influência da pintura e também da filosofia
Poeta do presente, Whitman foi também
o poeta da vastidão. As imensas distâncias entre as estrelas e
constelações, as formas infinitas do espaço, a força devastadora do
vácuo que, no cosmos, esmigalha e anula nossas precárias noções de
tempo e de ordem, foram, sempre, suas referências. Diante delas, a
poesia se tornava só um soluçar.
Whitman foi, certamente, um místico,
pois entendia o homem e suas construções (entre elas, a própria
literatura) como miseráveis fragmentos de uma grande tela que
ninguém consegue ver. Dizer que foi um poeta religioso, contudo, é o
mesmo que afirmar, por exemplo, que Machado, porque desmascarou as
sutilezas que formam a sensibilidade humana, não foi um escritor,
mas um psicólogo.
A pintura, com suas abstrações
silenciosas, e a filosofia, em particular o pensamento dialético de
Hegel, também o influenciaram. Tudo o influenciava, e foi na via
dessa abertura para a existência e suas variações que ele chegou a
seus versos.
“Folhas de relva” é um poema da
transfiguração, que, no entanto, em vez de levar ao novo, conduz de
volta ao mesmo — só que um mesmo que, apesar disso, choca, porque
nele se vê o que não se pode habitualmente ver. “Chamas e éter
acelerando minhas veias/ Ponta traiçoeira de mim chegando e se
juntando para ajudá-los,/ Minha carne e meu sangue disparando raios,
até atingir algo nada diferente de mim”, Whitman escreve.
E mais à frente, num verso que
sintetiza sua atitude de poeta: “Espremendo a teta do meu coração
até alcançar a gota ali retida/ Folgando comigo, não aceitando não
como resposta/ Tirando o meu melhor...”. Diz-se, porque escreveu
versos obstinados, cheios de fé, que Whitman foi o poeta do
otimismo; mas isso não combina, ao menos, com a noção fácil de
otimismo que temos hoje. Otimismo? Whitman escrevia para voltar a si
— como alguém que cheira um pano encharcado em álcool para acordar
de um desmaio. Não é uma questão de fé, mas de sobrevivência.
Depois de recordar o hábito de Whitman
de anotar comentários pessoais à margem do que lia, o prefaciador e
tradutor Rodrigo Garcia Lopes rememora um diálogo silencioso entre
Whitman e outro grande poeta, John Keats. Whitman deparou, um dia,
com uma idéia fundamental de Keats: “Um poeta é a coisa mais
antipoética de todas que existem no mundo, porque ele não tem
identidade”. À margem desta frase, em resposta, ele anotou: “O
grande poeta absorve a identidade de outros, e a experiência de
outros, e elas são definitivas nele ou dele; mas ele as percebe
todas através da pressão sobre si mesmo”.
Pressão sobre si, resultado de uma
sensibilidade exposta, uma sensibilidade em fratura: era assim que
Whitman concebia a poesia, como uma invasão do mundo sobre o
sujeito. Uma ampliação radical de sua existência, não por
crescimento, mas por vazamento e por explosão — o poeta atravessado
pelas coisas vivas, devassado pelo presente, a alma esticada a seu
máximo, como a pele de um tambor, fazendo soar, através das
palavras, a pressão (e o fascínio) que o real exerce.
O presente como a grande dádiva
Whitman foi, ainda, o poeta da
aceitação, pois levou para a poesia a fórmula que o místico Henry
Thoreau assim formulou: “Um mundo de cada vez”. Por duvidar da
consistência das individualidades, por ver os homens transpassados
pela energia cósmica e por forças que sempre lhe escapam, ele
pensava, o presente é a grande dádiva. No presente, está tudo.
Encontramos em seus versos, por fim,
uma serenidade, que vem justamente desta aceitação. “Tudo no
universo está em ordem... tudo está em seu lugar,/ O que chegou está
em seu lugar, e o que espera, espera em seu lugar;/ (...)/ O diverso
não será mais diverso, e sim vai fluir e se unir... eles se unem
agora”, ele escreve.
Uma leitura medrosa concluirá, daí,
que Whitman foi um poeta do regresso, apenas um conservador. Nada
mais distante da estabilidade dos conservadores, nada mais longe de
suas gorduras e seus ritos preguiçosos, porém, que a poesia de
Whitman. “Folhas de relva” é, nesse aspecto, um livro que não se
pode ler, senão, em estado de entrega.
Se Whitman afirma que o universo está
em ordem, é porque acreditava que nos cabe aceitar cada coisa e cada
ser como ele é, cada sentimento, cada atitude, cada pequeno evento
como parte de um grande todo. Tudo isso, porém, está muito além do
dogma, ou de qualquer interesse pelas verdades fechadas. Verdades?
Para Whitman o que importava era a experiência gaguejante,
incompleta, tonta — como seus poemas. Era a folha de relva, a
balançar ao vento, frágil e com um destino breve e, no entanto,
cheia de grandeza.
JOSÉ CASTELLO é jornalista
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