José Castello
O indispensável transe da inspiração
12.06.2005
Contemplada com o Prêmio Camões de
Literatura 2005, que receberá em Guimarães, Portugal, em outubro, a
escritora Lygia Fagundes Telles conquistou, imediatamente, o mercado
português. A Editorial Caminha acaba de contratar a publicação, em
Lisboa, de três de seus livros mais importantes, os romances "As
Meninas" e "As Horas Nuas", e o livro de contos "Seminário dos
Ratos".
A entrega do Camões, com os 100 mil
euros correspondentes, seria agora em junho, mas Lygia anda cansada
e preferiu pedir o adiamento. Criado em conjunto pelos governos do
Brasil e de Portugal, para distinguir anualmente um grande escritor
da língua portuguesa, o Camões teve este ano, em seu corpo de
jurados, nomes como a portuguesa Agustina Bessa-Luís, o angolano
José Eduardo Agualusa e o caboverdiano Germano de Almeida.
Na entrevista que se segue, Lygia,
ainda perplexa com a notícia da premiação, fala de sua imensa fé na
literatura.
Valor: Em
uma época na qual os escritores parecem cheios de suspeitas e
desconfiam até da própria literatura, você continua a escrever com
grande serenidade, com grande segurança, demonstrando uma convicção
inabalável do ato de narrar. De onde vem essa obstinação?
Lygia Fagundes Telles: Para escrever, você precisa se
entregar a seu personagem, a seu enredo e a sua idéia. Tem de ser um
ato de amor, uma doação absoluta, e você não sai do transe enquanto
não dá por acabado, enquanto não decifra o humano. Ocorre que o ser
humano é indefinível. Por mais que tente, você não consegue
defini-lo. O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável,
ele está sujeito a esses três is. Mesmo assim, quando você se
entrega a um personagem, essa entrega deve ser total, sem reservas,
uma doação apaixonada, como acontece nas relações de amor.
Valor: Contudo, a imagem do escritor,
hoje, é cada vez mais cerebral. Ele se vê, cada vez mais, como um
intelectual que escreve. É cético, cheio de reservas, de
desconfianças.
Lygia: Mas quando você se entrega, tem de ser com
esquecimento, tem de escapar de si. Para escrever, o escritor
precisa desaparecer, e só então ele diz o que tem a dizer, só com
essa ausência a trama se desenrola. Quando a trama se encerra, aí
sim você volta a si. Quero dizer, volta, mas não volta. Esse transe,
indispensável para a criação literária, pode ser definido por uma
palavra antiga, e em grande descrédito, mas a que uma escritora como
Clarice Lispector dava muita importância: inspiração. O que é a
inspiração? É um momento mágico, misterioso, uma possessão. Creio
que, para o escritor, passar pelo transe é fundamental. Sobretudo no
Terceiro Mundo, onde a miséria e a ignorância são tão brutais.
Então, para escrever, você tem de se embriagar de esperança, senão
simplesmente não consegue ir em frente.
Valor: A idéia da esperança, também
ela, parece, hoje, de má fama, atravessa um grande descrédito, pois
vivemos um tempo regido pelo sentimento de desilusão. Você não a
teme?
Lygia: E. M. Cioran, o mais triste dos filósofos, dizia: "Não
quero a sabedoria da desilusão. Quero a sabedoria da ilusão, que é o
sonho." A desilusão, sem dúvida, é sábia, é maliciosa, é lúcida. Mas
Cioran prefere a sabedoria do sonho, e eu também. Temos de nos
embriagar com essa liberdade para sonhar, e para acreditar. Sartre,
hoje tão fora de moda, já dizia isso. Nós, escritores, seremos
esquecidos, sabemos perfeitamente disso. Sabemos que o mar morto da
literatura está cheio de talentos submersos. É o Drummond quem diz:
"Tu não me enganas, mundo, e eu não te engano a ti." Mas não tem
sentido se deter nessa constatação. É preciso conservar a fé na
literatura, senão você não consegue escrever.
Valor: E de onde você tira essa
esperança?
Lygia: As coisas mínimas me animam. Uma vez, me homenagearam
na periferia de São Paulo. Quando quero me animar, quando me sinto
sem forças, penso sempre nessa cena. Para me prestar uma homenagem,
a Secretaria de Educação de São Paulo reuniu, certa vez, um grupo de
estudantes da periferia, todos muito pobres, para um bailado de
adolescentes. O balé era inspirado em meu romance "As Meninas".
Esses garotos, que eu não verei mais e já nem sei quem são, dançaram
um balé comovente. Lá estavam, vivas, as personagens do romance:
Lorena, a burguesa, Lia, a subversiva, e Ana Clara, a drogada. No
final, quando as duas que sobrevivem carregam a morta nos ombros, eu
desabei e comecei a chorar. Era tudo tão simples, tão precário e
corajoso. E aquilo me encheu de esperança no Brasil. Aquilo me deu a
certeza de que temos, sim, de sonhar.
Valor: Seu livro mais recente reúne
contos esquecidos. Por que esse esquecimento?
Lygia: Quando fiz minha primeira seleção de contos ("Meus
Contos Preferidos", Rocco, 2004), simplesmente esqueci deles. Sou
uma ingrata, sou uma droga de escritora, uma patife - é o que eu me
dizia depois. Os leitores reclamavam e eu me perguntava por que não
os incluí. Com "Meus Contos Esquecidos" (Rocco, 2005), enfim os
trago de volta. Eu os tinha afastado, mas um dia lá longe, como no
amor, muitos anos depois da separação, você se pergunta: Meu Deus, o
que é que eu fiz? Você se pergunta por que afastou o outro, por que
o esqueceu. Com os contos é a mesma coisa. A sorte é que, na
literatura, ao contrário do que ocorre no amor, o esquecido está
sempre lá, esperando, e você pode recuperá-lo.
Valor: Isso mostra a dificuldade dos
escritores para avaliar o que fazem?
Lygia: Certamente, os escritores têm uma grande dificuldade
para decidir a respeito do valor, ou da falta de valor, do que
escrevem. E por isso eu preciso tanto do leitor. Ele não entra, é
claro, no processo criativo, mas depois se torna um cúmplice, depois
ele me ajuda a desembrulhar o que estava embrulhado. O leitor é
cúmplice, não de um crime, como no conto policial, mas de uma
criação. Ele te ajuda a trazer à luz o que estava perdido. Os
escritores precisam do leitor. Na escrita, você tira sua máscara,
mas nem toda; é o leitor, no fim, quem te ajuda a puxá-la.
Valor: Um conto estupendo como "A
testemunha", a história de um homem que tem certeza de que foi
tomado pela loucura, que cometeu alguma barbaridade e depois
esqueceu de tudo, ilustra o grande refinamento psicológico de suas
narrativas.
Lygia: Pois é, e esse homem, Marino, que é um louco, tem no
outro, Rolf, uma testemunha perigosa de sua loucura. Então, resolve
acabar com ele, na esperança de, assim, anular o perigo que a
loucura representa. Na vida criminal existe muito isso: acabar com o
outro, matá-lo, para se livrar daquilo que o outro vê. Mas, quando
Marino mata Rolf, ele não mata a loucura, ela persiste. A loucura
continua ali, nada mudou.
Valor: De qualquer modo, no fim do
relato, o leitor não tem certeza se Marino cometeu ou não o tal ato
de loucura de que tenta fugir. Isso lembra o mistério de "Dom
Casmurro", de Machado, e a dúvida nunca resolvida a respeito da
traição de Capitu. Como escritora, mas também como advogada, você
acha que Capitu traiu Bentinho com seu amigo Escobar? Ou ela não
traiu e tudo não passa de uma fantasia persecutória que Betinho
experimenta?
Lygia: Como você sabe, escrevi, com Paulo Emilio Salles
Gomes, um livro ("Capitu", Siciliano, 1993) a respeito de "Dom
Casmurro". Na verdade, um roteiro de cinema inspirado no romance.
Veja, Bentinho só percebeu que a Capitu era amante do Escobar, ou
podia ter sido amante, quando, no enterro de Escobar, ele olha para
Capitu e percebe em seu olhar a mesma expressão aflita que encontra
na face da viúva. É um detalhe, mas um detalhe que, para ele,
desmascara a mulher. É o encanto da dúvida eterna que faz o romance
de Machado imortal. Se o Machado lhe desse uma solução, o fascínio
acabaria. Agora, por que a certeza de Bentinho é suspeita?
Simplesmente, porque ele é o narrador do romance. E o narrador,
aquele que rememora, é sempre suspeito. É o lugar que ele ocupa na
narrativa, e não algo que fez ou deixou de fazer, que o torna
suspeito. Esse é o segredo da permanência de "Dom Casmurro": a
inexistência da verdade absoluta.
Valor: Você se esquivou de minha
pergunta. Afinal, Capitu traiu ou não Bentinho?
Lygia: Li "Dom Casmurro" três vezes. Quando li pela primeira
vez, eu era uma jovem estudante de direito, e fiquei com muita pena
de Capitu. Eu pensava: esse Bentinho é um doido, um neurótico, é
claro que ela não o traiu, ela é só uma vítima de sua loucura.
Quando li o romance pela segunda vez, já era uma mulher adulta.
Então, mudei de idéia, e me pareceu que Capitu traiu Bentinho.
Capitu era uma manipuladora, desde criança ela manipulava Bentinho,
e Bentinho era só um inocente. Era uma dissimulada, e ele um
ingênuo. Li "Dom Casmurro" pela terceira vez, enfim, junto com Paulo
Emilio, para trabalhar em nosso roteiro. Lembro que o Paulo me pediu
que, pelo amor de Deus, suspendesse o juízo. Eu não devia definir
nada, ele insistia, pois o livro é inatingível - aquela história dos
três is. Eu devia simplesmente entregar o problema para o leitor.
Valor: Você pediu o adiamento da
entrega do prêmio Camões. O que pretende fazer até lá?
Lygia: Preciso descansar, talvez viaje uns dias para algum
lugar calmo. E preciso ler. Nesse momento, releio "A Arte de Viver
em Tempos de Catástrofe", de Santo Agostinho. Leio para me consolar.
E releio também a poesia de Drummond e de Bandeira. Nós estamos com
medo, mas não podemos permitir que o medo tome conta de tudo. Um
escritor sem esperança é uma contradição. Outro dia, conversando com
o José Rubem Fonseca, ele me dizia que, nos momentos de pessimismo,
é preciso ler poesia, e ouvir música. Penso num poema de Drummond,
"O Congresso Internacional do Medo". Veja que lindo: "Cantaremos o
medo da morte e o medo de depois da morte/ Depois morreremos de
medo/ E sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas".
Temos que recorrer à música e à poesia, para nos proteger de uma
realidade que é muito dura. Lembro aqui também de uns versos do
Celso Augusto, um poeta que morreu tão jovem: "Em todas as partes
onde estou/ Eu sinto um cheiro de festa/ Eu sei que a festa acabou".
Para não ceder à desilusão, apego-me à poesia e à música, para me
salvar.
Leia Lygia Fagundes
Telles
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