José Castello
A velha guerrinha da literatura
03.06.2005
Muitos se surpreendem com os exageros,
intrigas e rixas que distinguem a vida literária de hoje. Pois a
vida literária não mudou muito ao longo do último século. A
oportunidade de um cotejo nos é oferecida, agora, com o lançamento
de uma cuidadosa quarta edição do clássico “A vida literária no
Brasil/1900” (José Olympio/ Academia Brasileira de Letras, 400
páginas), do crítico paulista José Brito Broca (1903/1961). O livro,
de 1957, que mereceu do autor uma edição revista e aumentada três
anos depois, é, ainda hoje, um dos mais curiosos estudos sobre a
tensa, mas influente relação entre mundanismo e literatura.
Ele seria o terceiro volume de um
trabalho mais longo que Brito Broca projetou, e não realizou, sobre
a vida literária no Brasil, pois morreu precocemente, aos 58 anos,
atropelado na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Ficou o volume
solitário, em que Broca devassa a vida literária brasileira na
primeira década do século 20. Período que se caracteriza pelo que o
ensaísta chama, com brandura, de “a morte da polidez”.
As polêmicas literárias, à moda do
furioso Carlos de Laet (1847-1927), não foram obra de espíritos
solitários. A amizade de muitos anos não impediu que os críticos
Sílvio Romero e José Veríssimo tivessem uma áspera polêmica em torno
da figura do filósofo Tobias Barreto, que o primeiro defendia
apaixonadamente, e o segundo desprezava. Veríssimo, nos lembra Brito
Broca, não só reduzia as dimensões do filósofo pernambucano, como
negava, até mesmo, a existência da célebre Escola do Recife, que ele
chefiou. Indignado, Silvio Romero trocou os argumentos literários
pelo recurso infantil dos apelidos para se desforrar.
“Começa por chamá-lo de Tucano
Empalhado, em seguida passa a tratá-lo de Zé Bríssimo, Quasímodo -
alusão ao físico pouco esbelto do crítico -, dando-lhe, por vezes,
em tom galhofeiro, o tratamento familiar de Zezé”, recorda Broca. A
acidentada adjetivação não devia espantar, já que o mesmo Silvio
Romero, em polêmicas anteriores, tratara Laudelino Freire de “o
Burregote”, chamara Capistrano de Abreu de “o Caspento”, ou “o
Seboso”, e a Valentim Magalhães simplesmente de “Coringa”.
Gramática como ofensa pessoal
Era não só a morte da polidez, como a
transformação da crítica literária em um gênero espinhoso, que
confundia as restrições duras a um livro com o ataque pessoal
desbocado a seu autor. Na polêmica com José Veríssimo, Silvio Romero
não poupou adjetivos para destruir seu desafeto. Chamou-o de
“espírito malévolo e indeciso, pretensioso e precavido, insolente e
cheio de cautelas e receios”. Mesmo quando a discussão era de
caráter “técnico”, por exemplo, quando envolvia questões objetivas
de gramática, a temperatura se elevava. Assim como Carlos de Laet e
Camilo Castelo Branco tiveram, anos antes, enérgicas polêmicas a
respeito de erros de português, Rui Barbosa emprestou, no início do
século 20, um teor ainda mais grave às disputas gramaticais, cujas
diferenças passaram a ser tratadas como ofensas pessoais, ou
manifestações do mal.
Foi Silvio Romero, ainda, quem
conseguiu a proeza de polemizar com o discreto Machado de Assis, a
quem chamou, com mão pesada, de “capacho de todos os governos”.
Antipolemista por temperamento, Machado teve que enfrentar, ainda,
discussões ferozes com críticos como Pires de Almeida e até com um
poeta como Cruz e Sousa a quem se atribuem, lembra Brito Broca, “uns
versos terrivelmente maldosos sobre o autor de Braz Cubas”.
É verdade, e nesse ponto o livro de
Broca prima pelo equilíbrio, que a vida literária, já na primeira
década de 1900, se pautava, também, pela amizade sincera entre
escritores às vezes muito diferentes. Embora “constituíssem, mesmo,
a antítese do outro”, lembra Broca, Machado de Assis foi um amigo
devotado de Joaquim Nabuco. Também com José Veríssimo, “de quem se
achava separado por sensíveis diferenças de temperamento”, Machado
alimentou uma amizade autêntica.
Algumas amizades, porém, como a que
ligou o experiente Joaquim Nabuco ao jovem Graça Aranha, foram
marcadas por investimentos secretos e compensações emocionais. Em
carta datada de 1905, Nabuco escreve ao jovem amigo para fazer um
desabafo surpreendente: “Quanto a nós dois, particularmente nada em
minha vida me parece tão generoso da parte da providência como a sua
amizade.” Ele cultivou, também, uma amizade ainda mais improvável
com Oliveira Lima, o tipo do homem, nos diz Broca, “feito para não
se entender com Nabuco”. Outras amizades célebres, como as que
uniram Francisco Escobar e Euclides da Cunha, ou Monteiro Lobato e
Godofredo Rangel, são dignas de registro. E ajudam a traçar uma
imagem menos corrosiva, e mais civilizada, da vida literária
brasileira.
Assim como Machado de Assis, o próprio
Brito Broca - relata o prefaciador desta edição, Francisco de Assis
Barbosa - “abominava as discussões estéreis, não por comodismo ou
por esperteza, mas pelo tédio à controvérsia”, justifica. Daí, mesmo
quando não se furta a tratar de temas espinhosos, ele conserva,
sempre, a elegância e a delicadeza. Para Broca - um crítico que
rejeitava com ênfase qualquer exposição pessoal - a vida literária
era, necessariamente, solitária, silenciosa e desinteressante. Assis
Barbosa conclui a respeito que, quando defendia Machado, era a si
mesmo que Broca estava defendendo.
Bilac e a turma do absinto
Com ou sem polêmica, a partir do
século 20, a literatura brasileira se viu irremediavelmente
envolvida em uma atmosfera de crescente mundanismo. Vida e
literatura eram, quase, uma coisa só. Já em 1904, Olavo Bilac
protestava contra a tendência romântica de se considerar o poeta um
ser estranho na criação, um homem à parte na sociedade, e se
empenhava em disseminar, ao contrário, a imagem do poeta como “um
homem como os outros”. É o primeiro sinal de que a literatura se
ligava, a partir daí, à vida concreta e material.
Sinais dos tempos. O Rio de Janeiro
passava por um radical processo de urbanização e modernização. Ampla
e “européia”, a nova Avenida Central monopolizava o burburinho antes
reservado à estreita Rua do Ouvidor. Por contraste, nos sugere Brito
Broca, podemos pensar na decadência de algumas figuras emblemáticas
do século que ficava para trás. Por exemplo, o poeta, romancista,
orador e jornalista José do Patrocínio (1854-1905). Depois da
vitória da campanha abolicionista, Patrocínio, o herói, entrou em
uma fase de ostracismo, “esquecido pelas mesas de café, nas rodinhas
dos amigos, em torno dos cálices de vermute, a contrair dívidas”,
como Broca nos descreve.
Ainda enfrentaria uma última e estéril
batalha: a luta obsessiva para construir um balão dirigível que,
relata o ensaísta, “seria a maior conquista do século XX”. Para
isso, Patrocínio se isolou em uma espécie de hangar no subúrbio
carioca de Inhaúma, empenhado febrilmente na construção da aeronave,
que teria o nome de Santa Cruz. Mas o tempo passava e o balão não
subia. “Começaram as troças pelas mesas de café”, relata Brito
Broca. “Patrocínio é acusado de servir-se do pretexto do balão para
obter dinheiro.” Quando ele morreu, em 1905, a carcaça do Santa Cruz
foi vendida em leilão, não como obra de um homem de gênio, mas como
ferro-velho.
Com a falência do dirigível de
Patrocínio, era um século inteiro que se encerrava. Outros
fracassos, Brito Broca sugere, indicavam o fim inexorável de uma
era. Retido em uma zona de esterilidade, Aluísio Azevedo, o autor de
“O cortiço”, não conseguia realizar seu projeto “maior”, que era o
de se transformar em um Eça de Queiroz brasileiro. No fim do século
XIX, lutando para sobreviver, ele prestou concurso para a carreira
consular, decisão que o levou para cenários distantes como a Galiza,
a Inglaterra, o Japão. Em 1907, ocupando posto diplomático em
Nápoles, o escritor recebeu a visita de Rodrigo Otávio. Quando o
amigo lhe perguntou pelo grande livro em andamento, ele respondeu,
constrangido, que “faltava-lhe a atmosfera, a paisagem, o
espetáculo”. E não falou mais.
Enquanto muitos decaíam, o Rio de
Janeiro se civilizava, o que se expressava em coisas simples, como a
nova moda do chá das cinco. Aquela foi, como diz Brito Broca, a era
de uma nova boêmia, “dourada”, ou uma “boêmia de salão”, que tinha
em Paris e nas coisas francesas suas referências maiores. Surgiram
os salões literários e também os grandes cafés, como o Java, o Café
Paris e o Café Papagaio. Na Confeitaria Colombo, Bilac e sua turma
podiam ser vistos a embebedar-se com o absinto. Estabeleceu-se,
assim, um forte elo entre a literatura e o álcool que, sugere Brito
Broca, tinha como objetivo secreto “literalizar a vida”. Já não
bastava ser poeta, era preciso viver como poeta. A literatura
invadia a cidade.
Como se estivessem em Paris
Homens mais discretos, como Machado de
Assis, porém, não freqüentavam bares e cafés, mas podiam ser
encontrados, por certo, nas livrarias. A primeira delas, a Garnier,
ficou conhecida como “A Sublime Porta”. Também a Academia
Brasileira, dedicada às letras, se tornou uma referência
obrigatória. Já em 1905, ela era objeto de um escândalo, quando o
jovem Mário de Alencar, apadrinhado por Machado de Assis e pelo
barão do Rio Branco, e só por isso, conquistou uma cobiçada vaga de
imortal. Os escândalos, desde então, proliferaram. Em 1912, Lauro
Muller, chamado de “o não-escritor”, e apesar disso, também era
eleito. Na posse de Euclides da Cunha, e diante do presidente Afonso
Pena, convidado mais ilustre da noite, Silvio Romero fez ataques
constrangedores aos importadores de café. As mesas de chá se
agitavam, a vida literária fervia.
Todos, sem exceção, se comportavam
como se estivessem em Paris, em um filme da Pathé Frères, ou da
Gaumont, ou contracenando com Regina Badet, ou Sarah Bernhardt. “O
chique era mesmo ignorar o Brasil e delirar por Paris, numa atitude
afetada e nem sempre inteligente”, diz Brito Broca. Eram poucos, e
discretos, os dissonantes, entre eles Euclides da Cunha, a quem
Broca chama simplesmente de “antiparisiense”.
Outros modismos agitavam a vida
literária. A Grécia, que deslumbrava Bilac, e cuja lembrança
insistente ele considerava “um milagre psíquico”. E que inspirou
ainda o poeta Dario Veloso, levando-o a criar um improvável
Instituto Neo-pitagórico em Curitiba, com o propósito do culto a
Pitágoras. Vítima de seu tempo, o filósofo Tobias Barreto chegou a
dizer: “Eu sou grego.” E Joaquim Nabuco “viu”, em Machado de Assis,
também, um grego autêntico. Mas as modas literárias vinham, também,
dos eventos do presente. O processo contra Oscar Wilde, por exemplo,
teve grande repercussão e o “Retrato de Dorian Gray” se tornou um
livro da moda. Nietzsche, o autor de “Assim falou Zaratustra”,
também virou objeto de culto. Modismo que levou o cronista João do
Rio, que nunca perdoava um exagero, a escrever: “O sr. Alberto Ramos
já se achou; Zaratustra acompanha-o. É talvez o único homem no
Brasil a quem Zaratustra dá essa honra.”
Outra moda era Eça de Queiroz. Quando
o poeta Olavo Bilac tomou um navio para Lisboa, os amigos que o
acompanharam até o cais, entre lágrimas e gritos, “citavam versos
com alusões aos personagens do romancista português”, como se ele
fosse se encontrar com os personagens de “Os Maias”, ou “O primo
Basílio”. Esses personagens eram tidos pelos leitores brasileiros de
Eça, nos recorda Broca, como gente de carne e osso. Mas talvez
nenhum modismo tenha chegado ao extremo daquele alimentado pelos
simbolistas e seu “culto da poesia”. Antes de qualquer verso ou
citação, a moda começava já pela indumentária. “Eram polainas, capas
espanholas, chapéus desabados, gravatas de cores berrantes,
monóculos insolentes”, descreve Broca. Um poeta como Calixto
Cordeiro, por exemplo, se tornou famoso por seus “sapatos
bicudíssimos com fivelas de prata, gravatas de quatro voltas à Diogo
Antonio Feijó e caveirinhas de ouro, de prata, de coral, de marfim
por todo o corpo.”
Houve ainda, outro reflexo parisiense,
a mania das conferências, que Broca considera uma verdadeira
epidemia. A noção de ridículo não era muito forte: algumas delas
chegaram a ser proferidas em versos. A peste das conferências levou
Bilac a se perguntar, com ironia, o que surgiria depois dela. Seria,
quem sabe, “a dança do ventre, ou o faquirismo, ou os balões
cativos, ou os duelos, ou os divórcios, ou os suicídios em massa”,
ele sugere.
Já no início do século passado,
escritores se lamentavam das dificuldades para receber bons direitos
autorais e, assim, viver de literatura. Quando recebeu o balanço de
vendas da primeira edição de “Os sertões”, pela Laemmert & Cia,
resignado, o escritor Euclides da Cunha lastimou: “As despesas
foram, de fato, grandes, de sorte que, dividindo o líquido, terei um
ou dois contos de réis”. A literatura era um modismo, era uma festa,
era um estilo de vida, mas não chegava a ser um ofício. “Ah, o que
seria da literatura neste país se não fosse isso que Euclides chama
de lucro de ordem moral?”, Broca se pergunta, sem disfarçar o
desencanto.
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