Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Cecília Quadros


 

A empregada

 

A casa parecia pequena, mas enganava - o terreno era estreito, mas comprido - e ela se estendia quase até o muro dos fundos. Tínhamos escritório, sala de música, de jantar e três quartos, um dos quais não era ocupado, pois ficava um tanto isolado, depois da copa, banheiro e cozinha. Localizava-se num bairro privilegiado, rodeada de casas bonitas, perto de uma praça e do Ginásio. Alegrava-a um pequeno jardim e o céu sempre claro da cidade; também o movimento da família, as músicas ouvidas no rádio, o som do piano, as escalas. Além da família circulava pela casa uma empregada, ajudando minha mãe, sempre atarefada. Meu irmão pequeno, o Fábio, ainda dava muito trabalho.

Tinha eu naquela época cerca de dez anos e minha irmã mais velha doze e começávamos a perceber as diferenças de classe. Os adultos trabalhavam, nós crianças estudávamos, mas parece que tínhamos retorno: futuro, bens, conforto, o que não era o caso das empregadas. Lembro que mamãe era exigente, as substituía com freqüência e assim elas iam passando. Com o tempo, rostos e identidades apagados.

Assim foi com uma delas, que se empregou, pedindo para ocupar o quarto dos fundos, pois sua família residia num sítio. Como era jovem e tinha namorado, lhe foi permitido sair à noite, mediante a condição de ser silenciosa e não voltar muito tarde (meu irmão tinha sono leve, e qualquer ruído o acordava). Ela respeitou o trato.Mesmo assim, todas as noites eu e minha irmã Helina ouvíamos os seus passos no corredor externo e o girar da chave.

Uma manhã, bem cedinho, fui até seu quarto - não me lembro o motivo: só sei que todos ainda dormiam - e deparei com uma cena inesquecível, que muito me perturbou: na cama bem junto dela, aconchegada, havia uma criança, provavelmente da idade do meu irmão pequeno. Pega de surpresa, a moça me olhou com olhos assustados, mas não disse e não me pediu nada. Eu também nada falei e saí rápido, fugindo do constrangimento e sentindo muita pena. Apesar da pouca idade, compreendi instantaneamente suas saídas e o que aquela criança significava.

Naquela época havia muito preconceito em relação às mães-solteiras e às empregadas - seus defeitos eram o assunto predileto das comadres.

Guardei segredo do que vira, pensando na criança e na mãe que ternamente a abraçava, na minha própria mãe e no Fábio. Sentia que a ninguém traíra, afinal havia em casa aquele quarto desocupado.

Hoje vejo que em meu longo silêncio, quase até os dias de hoje, havia não somente pena, mas também pudor: não queria mostrar generosidade à custa da coitada...

 

 

 

 

 

09.11.2005