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Celso Brito


 


Música para meus olhos


 


 

O que conforta é saber que apesar dessa fugacidade, em meio ao descartável de plástico e papel, haverá sempre velhos discos na estante, um objeto de cristal refletido contra a luz, pratarias escondendo o brilho nas cinzas das explosões.

A expressão “isso soa como música nos meus ouvidos” deveria mudar. Atualmente faz mais sentido dizer “isso soa como música nos meus olhos”. E em seguida deveríamos fechar olhos e ouvidos para boa parte da música que se tem feito nos últimos tempos. É que hoje quase não é mais possível ouvir música. Hoje se ver música, invariavelmente seminua, insinuante e rebolativa. Música se assiste, no megaevento cheio de luzes, efeitos visuais, explosões e imagens que enganam os olhos para encher os ouvidos de barulho. E isso de modo algum pode ser compreendido como uma evolução da fusão poesia-música-teatro-dança, praticada desde os trovadores da idade média.

O que se encena é um espetáculo sem precedente próximo ou distante; recheado, na maioria das vezes, de um apelo sexual que beira a pornografia. Em letra e dança o objeto feminino figura despido de roupa e valor. Ritmo e melodia se repetem, num verdadeiro movimento da estética do plágio.

Mas muita coisa foge a essa regra, muita gente ainda faz música “como nossos pais”, no melhor sentido que essa expressão pode ter. Só que as rádios não tocam, a televisão não mostra, os jornais não dão uma linha. Tudo bem, se a mídia não muda, mudamos nós: de canal, de jornal, de estação. Só que nem “tudo é tão simples que cabe num cartão postal”. A autonomia do espectador em relação à mídia é um tanto complexa. O controle remoto na mão não é mais arma suficiente contra a mesmice. A falta de criatividade é hoje onipresente em quase tudo que se ver e ouve ao ligar o rádio ou a televisão.

Sobre essa questão, na maioria das vezes prevalece a máxima de que a mídia mostra o que o povo quer. Mas como já dizia (se não me falha a memória) o nosso Ministro da Cultura, ex-Gilberto Gil, “o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. E isso que realmente falta: apresentar ao espectador o que o espectador não conhece ainda, e deixar na decisão de quem aprecia o sim ou não querer. Ao contrario disso, na mídia a regra é repetir o que deu certo, ou melhor, o que deu audiência. Sejamos então otimistas. Pensemos que muita coisa mudou nas últimas décadas. As FMs, por exemplo, que antes tocavam mais lixo internacional agora tocam mais nosso próprio lixo musical. Trocamos um lixo pelo outro e continuamos consumindo a mesma mercadoria.

Certo é que a música enquanto arte passou a fazer parte do “império do descartável”, descrito por Rubens da Cunha. Grupos, duplas, bandas, estrelas e pop stars crescem e desaparecem com a mesma efemeridade dos seus ritmos e canções. Assim com em outras manifestações desses tempos modernos, na música “tudo é barulhento, luminoso” e tem pouca duração. Na música também temos os cantores-estou-analisando-uns-projetos, como as celebridades instantâneas do manifesto de Cunha.

Mas isso não é motivo ainda para saudosismos, depressão ou desespero. Em meio a essa onomatopéia desvairada, música ainda é um “pega-pra-capar, questão de sentimento: o afogado em pleno mar que agarra a mão do vento e ri, usa o sofrimento pra poder flutuar”.

O que conforta é saber que apesar dessa fugacidade, em meio ao descartável de plástico e papel, haverá sempre velhos discos na estante, um objeto de cristal refletido contra a luz, pratarias escondendo o brilho nas cinzas das explosões. Os que fazem música para os ouvidos resistirão às maresias e temporais. Já os que nos entram pelos olhos, serão corroídos pelo salitre da mesmice e desaparecerão, levados pelas novas ondas que invadirão essas praias.


Celso Brito é poeta, reside em Saquarema-RJ.
[Texto publicado na versão impressa de Poiésis - Literatura, Pensamento & Arte, nº 114, setembro de 2005, pág. 13]


 

 

 


 

11/07/2006