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Carlos Felipe Moisés


 

 

Campos de Carvalho redescoberto

 

Quem tem medo de Campos de Carvalho?, de Juva Batella. 7Letras, 289 páginas. R$ 35

 

Anos atrás, ao iniciar uma palestra na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Vargas Llosa recorreu a uma frase de efeito, que em português soaria: “A universidade, como sabem os senhores, é o túmulo da literatura”. Se o escritor peruano conhecesse trabalhos como o de Juva Batella, acrescentaria “...mas há exceções”. Nesses termos, “A corda de quatro pontas”, que é como se chamou o livro no formato original (dissertação defendida na PUC do Rio de Janeiro, em 2001), seria um trabalho de estrito interesse acadêmico; no novo formato, interessa a todos os leitores.

Escritor aparece no livro tão vivo como sempre foi
 

Segundo a retórica de Vargas Llosa, a diferença é que, retalhado pela Academia, Campos de Carvalho sairia mais morto do que já estava; no livro, aparece tão vivo como sempre foi. A chave, além da rigidez protocolar, seria a postura dita “científica” (isenção, distanciamento, impessoalismo, objetividade etc.) que a universidade persegue e, no geral, resulta em autópsia. Na contraface teríamos, embora nem sempre para negar a primeira, a postura do leitor que se deixa conduzir pelos estímulos da obra analisada, aceita a identificação e a empatia como procedimentos legítimos e não teme o subjetivismo. Enquanto a dissertação trata de erguer uma “armação” internamente coerente (mas nem sempre coerente com a realidade literária em causa), o livro dirigido ao leitor não-acadêmico não leva isso muito a sério, só um pouco, e não se cansa de perguntar: “Afinal, de que se trata?”.

Trata-se de um autor de obra reduzida (dois livros repudiados: “Banda forra”, 1941, e “Tribo”, 1954); outros quatro reconhecidos: “A lua vem da Ásia”, 1956, “A vaca de nariz sutil”, 1961, “A chuva imóvel”, 1963, e “O púcaro búlgaro”, 1964. Campos de Carvalho chegou a causar agitação, na época, por sua obsessão com a loucura, a morte, a sexualidade desenfreada, o (falso) niilismo, o nonsense, a irreverência e a escrita rebelde, e logo depois ficou quase três décadas esquecido, para então ser redescoberto. O que se passou é simples. A aberração de um mundo sem sentido, tomada nos anos 50-60 como “mania” do autor, hoje pode ser entendida como antevisão ou representação simbólica da realidade que nos cerca — além de poder ser experimentada no dia-a-dia, por qualquer um, sem intermediação ficcional. Por isso, insinua Batella, já não haveria por que ter medo do escritor.

A “armação” deste ensaio ex-dissertação baseia-se exatamente na identificação e na empatia e se traduz no corpo-a-corpo com aqueles quatro romances. Batella analisa-os um a um, na ordem cronológica, procurando ali mesmo, no texto, o seu sentido possível. Ou sua falta de sentido. E municiado não pelos pressupostos teórico-metodológicos que a Academia costuma chamar de “linha de abordagem”, mas pela inquietação existencial e estética do leitor apaixonado pelo que vai descobrindo. Dos pressupostos acadêmicos ficaram só alguns vestígios, como a aversão à “falácia biográfica”, a protocolar “contextualização” da obra e as abundantes notas de rodapé (257 ao todo), que não aparecem no rodapé mas, aos blocos, no final de cada capítulo, longe do alcance do leitor menos meticuloso.

O fato é que Juva Batella escreve com admirável fluência e poder de persuasão, não só porque é também um talentoso ficcionista, mas porque soube aproveitar o que a experiência universitária tem de melhor, como o rigor, a precisão vocabular, o hábito da leitura maliciosa, que não se satisfaz com os sentidos aparentes e vai às entrelinhas, sem nunca perder de vista o fundamental: o que está em causa, no ensaio crítico, é a peculiaridade da obra analisada e não as convicções do analista. Por isso este livro funciona como o testemunho do leitor empolgado com a matéria de vida flagrada na obra e não como o esforço burocrático em demonstrar a procedência de qualquer interpretação “profunda” e “definitiva”.

Questão do foco narrativo é retomada constantemente
 

O risco da dispersão é contornado com maestria: o autor monta habilmente um percurso que é linear mas não deixa de ser também circular, graças à constante retomada da mesma questão: o foco narrativo. Batella observa que os quatro romances de Campos de Carvalho são narrados em primeira pessoa e extrai daí a sua “hipótese” de trabalho. O que poderia ser tratado como símbolo (a consciência egocentrada) ganha sentido literal: em vez de quatro protagonistas-narradores ou quatro narrativas contadas em primeira pessoa, teríamos um só e o mesmo protagonista, uma só e a mesma história, nos quatro romances. Vale dizer que a hipótese vira uma “tese” demasiado lógica e mecanicista, mais para dissertação do que para livro. Mas como isto só aparece no capítulo final, não é nada que comprometa o prazer, proporcionado por Batella, do contato vivo com a riqueza e a individualidade de cada romance de Campos de Carvalho.


CARLOS FELIPE MOISÉS é autor de “Lição de casa” (poemas reunidos, 1998) e “O desconcerto do mundo” (ensaios, 2001), entre outros livros
 

 

 

 

 

08/04/2005