Carlos Felipe Moisés
Os
Poemas da Besta,
de Soares Feitosa
Na primeira leitura não resisti ao
tom empolgado, condoreiro, eu diria, do autor. Deixei-me tocar e
comover por várias das indicações e registros aí consignados. Talvez
um pouco aturdido pela empolgação --a do texto e a que o texto
desencadeou em mim--, não fui capaz de atinar com a causa
substancial dessa mesma empolgação.
Algum tempo depois, fui a uma segunda
leitura, já menos arrebatada. O que me ocorreu, então, não foi
propriamente discordar de Soares Feitosa, mas colocar as mesmas
questões debaixo de outro ponto de vista, que eu nem chegaria a
dizer que é meu (na verdade, não é), pois fiz o possível para que
fosse impessoal.
A distinção entre os dois pontos de
vista, este e o do autor, mais do que doutrinária, é da ordem do
temperamento. O meu busca fugir da empolgação, embora nem sempre
consiga; busca, das coisas (a poesia incluída), uma visão serena,
distanciada. Sei que para muitos isto soa herético. Se assim é,
diriam, melhor eu cuidar de outro assunto, que não a poesia, pois
esta espera do leitor exatamente a empolgação. Permito-me discordar.
Permito-me acreditar que a poesia, sem deixar de ser, ab ovo,
empolgação, acolhe também racionalidade e distanciamento. Por isso
(aí já todos concordam) é que a poesia é o reduto por excelência da
ambigüidade. A visão serena, não arrebatada, buscada por mim, não só
não o nega como o endossa. Vejamos então qual poderia ser este outro
ponto de vista.
O texto de Feitosa lida basicamente
com dois temas: o do tempo e o do Juízo Final. O primeiro tem que
ver com a contingência histórica do ser humano, imerso na
temporalidade, e, em última instância, com a especulação filosófica;
o segundo tem que ver com Religião. Os dois temas se cruzam? Sem
dúvida. Mas, creio, não devem fundir-se em um só, como se se
tratasse de manifestações intercambiáveis do mesmo tema.
De um lado, o tempo pode ser encarado
à luz da filosofia, da história, da antropologia ou da(s) poética(s)
segundo perspectivas não-religiosas, vale dizer, independentemente
das crenças que tenhamos ou não. Quando o poeta subverte nossas
categorias convencionais referindo-se ao "futuro do passado", por
exemplo, como bem observa Feitosa; ou quando se pergunta, ao falar
da infância, "Fui feliz?" para em seguida responder "Fui-o outrora
agora" (os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente) --nada
nos obriga a associar esta subversão da temporalidade ao "fim dos
tempos" de que fala o Apocalipse.
De outro lado, o registro dos
horrores e misérias que marcam este século não passa necessariamente
pelo entendimento religioso ou teleológico que possamos ter ou não
deste nosso mundo. Para uns, tais horrores são indícios do Armagedon,
anúncios do Juízo Final que se aproxima; para outros, os mesmos
horrores (cíclicos, não sei se mais intensos hoje do que ontem)
podem ser encarados à luz da contingência histórica, como fenômeno
eminentemente social e político, despido de conotações
apocalípticas. São dois entendimentos que não se excluem. Só se
excluirão se seus respectivos adeptos não abdicarem da muito humana
ambição do dogmatismo. São dois entendimentos que podem cruzar-se,
como sugeri acima, mas que devem manter, cada um, a sua
especificidade. Caso contrário, a adoção do primeiro significará o
menosprezo do segundo, na mesma medida em que a adoção deste
reduzirá aquele a simples corolário.
Por razões de temperamento inclino-me
mais pelo entendimento não-religioso da condição humana, em poesia e
fora dela, e assim procuro encarar os dois temas de Feitosa, o do
tempo e o dos horrores do mundo atual. Quanto ao primeiro, poderia
lembrar as palavras de Octavio Paz (EL ARCO Y LA LYRA, Fondo de
Cultura Económica, 1956), que, referindo-se aos "gêneros" épico,
lírico e dramático, afirma: "Em todos eles o tempo cronológico --a
palavra comum, a circunstância social ou individual-- sofre uma
transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão,
instante que vem depois e antes de outros idênticos, e converte-se
em começo de outra coisa". Poderia lembrar também a densa reflexão
de Alfredo Bosi (O SER E O TEMPO DA POESIA, Cultrix, 1977), que o
leva a conclusões como esta: "Vejo o texto como uma produção
multiplamente constituída por vários tempos: a) os tempos
descontínuos, díspares, rotos, da experiência histórico-social,
presentes no ponto de vista cultural e ideológico que tece a trama
de valores do poema; b) o tempo relâmpago da figura que traz à
palavra o mundo-da-vida sob as espécies concretas da singularidade;
c) o tempo ondeante ou cíclico da expressão sonora e ritmada, tempo
corporal do pathos, inerente a todo discurso motivado".
Pois bem, o "começo de outra coisa",
de Paz, ou "o tempo ondeante ou cíclico", de Bosi, devem/podem ser
associados teleologicamente ao fim dos tempos, ao Apocalipse ou ao
Armagedon? A mesma associação pode/deve ser feita aos horrores de
que falam todos os grandes poetas modernos, a começar por Pessoa e
pelo mesmo Paz, e prosseguindo por tantos outros, como, só para dar
mais um exemplo, T.S. Eliot? ("Eyes I dare not meet in dreams/ In
death’s dream kingdom/ These do not appear...// This is the dead
land/ This is cactus land/ Here the stone images/ Are raised, here
they receive/ The supplication of a dead man’s hand/ Under the
twinkle of a fading star" --THE HOLLOW MAN, Harcourt, Brace & World,
1925.)
A resposta de Soares Feitosa, a
julgar pelo teor de seu ensaio, seria, suponho, um categórico
"deve". De minha parte, eu responderia com um relutante "pode". E,
em nome do ceticismo e do impessoalismo do ponto de vista por mim
adotado, ficaria talvez para sempre no limiar de acrescentar "mas
não deve".
Quero por fim assinalar que este
sucinto e carente comentário é a homenagem que rendo ao texto de
Feitosa, sem cuja empolgação --estimulante e inspiradora-- eu não
teria tido o prazer de revisitar umas leituras "antigas" e
preciosas. Não por mim, mas pelo serviço que presta à velha e sempre
renovada questão da função da poesia, eu diria que não é pouco.
Leia "Os Poemas da
Besta"
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