John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt  

Soares  Feitosa

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Um cronômetro para piscinas
 

Os poemas da Besta


  

      "Nisto, o Anjo que eu vira de pé sobre o mar e a terra levantou  a mão direita  para  o  céu e jurou  por aquele  que vive  pelos séculos dos séculos — que criou o céu e tudo que nele existe, a terra e tudo o que nela existe, o mar e tudo que nele existe —: já não haverá mais tempo!"
  • (Apocalipse, 10, 5-6)

 

A postagem deste texto nas redes sociais é um Convite ao Jornal de Poesia:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/poesia.html

 

Já não haverá mais tempo!

Esta passagem tremendamente épica, o máximo do majestoso em todo o Livro dos Livros, assombra-me! Menor não tem sido a sensação nas leituras de alguns poemas que me provocam exatamente o mesmo assombro: já não haverá mais tempo, sorvido que fui pelo redemoinho, tragado pela força de uma poética inesperada, esmagado por uma emoção decididamente indescritível.

Quais poemas? Dentre eles, O Navio Negreiro, de Castro Alves, para mim o maior de todos ?Não, de maneira nenhuma. O Navio é um poema “racional”, onde o leitor tem todo o tempo para perceber o percurso, da navegação inicial — ‘Stamos em pleno mar! — até o final retumbante: Colombo, fecha a porta dos teus mares!Precisamente neste tema — o tempo —, esta coisa assombrosa que dizem existir numa quarta dimensão, essa angústia máxima, a falta do tempo de que fala o Anjo do livro da revelação, só uns poucos poemas no-la dão.Vejamos um, para iniciar:

Os Castellos

A Europa jaz, posta nos cotovellos: 
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe romanticos cabellos 
Olhos gregos, lembrando. 

O cotovello esquerdo é recuado; 
O direito é em angulo disposto. 
Aquelle diz Italia onde é pousado; 
Este diz Inglaterra onde, afastado, 
A mão sustenta, em que se appoia o rosto. 

Fita, com olhar sphyngico e fatal, 
O Occidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.

O leitor já tem todo o direito de ir dizendo: "Também, com Pessoa, é moleza...". Nada disso. Só neste poema, de tudo o que li de Pessoa, há o abismo-absoluto-e-inesperado — hifenizei: abismo-absoluto-e-inesperado. A mesma angústia da falta de tempo do Anjo sobre as águas...

Em análise:

Trata-se de um poema “geográfico”, mero comparatório do mapa físico da Europa com a efígie de uma pessoa.

A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando, 
E toldam-lhe romanticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.

Nada de extraordinário até aqui. Os fiordes escandinavos realmente parecem uma cabeleira vasta.

O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em angulo disposto.
Aquelle diz Italia onde é pousado; 
Este diz Inglaterra onde, afastado, 
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Ainda sem maior interesse. Dir-se-ia — e aí precisamente mora o perigo — um poema bobo. Confira no mapa da Europa — é assim mesmo: os acidentes Itália e Inglaterra seriam os cotovelos de uma jovem.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,
Occidente, futuro do passado.

Aqui a coisa já começa a “complicar”. Anunciam-se borrascas e temporais: Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado. Mas, finalmente, mas:

    O rosto com que fita é Portugal.

Feche o livro, caro leitor, respire fundo e contemple o Infante preparando as navegações daquela nesga minúscula, simplório enclave geográfico no mapa d’Espanha... — quanta glória!!!

Ah, meu Deus, quanta glória em 7 (sete, misticamente sete — dizem que Mensagem é uma mensagem misticamente cifrada, parece que é!), sete palavras apenas para tamanha grandiosidade.

Os lusos, Os Lusíadas, a própria Ode Marítima, esta do mesmo Pessoa, contidos nesta frase perfeita: O rosto com que fita é Portugal.!

Disse Pessoa a frase perfeita. Veja o caro leitor se tenho razão em chamá-la perfeita. O rosto — de quem, o rosto? — do mapa anteriormente descrito, o rosto da Europa, símbolo então de toda a civilização ocidental, o rosto da Humanidade, o rosto de Deus? Quem, afinal, fita o mundo?!

Agora percebemos que a estrofe anterior — o olhar sphyngico — era terreno preparatório (Batista, às margens do Jordão, batizando o Cristo) para o grande final, o rosto que fita, onde fitar não é simplesmente sinônimo de olhar.

Portugal, no extremo (ou no início!) do mapa e no extremo do verso, FUNDA o mundo e o domina!

E na ponta da lança dos seus guerreiros, o missal dos frades enlouquecidos, a esmagar os deuses das novas terras, em nome do Cristo!

Quem olha, afinal?

A Cruz-de-Malta?!

Já não há mais tempo: eis o abismo, caia nele, de ponta!

Vejamos, agora, outro poema:

 

O Homem da Cadeira de Balanço

 

precisamos criar juízo 
cumprir as determinações 
e tomar enérgicas providências 

precisamos coibir os abusos
respeitar os sinais do tempo 
e outras normas regulamentares
precisamos ficar calados 
diante de certas coisas
porque assim é melhor

 

precisamos evitar as mãos magras das visitas 
os olhos noturnos dos gatos
e o apelo da verdade. 

 

Em análise:

Você vai lendo, é um poema tolo, sem maior conseqüência, chato até, bastante reacionário no dizer esquerdizante: precisamos ficar calados — que coisa mais idiota!

Pois bem: fantasticamente fantástico, caia no mais amplo despenhadeiro: precisamos evitar o apelo da verdade — o que renega toda aquela brabeza inicial do tomador de providências, daquele “corrigidor” do mundo.

Eis a verdadeira cadeira-de-balanço, o leitor dentro dela, bem amarradinho, bem solto, porém sem tempo algum, de abismo e de despenhadeiro abaixo. Ou de abismo e de despenhadeiro acima, se o preferem no positivo, compelido pela força mágica da Poesia maior!

É poema! Tão grande que até desconfio que o seu autor, o cearense Horácio Dídimo, como o boi do arado, não sabe a força que tem. Tanto é verdade que uma das antologias de que participa, a de organização de Pedro Lyra, não contempla esse super-poema, em benefício de uns outros que não lhe amarram sequer as correias da sandália.

Vamos ao terceiro poema da série “da Besta”:

 

Casa mal-assombrada

 

Eu vi
monstros, morcegos e vampiros! 
Lá tem um 
velho vampiro
e sua mulher.
Bem de noite 
ouvi um choro
e me levantei. 
Percebi que era um 
nenê: a vampira teve bebê.

 

Inicialmente, a perfeição (e banalidade) do tema: uma casa mal-assombrada, onde tem um velho vampiro. Tem também a “sua mulher”, não implicitamente vampira (pelo menos o poema não obriga a concluir, de início, que ela seja uma súdita do conde Vlad).

Bem de noite: assombra! Por que não apenas “de noite”? — porque assim o poema nos transmite aquela sensação de uma noite absoluta como a eternidade, naquelas tribulações da escuridão em que você é surpreendido pelos galos e pela aurora. Mas é “de-noite”; e “de-noite” continua, não obstante o sol de meio-dia.

A noite ampla de Pessoa, Dois Excertos de Ode — Vem noite antiquíssima... Deve ser ela, esse “bem-de-noite” do poema.

Ouvi um choro e me levantei: claro, quem escuta um choro tem mesmo é que se levantar, especialmente em casa de vampiros... Estaria o velho vampiro a estrangular uma criancinha?

(Aquele outro choro, num estábulo remoto, seriam os cães despedaçando uma mendiga e o seu bastardo recém-nascido?)

Percebi que era um nenê: 
a vampira teve bebê.

E imediamente, pelo choro do infante e pelas graças da maternidade, aquela casa imunda e vampiresca sacralizou-se para o todo e sempre! Não há mais tempo!

Abismo número 2: a autora do poema acima tem apenas 8 — disse 8, oito, ô-í-tê-ó-tó, soletrando como na velha Carta de ABC de antigamente. Dizem que na escola moderna os meninos não soletram mais... Eu soletrei e ainda sei soletrar, letra a letra, número a número: cinco dedos mais três dedos da outra mão, igual a oito, oito anos de idade.

Como explicar?

Todas as explicações e nenhuma.

Não sei quem o fez primeiro: se Isaac Gamow, Um, Dois, Três... Infinito!, ou se Borges, Jorge Luís Borges, A Biblioteca da Babel e correlatos, onde falam dos números grandes, aquelas monstruosidades dos grãos de trigo do tabuleiro de xadrez, o número 2 elevado à potência de 64.

Dentre tais números-monstros, o maior deles seria o que resultasse do alfabeto ocidental, em mistura de análise combinatória: as 26 letras “A” emparelhadas; depois 25 letras “A”, mais um “B”; e assim sucessivamente, até percorrer todo o alfabeto, alternativamente, em todas as suas combinações possíveis, não infinitas, mas estupidamente grandiosas.

Num lance de dados (Deus joga dados, com certeza que joga!), essa menina de 8 anos abriu o livro certo, na folha certa, da biblioteca certa e jamais formada, de todos os livros escritos e dos jamais escritos em todos os tempos: e transcreveu, a menina de 8 anos, direto dos abismos da eternidade, o perfeitíssimo poema do nenê da vampira!

Você, caro leitor, tem outra explicação? Passe-ma!

Mais outro “da Besta”: excerto de:

 

Táxi

 

De repente, 
na altura da Volta da Jurema, 
avisto, quase sem querer, um pivete 
(pastor de carros e de meus pensamentos) 
            correndo sobre a areia.

E a idéia do tempo feito criança,
           brincando com seus piões na praia, me sacode.
E o motorista, atento a um explícito e interior sinal,
           começa a acelerar o motor das lembranças.

E o Táxi logo dispara na pista imaginária, 
até me sentir balouçante, sim, num velho Prefect,
           descendo a Rua Costa Barros, 
           lá longe, 
           a caminho do Centro.

Vejo tudo outra vez, ó coração enfermo, 
máquina veloz da recordação!... 

...Papai ao lado do motorista, traçando o roteiro de nossa viagem provincianamente urbana. Atrás, a mãe, eu e mais três irmãos apertados/apartados, por entre 
pernascotoveladasvisões: a meninice trepidando a 50km/h.
Ao passar por ali um amigo vi girando na escola da calçada um pião. Dei um salto,queria a outra janela, acenar-lhe para que também me visse (havia uma sensação qualquer de vitória) naquele Prefect. 

(Tento hoje recordar seu nome. 

Qual seria? 

Eco longínquo ressoando no abismo verbal da infância. Começava com K.

Kleiton? Não. Kelvin? Não. Kélson? Isso! Kélson!) 
Não sei se me ouviu. Sei que rasguei, no atropelo, as meias da mãe, que ficou furiosa. Desolado, soquei-me debaixo do trinco da porta e da culpa, enquanto o carro de aluguel prosseguia, sacolejante, para seu destino destino destino... 
Tenho agora ímpetos de chamar o tempo 
pela janela do Táxi. Gritar seu nome. 

(Qual seria? 
                Deus? 
                Respiração-da-matéria? 
                Substância-de-todas-as-coisas? 

Com que letra começaria?...

O fragmento — meio crescido para chamar-se fragmento — é do longo poema Táxi, de Adriano Espínola. O poeta, com toda a certeza, boi velho de arado e bolandeiras, também não sabe a força que tem. Digo-o porque, na mesma antologia de Pedro Lyra, coloca-se o que de pior Adriano já escreveu..., ou melhor, o que de “menos bom” produziu.

Em análise:

Nada de muito extraordinário no fragmento em que Adriano conta as peripécias de uma viagem num velho Prefect (para os mais novos: era um carrinho menor do que o menor dos carrinhos, coisa de pobre mesmo, idos de 1950, coisa assim).

Vir pela rua, com o pai direcionando a viagem, a mãe no banco de trás, como boa nordestina, com uma récua de meninos, até aí está tudo muito dentro do trivial. Ainda no trivial, é de se aceitar surja, a certa altura do trecho, um pião e seu respectivo moleque na ponta do barbante. As ruas estão mesmo cheias de moleques e seus piões — alguns fumam craque, outros roubam para sustentar a mãe, aqueloutros sobem num balde para alcançar um pára-brisa — e uma nova safra deles está sempre a se formar (poemas meus Compadre-primo e Menino do balde).

Mas, o nome?

Quem o moleque? Quem o Tempo? O nome esvaído nos desvãos da memória sofrida. E o abismo:  

Tenho agora ímpetos de chamar o tempo
pela janela do Táxi. Gritar seu nome. 

(Qual seria? 
          Deus? 
          Respiração-da-matéria? 
         Substância-de-todas-as-coisas? 

Com que letra começaria?...)

O estimado leitor sabe?

Por favor, abra a Biblioteca da Babel, dentre todos aqueles volumes abra um qualquer, basta um nome — ou nenhum —, ligue urgente, ligue para o poeta. Depois para mim. A cobrar!

Quando li Táxi a primeira vez, e no correr da leitura me deparei com este episódio, me esbarrei de cara no abismo infinito da beleza cósmica, e parei por uns minutos de ler. Fui à geladeira, retemperei a garganta e o espírito e tentei-me restabelecer de volta à planície, porque, momentos antes: não havia mais tempo!

E finalmente, desta série que espero continuar (e convoco os exemplos dos caros leitores), este aqui:

Pantomima

Os melhores cordeiros da fazenda
seguirão para o abate na cidade. O
s carneiros mais fracos do rebanho
serão sumariamente degolados. 

O bode velho vai pro sacrifício, 
por mais que seu olhar peça clemência.
Nem mesmo as cabritinhas inocentes 
terão misericórdia ou esperança. 

As carnes assarão ao sol: fogueira.
As peles secarão ao sol: curtume. 
As vísceras suarão ao sol: carniça.
Os ossos sumirão ao sol: poeira. 

Somente a ovelha negra fica impune 
... enquanto o bom pastor toca sua flauta.

O autor, outro boi, mas não tão velho, pois poeta estreante, Fiat Breu, Edições Papel em Branco, 1996, o baiano Luís Antonio (sem acento no "o", mas se pronuncia Antônio mesmo) Cajazeira Ramos, mas boi, extraordinário boi-poeta, daqueles bois etruscos capazes de aluir os arados de Hércules..., também não sabe a força que tem! (... ou sabe?).

Lembro-me de quando li A Colônia Penal. Releio-a sempre. Espanto-me ali com a naturalidade do mal, a apologia do mal, os tons proféticos ali contidos, com uma antecipação de várias décadas de tudo aquilo por que tem passado o Homem deste século.

Li também o Diário de outra jovenzinha, Anne Frank, e vi a Lista dos escolhidos (Spielberg), Schindler.

E meu assombro em nenhum desses lances foi maior do que ler o poema de Luís Antonio, porque o poema “epigrafa”, na terceira estrofe, todas as imprecações bíblicas dos profetas ditos maiores (Ai de ti, Babilônia, a grande prostituta!): Jeremias, Ezequiel e outros loucos de menor porte.

Ainda na terceira estrofe, como se fosse um Vale dos Ossos, a visão aterradora do mesmo Ezequiel, em 37, 1-14, sob a imprecação de 21,13:

    A espada! A espada está afiada e polida; 
    afiada para executar uma matança;
    polida para que lampeje como um relâmpago!

Mas o poema, como os demais da série “da Besta”, se inicia “enganador”, para surpreender, para abismar no final. Vejamos:

Os melhores cordeiros da fazenda
seguirão para o abate na cidade.

Aparentemente, um poema de “abastecimento”, um poema “sunabeano”, para usar uma sigla dessas muitas repartições brasileiras que nada fazem e constantemente a cada novo escândalo mudam de nome: COAP, SUNAB, CONAB, etc., e que dizem cuidar de mercadorias e mercados.

    Os carneiros mais fracos do rebanho
    serão sumariamente degolados.

Ainda está no tom de abastecimento, pecuárias, agrícolas, essas coisas de mercados e afins. Afinal, os pintainhos, na grande criação de frangos de corte, os mais fracos, são mesmo eliminados assim que eclodem.

    O bode velho vai pro sacrifício, 
    por mais que seu olhar peça clemência.

Continua no ramo dos negócios agropecuários. Por que conservar comendo capim e gastando vacinas um velho bode que não mais dá conta das cabras?  

    Nem mesmo as cabritinhas inocentes
    terão misericórdia ou esperança.

Muito razoável, mais uma vez. Nas granjas de leite, os “bezerrinhos-machos” são sumariamente eliminados, pois a fecundação é pela via artificial, e só uns entre milhares serão touro. Ingloriamente touros que jamais cobrirão uma "fêmea-vaca": cobrirão um engodo de feltro, com aparência de vaca e cheiro de vaca, quando o veterinário sorrateiramente lhes extrairá o sêmen para a propagação da raça. Só as “bezerrinhas-fêmeas” permanecem nessa sociedade estranhamente matriarcal que é uma granja de leite!

Finalmente, não sem antes nos fazer passar pelo Vale dos Ossos, de Ezequiel, diz-nos o poeta Cajazeira Ramos:

    Somente a ovelha negra fica impune ... 
    enquanto o bom pastor toca sua flauta.

E o poema, de agropastoril, se transmuda, mercê o abismo em que jaz e de que nos chama para dentro, numa Ode do Século XX, este Século-das-Trevas, e de trevas mais outras.

As cabritinhas, negras como a noite, horrendas a dançar, nesta Guernica ressurrecta que são as terras d’Angola pulverizada de minas-bombas, braços, pernas, olho, dente, cabeça arrancados... E mais uma vez O Navio se reescreve no solo pátrio daqueles irmãos de sangue e língua.

Porque os melhores cordeiros são os jovens que amavam os Beatles e os Rolling Stones e foram ao suadouro dos eternos Vietnãs e Afeganistãos, americanos e russos deste século.

Os cordeirinhos são os infantes mortos de fome em minha terra — Francisco, quatro anos, que morreu perguntando à mãe se no Céu tem pão (poema meu No céu tem prozac!).

Aldo Moro é um dos milhares de bodes velhos (Federico Garcia Lorca também, não tão velho, na guerra civil espanhola), na unha implacável das Brigadas Vermelhas, na terra de Júlio César e Cícero, ambos também assassinados.

E os ossos sumidos ao sol: a poeira, nesta terça-feira-de-cinzas, aliás de Carnaval, pois amanhã bem cedo, caro leitor, quando o sacerdote de Cristo nos fizer a cruz no alto da testa, suas palavras serão:

... et in pulverem reverteris. 

Ao pó de nossas peles secas ao sol.

Tenho mesmo é que me assombrar com o poema de Cajazeira. Nenhum outro, em simples quatorze versos de um soneto metricamente perfeito, retratou com tamanha ansiedade, abismo e espanto o terror deste século pleno de “bons pastores”, que foram um tal Pol-Pot que dizem assassinou 4 milhões de cambojanos; ninguém se iguala ao outro “bom pastor”, Adolf Hitler, nem a Stalin, nem a Fidel Castro, nem a Franco, nem aos Pinochets de direita ou de esquerda que estão, em nome do BEM — eles sempre dizem que estão do lado do Bem, eles sempre dizem isso —, a tocar a flauta doce de destruir e horrorizar. Pantomima??

(Ah, bodes velhos! O flautista seguinte jamais é clemente... E a flauta da exigüidade: nunca há-de haver mais tempo!)

Finalmente — não consigo encerrar estas linhas sem retornar ao poema da vampira que teve nenê.

Por que o Cristo foi escolher um estábulo para nascer, quando, por certo, dispunha de camas mais confortáveis na Galiléia?

Estaria Ele renascendo agora numa Maternidade do Amapá, onde as crianças morrem à míngua, ou na Maternidade-Escola (?) Assis Chateaubriand, em Fortaleza, CE, Brasil, onde em poucos dias morreram 54 crianças de infecção-sujeira hospitalar e os mais fracos são escolhidos para morrer mais rápido?

O Anti-Cristo, onde Ele nasce(u)(rá)?

Não há mais tempo!

     

    Salvador, 11 de fevereiro de 1997



Notas sobre os poemas:

1. O primeiro, Os Castellos, de Fernando Pessoa, é o poema inicial de Mensagem.

2. O segundo, O Homem da Cadeira de Balanço, de Horácio Dídimo, Fortaleza/CE, 23.3.35 (in Assis Brasil, A Poesia Cearense no Século XX — Antologia, Imago, pág. 162).

3. O terceiro, Casa mal-assombrada, de Maria Fernanda Mendonça Costa, Dois Córregos/SP, oito anos de idade (in Folha de São Paulo, 1.1.1997, Caderno Folha Ilustrada).

4. O quarto, Táxi (fragmento), de Adriano Espínola, Fortaleza/CE, 1.3.52 (in EM TRÂNSITO, Topbooks, págs.48/49).

5. O quinto poema, Pantomima, de Luís Antonio Cajazeira Ramos, Salvador/BA, 12.8.56 (in COMO SE, Edições Papel em Branco, no prelo).

 
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John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854)

The Seventh Plague of Egypt
Painting Date: 1823
Medium: Oil on canvas
Size: 144.1 x 214 cm
Location: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts, USA