Carlos Felipe Moisés
Antônio
Carlos Secchin
Poesia e desordem
De tempos em tempos, o meio literário
é agitado pelo anúncio da "crise" que assola a poesia. A notícia
logo se espalha, ganha volume e dramaticidade ao longo do percurso;
as pessoas se queixam --dos editores, da imprensa, dos críticos, dos
poetas-- e se entreolham pesarosas, como que obrigadas a assentir:
de fato, nossa poesia já era. (Em 1988, José Paulo Paes tirou bom
partido dessa encenação periódica, dando a um de seus livros, de
poemas, o título A poesia está morta mas juro que não fui eu.) De
tempos em tempos, também, só para contrariar os arautos da desgraça,
nossa poesia dá mostras de surpreendente vitalidade, quantitativa e
qualitativa. Mas é preciso reparar que são dois impulsos
oscilatórios e independentes (o do anúncio e o da demonstração de
vigor), cujos picos e baixos só por acaso coincidem. O segundo não
responde ao primeiro. Antes, faz o possível para ignorá-lo e, ao
mesmo tempo, realimentá-lo. Na verdade, trata-se do mesmo impulso.
Paradoxo?
Com certeza. Não fosse isso, aí sim a
poesia estaria morta, essa poesia que só continua a existir, e só
vale a pena continuar existindo, graças ao necrológio repetidamente
anunciado e desmentido. Não ora um, ora outro, mas um e outro,
concomitantemente. À poesia, nossa ou alheia, aplica-se o que
Marshall Berman detectou, em seu conhecido Tudo o que é sólido
desmancha no ar, a propósito da sociedade burguesa: "Dizer que está
caindo aos pedaços é apenas dizer que está viva e em boa forma".
Parece ser esta a verdade essencial
que Antônio Carlos Secchin, um dos mais competentes críticos de
poesia em atividade no país, reitera nas entrelinhas de Poesia e
desordem. A coletânea vem a público no bojo do que aparenta ser um
desses momentos de vigor. Raras vezes a poesia entre nós deu tantas
mostras de vitalidade, como nos tempos recentes. Exemplos?
O volume de publicações na área, nos
últimos dois anos, digamos, ultrapassa a capacidade que qualquer
crítico teria de fazer sequer o registro sumário; a Internet ganhou
o seu "Jornal de poesia" , obra do baiano Soares Feitosa, que em
poucos meses incorporou ao acervo nada menos que 1043 poetas da
língua, a maioria contemporâneos, muitos inéditos em livro; a
Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo promoveu o evento
"Poesia 96", que, de março a novembro, à razão de três encontros por
semana, dois poetas por encontro, reuniu mais de uma centena de
poetas de todo o país, e seus respectivos críticos, para leitura de
poemas, comentários e debate com o público. (Consta que a fila de
espera é longa e por isso já se anuncia o "Poesia 97", a partir de
março.) Mas a coisa não pára por aí. Boa parte da imprensa deu
destaque aos 40 anos do concretismo, o que resultou em reavivar o
debate em torno da poesia em geral, um debate que ameaçou tornar-se
explosivo com a entrada em cena de Bruno Tolentino, poeta, que
desferiu petardos para todos os lados, conquistando assim, ainda que
momentaneamente, um espaço com que outros sequer sonhariam. Entre
feridos e magoados, ao que parece, salvaram-se todos. Quem saiu
ganhando foi a própria poesia. Mas paremos por aqui.
A lista é longa e poderia crescer
muito mais. Qualquer leitor minimamente interessado na área teria
vários acréscimos a fazer. Por mais que eu me empenhasse, a lista
nunca seria completa. São apenas alguns exemplos, para encarecer o
fato de que Poesia e desordem tem muito a ver com isso tudo. Mas
antes que o leitor cobre de Secchin o que não está em seu propósito,
adianto que o livro não pretende ser uma história da poesia
brasileira contemporânea, nem se propõe a enfrentar explicitamente
as questões teóricas aí implicadas. Mas ao debruçar-se amorosamente
sobre um variado leque de poetas e tendências, em textos no geral
breves, densos e afiados, o autor fornece valiosos subsídios nessa
direção.
A coletânea tem a seu favor, de
saída, o fato de retomar um hábito dos mais salutares, que vicejou
entre nós nos anos 50 e 60, o da crítica avulsa de poesia: alguns
artigos, umas resenhas, uns prefácios, o texto de uma conferência...
Reúne-se tudo em volume e, dependendo da competência do crítico,
temos aí um prato variado, repleto de finíssimas iguarias. Secchin
inscreve-se, dessa forma, numa rica tradição, parcialmente esquecida
nas últimas décadas, que tem como representantes mais ilustres
Roberto Alvim Correa (O mito de Prometeu, 1951), Oswaldino Marques
(O poliedro e a rosa, 1952), Aurélio Buarque de Holanda (Território
lírico, 1958), Antônio Houaiss (Seis poetas e um problema, 1960),
José Guilherme Merquior (A razão do poema, 1965) e outros. Nenhum
desses livros foi propriamente escrito como tal. São reuniões
ocasionais de textos anteriormente divulgados na imprensa. E aí
reside uma das causas do arrefecimento do hábito. Nos anos 70 e 80,
jornais e revistas reduziram o espaço destinado a esse tipo de
texto, extinguindo-se assim a circunstância que propicia a
existência de tais livros. Mas aos poucos o mesmo espaço vem sendo
reconquistado e Poesia e desordem é um bom exemplo do acerto da
reconquista.
Mas uma segunda causa interferiu no
processo. No mesmo período, os moldes universitários estabeleceram a
primazia dos estudos monográficos, isto é, volumes inteiros
dedicados a um só poeta ou um só tema, critério que, para a
universidade, é perfeitamente defensável. Mas, logo endossado pela
maioria das editoras, o novo "modelo" colaborou para que a coletânea
de ensaios variados caísse em desuso, sob a acusação de ligeireza.
Convencionou-se que, para tratar com um mínimo de acuidade este ou
aquele poeta, ou até mesmo um só livro de poemas, o crítico
necessitaria sempre de pelo menos umas 150 laudas, tamanho padrão de
uma dissertação de mestrado.
Poucas vezes a distorção e o
preconceito, juntos, fizeram tanto estrago. A resenha de jornal, nos
lugares em que se manteve, correu o risco de se converter em mero
registro de capa-orelha-e-lombada, sem o menor empenho reflexivo,
enquanto os arquivos acadêmicos correram o risco paralelo de virar
armazéns de calhamaços ilegíveis, repletos de banalidades
equivalentes às da repudiada resenha. Os riscos só não se
concretizaram de todo graças às exceções de praxe. E trabalhos como
o de Secchin desmentem esse equívoco de tão danosas conseqüências,
provando o que em outras circunstâncias seria redundante provar: em
matéria de crítica de poesia, tamanho não é documento.
Exemplo. Em escassas três páginas
sobre A uma incógnita, de Sebastião Uchoa Leite, o autor equaciona,
com agudeza, a questão do minimalismo na poesia contemporânea. "O
combate ao beletrismo", diz Secchin, "inclui sempre o risco de
recriar sua gramática às avessas, com uma simples inversão de sinal
que não deixa, mesmo na vingança paródica, de reverenciar o modelo
que combate". Temos aí lucidez e densidade que valem por todo um
calhamaço, desses impostos pela concepção volumétrica.
Vários outros exemplos poderiam ser
lembrados. Ledo Ivo, Moacyr Félix, José Paulo Paes, Ferreira Gullar
ou Mário Chamie são alguns dos vários poetas que merecem do crítico
uma atenção concentrada e aguda, limitada a três ou quatro páginas,
em média. (A exceção é João Cabral, contemplado com um total de 30,
mas explica-se: é o poeta da predileção do autor, que sobre ele já
se estendeu em largo volume, de 1985, João Cabral: a poesia do
menos.) Secchin oferece ao leitor, em suma, o que se espera de toda
boa crítica, na simples resenha ou na monografia; num artigo, num
ensaio ou numa tese: a visão iluminadora, servida, no caso, por um
notável poder de síntese. Se não bastasse, temos aí, como atrativo
extra, um estilo sempre claro, compreensível e elegante, às vezes
sibilinamente elegante, como quando o autor afirma, a propósito de
Gullar, que "a necessidade da poesia social talvez impeça a plena
floração da poesia social"; ou como ao dizer que "em questão de
Metalurgia" título de um poeta paulista, o livro de Vogt vai além do
ABC"; ou como, ainda, quando intitula "Parnaso contemporâneo" a uma
série de resenhas em que engloba meia dúzia de poetas.
Poesia e desordem nos mostra, enfim,
um crítico na posse de sua maturidade e no uso desinibido, mas não
excessivo, de sua prerrogativa de escritor, que não comete o
ridículo de entrar em competição com os poetas analisados, mas prova
ter sobre o instrumento comum, a linguagem, um domínio equivalente.
Crítica dessa qualidade lê-se com o mesmo prazer e proveito com que
se lê um bom poema. E ajuda-nos a crer que, no tocante ao anúncio
lembrado de início, melhor seria proclamar, se for o caso de
proclamar qualquer coisa: La poésie est morte. Vive la poésie!
Leia obra poética de Antonio Carlos Secchin
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