Claudio Daniel
Fortuna Crítica
Jesús J. Barquet:
Se me perguntassem o
que é Yumê (São Paulo: Ciência do Acidente, 1999), o último livro de
poemas de Claudio Daniel (São Paulo, 1962), eu responderia que é um
“sonho”, como o próprio autor afirma ao utilizar o termo equivalente
do japonês (“Yumê”, p. 69), mas um sonho de olhos bem abertos
contemplando a permanente sucessão vertiginosa do tempo, com seus
reflexos luminosos ou escuros - sempre coloridos - sobre as mais
diversas superfícies, entre as quais destacam-se particularmente o
mar, o céu, o corpo feminino e o próprio corpo da poesia. É por isso
que o livro adquire gestos não só da plástica (marinhas, noturnos, a
cuidadosa disposição espacial dos versos e a intencional observação
da natureza que ele recebe da poesia oriental), mas também da
música, para ser fiel assim ao instrumento de sua pintura, a
linguagem: impulsionado pela impressão tanto visual quanto sonora,
Daniel delineia uma pintura seguindo a poética estreada em seu
primeiro livro, Sutra (São Paulo: João Scortecci, 1992), e
enriquecida agora com o corpus de idéias que aparece em Yumê.
Em Yumê, a impressão
visual é geralmente um resultado de contrastes de cor ou de
antíteses semânticas que se apresentam de forma inaugural na
primeira parte do livro, “Poemas aquosos”. Em um plano de fundo de
pintura e caligrafia orientais, com "rápidos / traços / de pincel"
(p. 36), Daniel utiliza tradicionais contrastes de cor ("prateiam /
o negrume / cetinoso / com lácteos / jatos", p. 27) junto com
contrastes mais sutis próprios do expressionismo abstrato ("luz pura
/ sobre luz", p. 38), à maneira do poema “Invenção do Riso Branco”
de Sutra:
nuvens
sobre brancas nuvens . . .
e
essa trêmula mão
alvíssima
alvíssima
(musselina)
alvíssaras
mas:
jorro insólito de pérolas (pp. 8-9)
Manifesta-se assim o
afã do poeta de indicar em Yumê um contraste maior: o sentido
antitético do universo, onde movimento e fixidez (“Liber aquae”),
arte e não-arte (“Lição de água”), o humano e o divino (“K'an”)
realizam uma dança sedutora e enigmática, de "sete véus" (p. 26).
Um sentido de
performance percorre Yumê: o olho do poeta ("vi", p. 17; "olho a
noite", p. 28) - e não seu "eu" íntimo, escamoteado ou também
velado em grande parte do livro - aparece como um órgão de
observação coletivo, impessoal ("nos incita", p. 16; "cessamos", p.
18; "se vê", p. 19; e a terceira pessoa descritiva, pp. 13-15),
frente ao espetáculo de dança do universo, que se descobre mais
adiante, tirados todos os véus, com a forma de Vênus, de mulher. Por
tudo isso, a dança, esporadicamente presente em Sutra (pp. 13, 38),
aparece como uma recorrente figura poética de alta significação
dentro de Yumê: seja como um solo de dança sedutora ("graciosa
dançarina cambojana", p. 19), uma antítese bipolar ou mesmo um
contraste entre uma "selvagem dança sarracena" (p. 18) e as
cinzeladas miniaturas perfeitas da poesia oriental, a dança exprime
habilmente os conteúdos semânticos do livro ao mesmo tempo que
reflete, ao misturar os sentidos da visão e da audição, as
impressões visuais e sonoras que geram esses poemas.
Em Yumê, a impressão
sonora é geralmente uma necessidade de capturar a posteriori, ou de
criar a priori, com a linguagem - o poeta como o pequeno deus
proposto pelo poeta chileno Vicente Huidobro, citado duas vezes por
Daniel em Sutra - uma síntese da impressão visual; por isso o uso de
neologismos (“enluaresce”, p. 23; “luazulada”, p. 25) e conceitos
enlaçados (“azul-quase-branco-nébula” e “azul-espuma-catarata”, p.
19), até chegar ao poema "Palam", em que a linguagem - as palavras
como objetos visuais à maneira do poema visual e da poesia concreta
- se descobre a si mesma como impressão, emoção, entusiasmo ou
"cegueira" (p. 29) plástico-sonora, semelhante às pesquisas
lingüísticas da poesia pura da primeira metade do século XX,
especialmente as conhecidas em espanhol como jitanjáforas.
Todos esses recursos estilísticos tinham sido apresentados em Sutra,
cujo poema “Excertos do Necromicon: Zunái / Kundra” constitui então
um óbvio antecessor de “Palam”.
Em seu prólogo ao
livro, o poeta cubano José Kozer afirma que Yumê é, por sua
cuidadosa concisão e beleza verbal, “um camafeu enganoso” (p. 10),
porque de seu interior salta ou assalta-nos um tigre, oculto no
início de nossa leitura, embora anunciado inclusive com neologismos
como "tígricas" e "tigrinosos" (p. 18). O (as)salto do tigre - que
constitui uma outra figura poética recorrente de Yumê, extraída de
Sutra - produz no leitor inusitadas revelações. Sem desdizer a
revelação que esse tigre produziu em Kozer, inscrevo agora a minha,
centrada nos poemas "De pele", "Quase adeus (balalaica)", "Diálogo
com o espelho" e "Epitáfio (para a mulher de Lot)".
"De pele" e "Quase
adeus (balalaica)" pertencem à quinta e penúltima parte do livro
("Invenção de Vênus"), para a qual curiosamente o poeta não tem
nenhuma "nota" final. Mas, seria ela por acaso necessária? A
resposta seria "não". Frente às inumeráveis reviravoltas da
filosofia e da poesia orientais, Pound, Rilke, Oswald de Andrade,
Ernâni Rosas, o cinema de Greenaway e tantas outras referências
cultas que, tanto aqui quanto em Sutra, Daniel anota para as
diferentes partes e poemas do livro, "Invenção de Vênus" e os quatro
poemas que a integram aparecem desnudos, sem véus.
O universo que a voz
poética contemplava/escutava de forma impessoal nas partes
anteriores de Yumê revela em “Invenção” sua verdadeira natureza: um
corpo altamente sexuado de mulher... real, criada, inventada: "o /
puro / pubis" (p. 53), começa dizendo essa seção. Se, como já vimos,
o "eu" poético se mantinha velado, agora nesta parte
assistimos a sua confissão na primeira pessoa do singular: marcado
pelo amor petrarquista ("consumido / em tua chama / vestal", p. 54),
ele diz o seguinte: "esqueço de mim" (p. 54), "fez você / para mim /
o anacoreta / babuíno / abominável..." (p. 55).
O destinatário não
nomeado que, principalmente com adjetivos possessivos ("teu céu", p.
23; "tuas pupilas", p. 29), aparecia desde o início do livro, revela
ser agora também uma mulher: começa com "suas pétalas" e "sua
concha-albergue" (p. 53) para passar logo ao diálogo entre a
primeira e a segunda pessoas do singular no poema seguinte, "De
pele":
teus duros
róseos mamilos
de leoparda
encimam
lácteos peitos
que me olham
no escuro;
teus brancos pés
de linho, desnudos,
incitam à dança,
ao jogo nupcial
de pele em pele
cimentada (p. 54).
De novo aparece a
dança, que encerra essa parte de Yumê quando o "eu" poético toma a
mulher “pela cintura / e começamos / a dançar" (p. 57). Os pés
dançantes ganham, como afirma Régis Bonvicino na orelha do livro, o
valor de “ritmos vivos”. Com esse ato, a voz poética insere-se
harmoniosamente na dança universal antes comentada e agora revelada
como dança dos amantes.
"De pele" - a pele
da mulher como uma outra superfície sobre a qual os sentidos do
poeta se deslocam e se fixam - resume e resolve assim muitos dos
motivos formais do livro (o "tigre", por exemplo, vira aqui "leoparda",
e ambos apareciam já dançando em um verso de “Sarabanda” em Sutra) e
prepara-nos para o poema "Quase adeus (balalaica)", cujo título
também resume motivos anteriores (ver “ah deus”, p. 24; e o que até
aqui foi observado sobre a substância sonora do livro). Esse poema
"quase" poderia ter sido o último de Yumê em termos de cosmovisão,
mas o poeta enfrenta ali inesperadamente uma visão/reflexão estética
que precisa ser resolvida na seção seguinte ("Poética do
faquirismo"). "Quase adeus" registra ou confessa a visão de pesadelo
com que sofre o poeta antes de se lançar felizmente ("por que /
tragédia?") à sua dança universal: "o sarcástico / sorriso / de uma
máscara / oriental" (p. 57). Esse poema assalta-nos assim com uma
reflexão irônica sobre um aspecto (as influências orientalistas) da
própria poética do livro, cujas fontes de inspiração e re-escritura
literárias aparecem explícitas nas "notas" finais do autor em Yumê
(pp. 69-70) e, por extensão, em seu livro anterior, Sutra (pp.
45-47).
Tem importância
agora "a arte / sem arte" (p. 14), uma das primeiras antíteses
anunciadas na primeira parte de Yumê: a tensão entre, por um lado, o
artifício, o rebuscamento, os cultismos exóticos, a
hetero-referencialidade e o afã de transcendência, e, de outro, a
naturalidade, o primitivismo, o desenfado formal e o imediatismo. Se
já em "Invenção de Vênus" aparecia junto ao "eu" poético
confessional, pela primeira vez no livro, o pronome “você” da norma
lingüística brasileira regendo o verbo “dançar”, a seção "Poética do
faquirismo" centra-se de novo em jogos verbais de re-escrituras
cultas "anotadas" pelo poeta, que repassam, de forma
significativamente muito mais concisa e controlada que nas seções
anteriores, os códigos utilizados no livro, para concluir com dois
poemas-chaves: "Diálogo com o espelho" e "Epitáfio (para a mulher de
Lot)".
"Diálogo com o
espelho" estabelece um diálogo duplo dentro do livro: primeiro, com
o poema "Vírus"; depois, com o velado sujeito poético que nas
duas seções iniciais apenas vê de si mesmo - e anota sobre si - "meu
rosto" (p. 17). A referência ao espelho está implícita na forma que
adquire a água na primeira seção, e está explícita no título da
segunda seção ("Noite-espelho"). De "Vírus" retoma o tema da
definição da poesia, mas despoja o poema de jogos verbais, de
artifício, para ficar apenas com a metáfora poesia-“piolhos” com o
propósito de inseri-la em uma imagem inusitada dentro do texto.
Dizemos “inusitada” não por seu caráter sexual (já o vírus da poesia
estava na vulva, etc.), mas sim por sua naturalidade de expressão:
nenhuma aliteração (do tipo "o / vírus / vivo vírus / na vulva"),
nenhum circunlóquio (do tipo "branco orifício do zero", p. 46) vai
sustentar, justificar ou disfarçar esse poema, que termina com a
maior singeleza expressiva: "só piolhos / fervilhando / nos
pentelhos" (p. 67), imagem essa que, por seu jeito grotesco ou
anti-poético à maneira do chileno Nicanor Parra, parece ser também
uma paródia das transcendentais e sutis imagens próprias do haicai e
que Yumê utiliza em suas primeiras seções e Sutra em toda sua
extensão.
O poeta parece
distanciar-se assim da sarcástica máscara oriental que o disfarçava
inclusive diante de si próprio - embora ao mesmo tempo tivesse lhe
servido de guia na invenção, consecução e revelação de seu sonho -,
e se dispõe a "dialogar" consigo no espelho, ou seja, dialogar com
seu "rosto" só fugazmente entrevisto na primeira parte. Dito de
outra forma, decide transgredir (exorcizar?) os próprios códigos
(sete véus?) que se havia imposto.
Revelados o
"tu/você" como mulher-universo e a dança como harmonia universal a
partir do tradicional acoplamento (masculino-feminino) dos amantes,
faltava ao sujeito poético se revelar diante de si mesmo em seu
instrumento de expressão (a poesia), exercício que realizam "Poética
do faquirismo" e, como já vimos, "Diálogo com o espelho". Uma vez
criadas e desnudadas essas duas identidades naturais (“eu” e
“tu/você”) e unidas ambas em uma dança harmoniosa, o poeta fica com
a tentação de olhar para trás, mas, diferente da mulher de Lot, ele
volta seu olhar extasiado para sua criação, sua "cegueira" anterior.
Cumpre-se assim mais uma lei do universo e da criação: tudo volta ao
pó, desfaz-se o feito, para voltar a ser. Uma vez ordenado o caos
existencial e referencial que lhe precede e desvelado/fixado
seu timbre individual dentro da nova ordem criada, a voz
poética desperta do sonho (“Yumê”), não para dar testemunho de uma
perda ou destruição, mas sim para se ratificar tanto na sua criação
plástico-verbal de uma harmonia universal que o inclui, quanto em
sua surpreendente e necessária transgressão e cumprimento estético.
José Kozer:
Um conhecido
dístico, aliás poema (In a station of the metro) de Pound (“The
apparition of these faces in the crowd: Petals on a wet, black bough.”)
reflete de modo especular o belo poema O um igual a zero, de
Claudio Daniel. Arnaut Daniel, o trovador provençal, o trobar
clus amado por Pound, amado por Claudio Daniel.
Um resultado é este
formoso livro (Yumê), onde Oriente e Ocidente, de modo
especular, se sonham, mariposa dentro de mariposa do sonho dentro do
famoso sonho deste famoso desconhecido que foi Chuang-Tzu.
Chuang-Tzu, Claudio
Daniel, Ezra Pound: nosso poeta brasileiro encerrado como por
parêntesis entre duas nobres vozes, dois nobres feitos, que, mais do
que clausura, servem de feitura (simbólica) (real) a esta obra.
Oriente em Claudio Daniel; Ocidente em Claudio Daniel; o
Concretismo, o Neobarroco, a pós-modernidade, a fulgurante jóia
límpida de seus poemas sem ornatos; a singeleza da linguagem, que é
a complexidade maior da linguagem, e o neobarroquismo expressando
desde sua estrita abundância a ulterior singeleza do Oriente, do
Ocidente: harmonizados, sintetizados, em obra aparentemente casta e
no entanto sensual, luxuriosa; obra aparentemente límpida mas cheia
de nuvens, nebulosas, constelações ao ignorado, do (desde o)
ignorado; espelhos do caos, esse grande espelhismo.
Um palimpsesto, sem
dúvida um palimpsesto: raspamos com o buril do amanuense e debaixo
de cada placa, de cada lâmina encontramos outra versão, outra visão
do mesmo assédio (especular) que implica uma mesma busca de beleza,
que leva (todavia, é válida na boa poesia) ao ulterior: debaixo de
todas as capas superpostas de todos os textos de Yumê está a
reverberante abundância da vida, suas cores, claridades, sua poeira
que como um ponto ressumbra e resume a presença viva, bíblica, da
mulher de Lot (Epitáfio para a mulher de Lot). Água que escorre, Cathay ou Cipango que são Brasilis, braços abarcando um orbe (o de
Claudio Daniel) que são todos os orbes do Orbe.
Yumê é um camafeu enganoso, que engana o leitor preguiçoso. Este
acreditará de pés juntos ter lido um livro despojado, ínfimo, magro.
O camafeu é um contorno, uma jóia mínima por certo; porém, no caso
de Claudio Daniel, este encerra uma ordenada desordem, uma
fragrância inodora, uma multitudinária voz de vozes que, tigre ao
final, se prepara para o grande salto que desbaratará, por sua
força, por sua vital abundância, os contornos do camafeu: migalhas,
invisíveis ao leitor, que se reconformam e fazem de seus fragmentos
um novo camafeu, um camafeu chamado Yumê: objeto vivo sem suturas
visíveis, contorno dentro do qual o Nada se apresta uma vez mais
para o salto (assalto), pela via poética, da Totalidade.
Eduardo Milán:
Claudio Daniel pertence a uma linha criativa da poesia brasileira
que parte, aproximadamente, de João Cabral de Melo Neto, atravessa a
vanguarda (a poesia concreta, especialmente algumas buscas de
Haroldo de Campos em sua fase poética mais condensada), e toca
experiências de poetas que derivam, numa primeira fase, da
experiência concreta paulista: Paulo Leminski, Régis Bonvicino.
Estas não são, no caso de Daniel, relações de dependência, mas um
sistema mínimo de referências poéticas que constituem a linhagem
necessária para que se possa falar de um poeta e situá-lo em sua
tradição.
Constante uso da elipse, definição das imagens com alta precisão,
tendência à objetivização do verso como condição de sua existência.
O verso é breve, cortado segundo uma conveniência rítmica, mais do
que semântica, porém, devolve todo o espectro do sentido, de acordo
com uma lógica de surpresa, dada pelo mesmo corte no aparecer do
verso seguinte, abaixo. Alguns motivos que se repetem: a palavra,
naturalmente, o silêncio, a cultura in extensu.
O mundo dado por partes (metonímia, ainda que, também, e
surpreendentemente, metáfora, metáfora crítica surgida às vezes das
relações latentes que emergem na cadeia significante como
conseqüência da organização verbal). Ou, às vezes, a metáfora como
dispositivo gerador do poema, do qual descenderão outras possíveis
relações verbais. Um acréscimo de Claudio Daniel à poesia urbana e
pós-concreta brasileira: o apelo a um universo mítico, dado não por
paródia de discurso fundador, senão por referências - o mito como
possibilidade poética que se oferece, de forma parcelada, no mundo.
Os poemas intentam alinhavar uma narração, na medida do possível
poético contar uma história por imagens, alinhavar por imagens um
tecido que se cria por impressões da existência. Também está
presente a figura totêmica da poesia pós-mallarmeana, a página,
colocada aí como um suporte quase mítico. A brancura da página está
(porém, nem sempre se deixa ver) como referência atualizante, como
homenagem -, para fazer constar que Claudio Daniel também esteve aí.
Diria que em Claudio Daniel o motivo poético central, em sua relação
com a poesia brasileira, é reconstituir a estrutura verbal, encarnar
o osso verbal que, em seu polimento maior, havia feito aparecer a
vertente Cabral/poesia concreta. Porém, não se trata de um retorno,
senão de uma contribuição a um ordenamento da mesma ação.
Biografias de culturas, biografias de certos personagens culturais
(Dante, Nagarjuna etc.) são recortes, impressões de leituras,
intuições líricas: a cultura como documento interior. São projeções
do falante, fragmentos civilizatórios. Nenhuma cultura cabe em uma
voz (a prova de Pound dos Cantares). São impressões, imagens. Mas
isto parece um reconhecimento, por parte de Claudio Daniel, de que
não há possibilidade de poesia na atualidade que não tenha uma
relação dinâmica com a cultura, dinâmica e evidente. Claudio Daniel
é um lírico cultural.
Ao fim de A sombra do leopardo, os poemas caem na tematização do
poema - o poema como tema - e na tematização dos arredores do poema,
seu âmbito, que, aqui, é existência. Aparece, então, a miséria do
poema, sem a qual, pareceria, nenhuma aventura poética autêntica
pode ser considerada na atualidade.
Coyoacán, 2000
Júlio Castañon Guimarães:
A impressão inicial que se tem com a leitura de
A sombra do
leopardo, de Claudio Daniel, é a de uma permanente fluidez, ou
melhor, de uma imprecisão contrária a qualquer busca de contornos
definidos que delimitem com clareza o espaço de leitura. Mas se as
lentes forem sendo ajustadas ao objeto que têm à frente, percebe-se
aos poucos a proliferação de imagens que vão constituindo os poemas.
Essas imagens, não exatamente em atropelo, mas numa construção ciosa
de matizes, dissonâncias, transparências, se começam por desencadear
impressões, acabam por esboçar planos e movimentos que sustentam
modos de flagrar, de perceber e de articular. Na verdade, o que
causa a impressão inicial é o fato de os poemas serem compostos por
imagens predominantemente sensoriais, que evocam vários sistemas de
percepção, de imaginação, de concepção do mundo.
Na apresentação do livro anterior de Claudio Daniel,
Yumê, Régis
Bonvicino fala do diálogo da poesia de Claudio Daniel com o
simbolismo, com a tradição oriental, com o neobarroco, com certo
Haroldo de Campos, com Borges. A explicitação desses tão variados
pontos de contato ajudam a compreender o universo de sua poesia, e
eles provavelmente permanecem em A sombra do leopardo, mas agora o
que sobressai com mais ênfase é a capacidade do autor de criar sua
voz própria, uma voz bastante peculiar mesmo para a diversidade dos
poetas de sua geração. De modo evidente, os poemas de Claudio
Daniel, unindo rigor e evocações (palpáveis e impalpáveis), mostram
um poeta dono (sensível) de seu ofício.
Sérgio Cohn:
A poesia de Claudio Daniel nos entrega a um paradoxo: pela
sinestesia, pelos assaltos violentos das imagens, poderíamos falar
de expressionismo. Mas há uma tal contenção e sutileza que impede
este rótulo. O olhar faiscando de cores, o mundo como objeto
excessivo, mas que mesmo assim não pede esquadros. Poemas da
liberdade dos sentidos, e o preço que reivindica: desconforto
pautado de encontros. Sabe, como a melhor poesia, transformar idéias
em música. Ou, além, nos ruídos de pequenos organismos se formando
no estupor, nossa terra natal. Ao reinventar o mundo, o revela:
poesia do desregramento dos sentidos, a um passo da vidência.
Octávio Paz diz que o haicai está no limiar entre o verbo e a
iluminação silenciosa, assim também a poesia de Claudio Daniel.
Poesia portanto perigosa: nos impele, sutilmente (repito), a dar o
passo para onde ela se curva: para além dos nomes e da navalha
pré-construída da nossa vigília.
Ademir Assunção:
Sensualidade, refinamento de linguagem e ritualização também são
características presentes em Yumê, segundo livro do paulistano
Cláudio Daniel, porém trabalhadas com procedimentos completamente
diferentes. Em seu caso, o olhar sobre a paisagem, especialmente nas
primeiras partes do volume, é um "olhar que pensa", que transforma o
mar, a lua ou a noite em motivos de reflexão e de comparação com o
exercício poético. Embora hábil na criação de imagens sintéticas e
de ritmos fluentes, o que predomina em grande parte da sua poesia é
a logopéia, "a dança do intelecto entre as palavras".
Em "Poemas Aquosos", seção de abertura, o mar irrompe nas páginas
ora como "fêmea possessa", ora como "leoa furiosa", desdobrando-se
ainda numa "floresta sinfônica" e numa "infinita matemática". Com
uma linguagem que prima pela condensação absoluta, o fluxo das ondas
e das "vagas incessantes" é comparado à "pulsação do poema",
oscilando entre o masculino e o feminino, ao sabor dos "seus ciclos
menstruais". O ritmo de "Lição da Água", primeira peça da série,
iconiza o movimento constante do oceano. Motivo de reflexão,
paisagem pensada, "o mar/ ensina/ ao poeta/ a arte/ sem arte".
Note-se aí, a feminilização do mar, substantivo masculino, associado
à Netuno, mas também, à Iemanjá, na cosmogonia afro-brasileira.
Se em alguns poemas a linguagem desliza ao sabor da brevidade e
leveza quase chinesa (ecos de poetas clássicos como Li Po ou Wang
Wei), em outros irrompe uma profusão neo-barroca, carregada de
substantivos adjetivados e vice-versa, como "tígricas", "tigrinoso",
ou as montagens em "azul-espuma-catarata", e "azul-lótus-krishna".
Da concisão extrema o poeta salta para jorros de imagens-idéias ("A
esfíngica branca lua abissal/ e o temerário dragão-de-nébula"),
exagerando, às vezes, na utilização dos adjetivos. Mas "exagero" é
uma das marcas do barroco, assim como do simbolismo, influência
confessa na seção "Noite-espelho", dedicada ao simbolista
catarinense Ernâni Rosas.
Essa tensão entre sensibilidade chinesa e volúpia barroco-simbolista
vai desaguar no roteiro-imaginário de viagem "Cipango/Cathay/Brasilis".
Ali figura o belíssimo poema "Tabi" (viagem, em japonês), peça única
construída com a justaposição de seis tankas, forma clássica de
poesia japonesa que originou o haikai. Sem sair do lugar, o poeta
viaja com o vento, resvala na lua e contempla o monte Fuji
apunhalado pela neve, para fechar com uma idéia-síntese: "no sonho,/
o monge/ em viagem:// tudo/ é miragem". É possível que esses versos
sirvam como chave-mestra ao próprio livro: Yumê, significa
exatamente "sonho". No fundo, não seria o poeta/monge o sonhador de
grandes miragens?
Há ainda outras facetas na poesia de Cláudio Daniel, muito bem
distribuídas ao longo das páginas. Ao sabor de uma trégua provisória
entre os impulsos de estilos e sensibilidades, a linguagem deriva
para outros vôos, que passam pelos cumes do borgiano poema "Zauberbuch"
aos flertes com as palavras-montagens joyceanas ("J´aime Joyce),
chegando ao mântrico "Palam", com procedimento semelhante aos
experimentos "zaúm" de alguns cubofuturistas russos, especialmente
Khlébnikov. Em vez de pular de galho em galho, como um discípulo
afoito, Cláudio consegue resvalar em um amplo leque de referências e
manter o tempo todo uma dicção extremamente pessoal. Mostra uma
percepção ampla, que não se fixa apenas no primeiro modernismo
brasileiro ou nos franceses do final do século passado.
Com seus vigorosos livros, Ricardo Corona e Cláudio Daniel vêm se
somar a uma ótima safra de poetas surgidos recentemente. Enganam-se,
ou mentem, aqueles que apregoam um empobrecimento da poesia nesta
última década do século e do milênio. Livros excelentes continuam
surgindo, a maioria deles custeada pelo bolso dos próprios autores,
sem o menor crédito junto às editoras e tendo como recepção um
criminoso silêncio da crítica. Como se editores e críticos
reprovassem a atitude desses guerrilheiros com as palavras do velho
Bilac: "Ora, direis, ouvir estrelas, por certo perdeste o senso".
Ricardo Aleixo
Um dos bons poetas revelados nos modorrentos anos 90, o paulista
Claudio Daniel lança o seu segundo livro, Yumê, pelas Edições
Ciência do Acidente. (...) Sutil articulador de complexas harmonias
fônicas, Claudio vem construindo um caminho ainda pouco explorado na
poesia brasileira: o do diálogo com o “neobarroco” de língua
espanhola, “o oriente como horizonte comum” que tem nos cubanos José
Kozer e Severo Sarduy e no argentino Néstor Perlongher (os dois
últimos já mortos) seus representantes mais destacados. Lição da
água, cuja primeira parte reproduzo, é antológica: “o / mar, / fêmea
/ possesa; / sua fala / de suave / lâmina / abissínia; / o ritmo /
ondulado, / que flui / em espiral; / a precisão / especular / do
teatro / aquático; / o secreto / pugilato / que sulca / as rochas”.
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